RESUMO: A Lei nº 13.655/18 introduziu artigos na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro que versam sobre a interpretação e aplicação do Direito Público, impondo às esferas administrativas, controladora e judicial maior responsabilidade ao proferir decisões que envolvem a administração pública. Assim, este trabalho se justifica para melhor compreender as mudanças promovidas, sobretudo no que concerne ao controle do ativismo judicial a partir da exigida fundamentação consequencialista imposta pela nova lei. Buscou-se, na doutrina e em pareceres técnicos emitidos pelos órgãos de controle e pela magistratura, aparato teórico para entender os aspectos controversos da referida norma. Assim, objetiva-se visualizar quais as vantagens da aplicação do diploma legal para o agente investido da competência descisória e para o agente administrador.
Palavras-chave: Direito Público. Interpretação. Segurança jurídica. Fundamentação. Consequencialismo.
ABSTRACT: The Law No. 13.655/18 introduced articles in the Law of Introduction to Brazilian Law that deal with the interpretation and application of Public Law, imposing greater responsibility to the administrative, controlling and judicial spheres when issuing decisions involving the public administration. Thus, this work is justified to better understand the changes promoted, especially with regard to the control of judicial activism from the required consequentialist foundation imposed by the new law. In the doctrine and technical opinions issued by the control organs and the judiciary, the theoretical apparatus was sought to understand the controversial aspects of the referred standard. Thus, the objective is to visualize what are the advantages of applying the legal diploma for the vested agent and the managing agent.
Keywords: Law no 13.655/18. Interpretation. Legal certainty. Rationale. Consequentialism.
1.INTRODUÇÃO
A judicialização das relações sociais, econômicas e políticas é um fenômeno patente na sociedade atual. A sociedade dirige-se ao judiciário buscando a segurança jurídica da tutela jurisdicional, bem como a satisfação de seus direitos. No desempenhar dessa função, entretanto, o poder judiciário tem adotado uma postura proativa, ao determinar soluções para os litígios que extrapolam os limites impostos pela lei, transgredindo a competência constitucionalmente atribuída aquele poder e interferindo de forma determinante na atuação dos demais poderes, sobretudo no que concerne ao Poder Executivo.
A esse fenômeno vem sendo atribuído o nome de decisionismo. A terminologia ganhou notoriedade a partir das lições de Carl Schimitt, que aduz sempre existir uma vontade “acima” da lei posta. Nesse sentido, Cássio Corrêa Benjamin explica que “a Constituição não é o mero conjunto das leis constitucionais, mas o resultado de uma decisão sobre a totalidade da unidade política. [...]” (BENJAMIN, 2016, P.223-224).
Dessa forma, o decisionismo seria uma forma de dizer a jurisdição em que o órgão incumbido de dizer o direito ao caso concreto, escolhe uma norma que entende ser preferível (adequada, por assim dizer) ao caso concreto, fundamentando sua decisão com base nessa norma e justificando o motivo pelo qual a aplicou em detrimento de outras normas jurídicas (BENJAMIN, 2016, P.223-224).
Porém, atualmente, o termo ganhou conotação pejorativa, referindo-se à postura dos agentes incumbidos do poder descisório de ignorar o texto legal, para substituí-lo por sua própria vontade ou interpretação particular dos fatos.
Deve-se, no entanto, ressaltar que o fenômeno decisionista não é limitado ao Poder Judiciário. A postura também é observada em órgãos controladores e até mesmo administrativos, sendo, atualmente, característica comum a todos os órgãos que aplicam e interpretam o direito.
As consequências desse comportamento são experimentadas por toda a sociedade. Por primeiro que enfraquecem o caráter democrático do Estado, na medida em que a vontade dos representantes eleitos é substituída pela vontade do agente investido da competência descisória.
Em uma segunda perspectiva, com enfoque no impacto das decisões no âmbito executivo, observa-se que as deliberações judiciais impõem expressivos ônus ao gestor público, desconsiderando o planejamento orçamentário, as circunstâncias fáticas vivenciadas por aquele administrador, bem como os limites financeiros daquele ente.
É neste cenário de proatividade descisória, que foi publicada, no ano de 2018, a Lei nº 13.655, que inseriu dez artigos na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB). Referida alteração legislativa é evidente tentativa do legislador de contenção do poder discricionário dos juízes, órgãos controladores e administrativos, quando da aplicação do direito público.
As inovações trazidas pela Lei nº 13.655/18 tratam-se de verdadeira leitura hermenêutica do direito público e, considerando a aplicabilidade dessas normas ao âmbito administrativo, é possível afirmar que as alterações feitas na LINDB possuem grande relevância jurídica e prática.
A lei dividiu a opinião da doutrina. De um lado entendeu-se a legislação como verdadeira afronta e constrangimento à liberdade descisória conferida constitucionalmente aos órgãos judiciais, controladores e administrativos, atribuindo-lhe ônus que não são da sua alçada. De outro lado, a recepção da lei foi feita com entusiasmo, entendendo-a como importante instrumento de contenção do descisionismo e de responsabilização do órgão julgador.
Nesse sentido, a presente pesquisa revela-se importante para sopesar os ganhos e os ônus trazidos pela nova redação da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, além de propor-se a melhor esclarecer os objetivos da inserção dos novos artigos no ordenamento jurídico pátrio, de forma a garantir sua melhor aplicação e interpretação.
Este trabalho será estruturado da seguinte forma: primeiro far-se-á um breve panorama geral das introduções feitas pela Lei nº 13.655/18, utilizando tais informações como marco-teórico da presente análise. Posteriormente, será trabalhado o conceito de segurança jurídica, enaltecendo sua importância para a vida dos jurisdicionados. Depois, após breve explanação sobre a metodologia utilizada, serão discutidos alguns aspectos inerentes as leis, notadamente sua abstração, bem como discutido o problema sintomático enfrentados pelos cidadãos e, sobretudo pelos administradores, quando em litígio: a arbitrariedade descisória. Após análise do problema, será discutida a importância e as vantagens da introdução do art.20 da LINDB no ordenamento jurídico, destacando-o como forma de controle da arbitrariedade descisória e caminho para desenvolvimento do princípio da segurança jurídica.
Dessa forma, pretende-se, ao final, analisar as mudanças inseridas pela Lei 13.655/18, sobretudo no que concerne ao art.20, que trata da fundamentação das decisões. Espera-se, então, entender se as alterações promovidas na LINDB significaram verdadeiro avanço, ao tentar promover um ambiente de menor instabilidade interpretativa para os agentes, os quais durante muito tempo ficaram reféns do alvedrio do judiciário e dos órgãos de controle, ou se as modificações significam uma tentativa de enfraquecimento do controle por parte dos órgãos incumbidos de dizer o direito.
2.REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO
A Lei de Introdução ao Direito Brasileiro (LINDB) foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro a partir do Decreto-lei nº 4.657/42. Neste primeiro momento, apesar da referida legislação ser nomeada como “Lei de Introdução ao Código Civil” (LICC), pode se observar sua intenção de estabelecer princípios gerais que ajudassem o interprete a compreender o sistema jurídico como um todo e aplicá-lo aos casos submetidos à jurisdição, fato que tornou pacífico na doutrina e jurisprudência pátria o entendimento de que a legislação não se limitou seu âmbito normativo ao Direito Privado, possuindo como escopo traçar balizas para aplicação da norma jurídica de forma ampla, seja ela de natureza privada ou pública, motivo pelo qual a legislação é considerada norma de “sobredireito” (GONÇALVES, 2011).
Essa visão expansionista foi confirmada com o advento da Lei n. º 12.376/2010, que alterou a o nome atribuído ao texto legal, que passou a ser nomeado “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” (GONÇALVES, 2011).
A Lei, então, discorre sobre os processos de elaboração, vigência, obrigatoriedade, interpretação, integração, aplicação no tempo e no espaço, da norma jurídica, bem como traz regras relativas ao Direito Internacional Privado e sua compatibilização com o ordenamento jurídico interno (DINIZ, 1997, P. 5).
A mais recente alteração da LINDB ocorreu através da edição da Lei nº 13.655/18, que introduziu na legislação os artigos 20 a 30 (o art.25 foi vetado pelo, então presidente da república, Michel Temer). As normas inseridas versam sobre técnicas interpretativas que devem ser observadas quando da criação e aplicação do Direito Público.
Segundo parecer da Comissão de Justiça e Cidadania, ao incluir os mencionados dispositivos na LINDB, o legislador objetivou:
“Melhorar a qualidade da atividade decisória exercida nos diversos níveis (federal, estados e municípios), dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e dos órgãos autônomos de controle (Tribunais de Contas e Ministério Público) e garantir, com isso, a eficiência e segurança jurídica na criação, interpretação e aplicação das normas de Direito Público”. (CIDADANIA, 2016. P.1).
Ainda segundo a referida comissão o projeto de lei, de autoria do Senador Antônio Anastasia, baseou-se nos estudos elaborados pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto, no âmbito da Sociedade Brasileira de Direito Público e da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, que concluíram sobre a necessidade de normas que versem sobre balizas interpretativas a serem adotadas na atividade de regulamentação e aplicação das leis, elevando a segurança jurídica e eficiência da criação e aplicação do Direito Público.
Nesse sentido, os professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto esclareceram sobre os fatores que justificam a necessidade da legislação:
Como fruto da consolidação da democracia e da crescente institucionalização do Poder Público, o Brasil desenvolveu, com o passar dos anos, ampla legislação administrativa que regula o funcionamento, a atuação dos mais diversos órgãos do Estado, bem como viabiliza o controle externo e interno do seu desempenho. Ocorre que, quanto mais se avança na produção dessa legislação, mais se retrocede em termos de segurança jurídica. O aumento de regras sobre processos e controle da administração tem provocado aumento da incerteza e da imprevisibilidade e esse efeito deletério pode colocar em risco os ganhos de estabilidade institucional. (PEREIRA, ANASTASIA, 2015, P.49)
Em síntese, os autores sustentam que a proliferação de leis administrativas, a pretexto de disciplinar e viabilizar o controle dos órgãos do Estado, levou a um cenário de insegurança jurídica. Assim, o objetivo das alterações promovidas na LINDB foi justamente dar previsibilidade e estabilidade decisória, trazendo ao gestor mais segurança jurídica para efetivar políticas públicas.
2.2 O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA COMO GARANTIA FUNDAMENTAL
O princípio da segurança jurídica traduz-se na garantia do jurisdicionado de que as modificações supervenientes que possam a ocorrer na lei não atinjam situações pretéritas consolidadas. A garantia possui previsão constitucional implícita no art.5º da Constituição Federal da República que prevê em seu inciso XXXVI que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (SOUZA, 2010).
Embora o texto constitucional faça menção expressa apenas à lei, é certo que o princípio da segurança jurídica atinge também a interpretação daqueles dispositivos legais, pois, como visto, apoiado na visão de Carl Schimitt, a lei só tem como fundamento primordial a decisão política do competente que a elege para ser aplicada ao caso concreto (BENJAMIN, 2016, P.223-224).
Referido princípio também deve ser observado no âmbito administrativo e controlador. Nesse sentido a Lei n.º 9.784/99, em seu art. 2º, caput, assevera: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”, o que é reforçado no inciso XIII, do supramencionado artigo: “interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação” (SOUZA, 2010).
Dessa forma, o referido princípio impede que o jurisdicionado seja surpreendido por alterações na ordem jurídica posta, seja pela sucessão de leis no tempo, seja pela interpretação dada aquele dispositivo normativo, o que torna inviável a adoção de nova interpretação que prejudique direito já adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada.
A importância do mencionado dispositivo tem amplo reconhecimento na doutrina e jurisprudência pátria. Maria Sylvia Zanella Di Pietro assevera que:
O princípio se justifica pelo fato de ser comum, na esfera administrativa, haver mudança de interpretação de determinadas normas legais, com a consequente mudança de orientação, em caráter normativo, afetando situações já reconhecidas e consolidadas na vigência de orientação anterior. Essa possibilidade de mudança de orientação é inevitável, porém gera insegurança jurídica, pois os interessados nunca sabem quando a sua situação será passível de contestação pela própria Administração Pública. Daí a regra que veda a aplicação retroativa. Isto não quer dizer que a administração não pode realizar novas interpretações, mas apenas que esses novos entendimentos que, por ventura, possam gerar um dessabor ao administrado, não podem retroagir para afetar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, sob pena de se instaurar uma enorme insegurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, cumpre salientar que o princípio da segurança jurídica é aplicado com base na boa-fé daquele que se beneficia, não podendo eles se beneficiarem da própria torpeza. Portanto, caso a administração mude de posicionamento, não poderá ela alegar a mudança de posicionamento para retirar algum benefício anteriormente concedido. (DI PIETRO, 2014, p. 86)
Diante todo o exposto, observada a garantia fundamental relativa à segurança jurídica, enunciada tanto pela Constituição da República quanto pelas supramencionadas leis, bem como pela doutrina, passa-se à análise das alterações realizadas pela Lei n.º 13.655/18 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, sobretudo no que concerne ao artigo 20, de caráter eminentemente hermenêutico, que traz a exigência de justificar a necessidade, a adequação e de medir as consequências práticas das decisões tomadas nas esferas judiciais, administrativas e controladoras.
3.A ABSTRAÇÃO DAS LEIS
Como expõe Marçal Justen Filho (2018), a concepção mecanicista, que defende a ideia de que todas as soluções para as controvérsias fáticas experimentadas pela sociedade encontram um correspondente legal, não mais se sustenta por apresentar viés idealista e inalcançável.
A concepção realista, no entender deste mesmo autor (FILHO, 2018, P.16), reconhece que a lei consagra “conjunto de padrões abstratos” que não indica solução para todos os casos concretos. Exigem-se, assim, escolhas fundamentadas a serem realizadas pelo sujeito investido da competência descisória, orientando-se pelas normas gerais e abstratas previstas na legislação.
Sobre a dificuldade de aplicação de normas gerais e abstratas Marçal Justen Filho assim expõe:
“(...) Essa dificuldade decorre da pluralidade possibilitada pelas normas gerais a serem aplicadas. A autoridade investida da competência para aplicar a norma de hierarquia superior tem o dever de adotar a solução mais compatível com o conjunto do ordenamento jurídico. No entanto, é muito problemático determinar, em cada caso, qual seria a solução mais satisfatória (...)”. (FILHO, 2018, P. 17).
Nessa senda, não se pode negar que a Ciência Jurídica é ramo marcado pela indeterminação, notadamente por grande parte do ordenamento ser composto por normas gerais e abstratas. A este fato podem ser atribuídas diversas causas.
Sob o aspecto histórico, observa-se que a consagração dos governos democráticos estabeleceu um aumento de representatividade no parlamento, fazendo com que ficasse mais difícil estabelecer consensos sobre determinadas matérias. A solução foi o estabelecimento de normas gerais e abstratas, sobre as quais era mais fácil formar um consenso (FILHO, 2018, 18). Isto porque, a norma jurídica geral e abstrata é aquela que compreende diversas interpretações hermenêuticas, possibilitando que diversas soluções jurídicas possam ser construídas a partir da mesma norma, satisfazendo interesse de vários setores sociais.
Inclusive, o professor Edilson Vitorelli aduz que a introdução de valores jurídicos abstratos e normas gerais na Carta Constitucional foi escolha consciente do legislador constituinte, que buscou dar “abertura semântica aos direitos fundamentais e permitir que o sistema de direitos que se implementava tivesse efetividade”. (VITORELLI, 2018, P.5). Trata-se, assim, de verdadeira hermenêutica constitucional, comum às constituições ecléticas[1] e dirigentes[2].
A indeterminação também se deve ao fato de o Direito ser ciência vinculada às transformações sociais. Assim, a edição de normas gerais foi a saída encontrada para evitar a “obsolência do Direito”, nos termos de Marçal Justen Filho (2018), uma vez que sua consciente “lacuna interpretativa” permite ao intérprete adequar aquela norma a realidade fática experimentada pela sociedade, evitando a proliferação de inúmeros processos legislativos para tentar acompanhar as mudanças sociais.
Considerando este aspecto, o que as alterações da Lei 13.655/18 buscaram não foi eliminar esse grau de flexibilidade ou variabilidade, eis que estes não poderiam ser eliminados por qualquer método interpretativo, porque sempre haverá lugar para interpretação no Direito, mas sim apresentar balizas para que essas normas gerais sejam aplicadas, sobretudo considerando as circunstâncias fáticas e realidade de cada gestor.
4.DECISÕES ARBITRÁRIAS
Não raro observam-se casos em que, embora se tratem de situações semelhantes, recebem respostas diferentes quando submetidos ao crivo judicial ou a órgãos de controle. Igualmente, também são comuns a aplicações de sanções a atos que foram feitos conforme o entendimento dominante à época: com a alteração do entendimento da corte ou do órgão de controle os atos são reputados errôneos, mesmo que realizados em conformidade a entendimento ulterior (atual na época do ato).
Algumas decisões proferidas no âmbito dos Tribunais Superiores podem ser utilizadas para melhor demonstrar essa situação.
Cite-se, por exemplo, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 126.292/SP, em que o Tribunal passou a admitir a execução provisória da pena após a confirmação da condenação pela segunda instância. Sem adentrar ao mérito da discussão, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia e Diogo Bacha e Silva, assim identificam o fenômeno descisionista, marcado pela arbitrariedade descisória:
“O recente caso da oscilação jurisprudencial no caso da relativização da presunção de inocência bem demonstra o casuísmo judicial ao sabor da vontade dos julgadores. Pois bem, em 17 de Fevereiro de 2016, o STF proferiu julgamento no HC 126.292 modificando a jurisprudência do próprio STF no julgamento do HC 84.078/MG realizado em 05/02/2009. [...] O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no HC 126.292/SP, sem mesmo qualquer circunstância relevante ou alteração interpretativa, admite a execução provisória da condenação penal quando pendente análise das vias extraordinárias, sem que, de acordo com o entendimento do STF, se tenha como vulnerado a presunção de inocência [23]. Importa salientar que o STF não enfrentou as teses expostas no julgado anterior para mostrar que ou houve alteração da Constituição ou que a interpretação anterior estava errada (e o porquê). [...] No entanto, menos de 1 (um) ano após a formação do entendimento, o Min. Gilmar Mendes que, antes acompanhava a maioria, em decisões liminares, citando-se as proferidas no HC 142.173/SP, 23.05.2017, HC 146.818, 18/09/2017, passou a entender que a execução antecipada da pena deve aguardar o julgamento do Recurso Especial no STJ, não sendo permitida após a apreciação da apelação ordinária. Qual será que foi a razão pela qual o Ministro Gilmar Mendes modificou o entendimento que ele mesmo albergou no julgamento do HC 126.292 que, por sinal, foi contrário ao que ele mesmo proferiu no julgamento do HC 84.078? Será que em 1 (um) ano houve modificações nas circunstâncias fáticas que alteraram a interpretação da Constituição? [...] As decisões supramencionadas do Min. Gilmar Mendes em nenhum momento expõem argumentativamente as razões pelas quais o fundamento da decisão no HC 126.292 era injusto ou inadequado de acordo com a integridade do Direito e, portanto, precisaria ser superado. Também, em virtude do pouco tempo decorrido entre a decisão firmada pelo STF que permitiu a execução antecipada da pena e a liminar que impede a execução antes da análise de recurso especial pelo STJ, não houve modificações nas circunstâncias fáticas ou, então, na própria interpretação do Direito de modo que fosse adequado a superação silenciosa. Em verdade, a modificação do entendimento pelo Min. Gilmar Mendes advém de um arbítrio interpretativo, incongruente com a exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais e com a própria segurança jurídica, e demonstra a faceta casuística do exercício do poder jurisdicional do Supremo Tribunal Federal, longe de adotar um modelo de precedentes exigidos normativamente pelo CPC/2015. As exigências de estabilidade, coerência e integridade do art. 926 do CPC são consequência de se levar a sério o contraditório e a ampla defesa (arts. 7o a 10) e a fundamentação das decisões (art. 489, §§1o e 2o), e, logo, condição de possibilidade/sentido para a lista de “precedentes vinculantes” do art. 927. [26] Se um Tribunal não consegue ser coerente com seus próprios precedentes, como se espera que todo o sistema funcione? Mais, se há decisões contraditórias sem que seja feita a devida “superação”/“distinção” e se isso ocorre com inquietante frequência, como identificar qual a “ratio decidendi” está sendo ofertada pelo Tribunal? Qual a força argumentativa proporcionada por decisões da mais alta Corte se as mesmas nem de longe se colocam como uma interpretação construtiva do Direito (no sentido dado por DWORKIN, 2014)?”(BAHIA, SILVA, 2017, p.1)
Outras decisões impactam de forma ainda mais direta o Poder Executivo, impondo-lhe ônus não previstos em seu orçamento originário.
Exemplo interessante ocorreu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 956475/ RJ. No caso, Supremo Tribunal Federal determinou que o Município de Volta Redonda (RJ) matriculasse uma criança de quatro anos em creche pública. Para o relator, Min. Celso de Mello, o artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal (CF) determina que a educação infantil representa prerrogativa indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e, também, o acesso à pré-escola.
Confira-se a ementa do julgado:
EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE MUNICIPAL. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO. A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. – A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e, também, o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. – Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e de executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do possível”. Doutrina. DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra acórdão que, confirmado em sede de embargos de declaração pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, está assim ementado: “Constitucional. Administrativo. Mandado de Segurança. Pretensão de matrícula em creche da rede pública municipal. Menor que figura em lista de excedentes. Alegação de ofensa ao regramento constitucional e do Estatuto do Menor. Segurança deferida. Apelação do Município. Decadência. Inocorrência. Aplicação do disposto no art. 23 da Lei nº 12.016/2009. Demanda ajuizada quando não ultimado o prazo decadencial de 120 dias contados a partir da ciência da autora quanto à recusa manifestada pelo Município. Prejudicial que se afasta. Violação ao princípio da adstrição. Possibilidade de matrícula da menor em estabelecimento próximo ao endereço profissional de sua representante legal. Medida estabelecida em decisão interlocutória que restou irrecorrida. Inexistência de prejuízo ao ente público. Tese que se rejeita. Mérito. Creche. Pré-escolas. Opção do legislador constitucional originário, obrigando os entes políticos a adoção destas medidas. Ofensa a direito líquido e certo que se reconhece e se desprestigia. Inteligência dos arts. 205, 208, IV e 211, § 2º, todos da CF/88. Legislação infraconstitucional voltada no mesmo sentido. Art. 4ª do ECA. Precedente do STJ. Exercício deste direto, contudo, que deve ser subordinado ao princípio da isonomia. Direito social vindicado que, em seu exercício, não podendo se constituir em privilégio imotivado a uns em detrimento de outros. Obrigação do Município em promover a inclusão dos integrantes da lista de excedentes que precedem a Impetrante que se reconhece como pré-condição indispensável para a efetividade do comando judicial, pena de ofensa a princípio constitucional. Sentença que se modifica, ‘ex officio’, nesta parte. Reexame necessário. Isenção ao pagamento das custas processuais que restou corretamente reconhecida. Taxa judiciária. Inteligência da Súmula nº 145 desta E. Corte. Ausência de condenação ao pagamento de honorários advocatícios. Inteligência da Súmula nº 512 do E. STF. Apelo voluntário que se rejeita. Sentença modificada, parcialmente, de ofício. Manutenção do restante da mesma em sede de reexame necessário. ” (grifei) A recorrente – que é menor absolutamente incapaz, ora representada por sua mãe – sustenta que o acórdão impugnado teria transgredido os preceitos inscritos nos arts. 205, 208, IV, 211, § 2ª e 227, todos da Constituição da República. O exame desta causa convence-me da inteira correção dos fundamentos, que informam e dão consistência ao recurso extraordinário em questão. É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à educação – que representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV, e 227, “caput”) – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (ou dimensão) (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe ao Poder Público a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num “facere” ou em um “praestare”, pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento, em creche e pré-escola, “às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC nº 53/2006). O eminente e saudoso PINTO FERREIRA (“Educação e Constituinte”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173), ao analisar esse tema, expende, sobre ele, magistério irrepreensível: “O Direito à educação surgiu recentemente nos textos constitucionais. Os títulos sobre ordem econômica e social, educação e cultura revelam a tendência das Constituições em favor de um Estado social. Esta clara opção constitucional faz deste ordenamento econômico e cultural um dos mais importantes títulos das novas Constituições, assinalando o advento de um novo modelo de Estado, tendo como valor-fim a justiça social e a cultura, numa democracia pluralista exigida pela sociedade de massas do século XX. ” (grifei) Para CELSO LAFER (“A Reconstrução dos Direitos Humanos”, p. 127 e 130/131, 1988, Companhia de Letras), que também exterioriza a sua preocupação acadêmica sobre o tema, o direito à educação – que se mostra redutível à noção dos direitos de segunda geração (ou de segunda dimensão) – exprime, de um lado, no plano do sistema jurídico-normativo, a exigência de solidariedade social, e pressupõe, de outro, a asserção de que a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento político, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as dimensões em que estas se projetem: “(…) É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo ‘welfare state’, são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade. Daí a complementaridade, na perspectiva ‘ex parte populi’, entre os direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito, denominados direitos econômico-sociais e culturais, podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo (…).” (grifei) O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à educação infantil – ainda mais se considerado em face do dever que incumbe ao Poder Público de torná-lo real, mediante concreta efetivação da garantia de atendimento, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos de idade (CF, art. 208, IV) – não podem ser menosprezados pelo Estado, “obrigado a proporcionar a concretização da educação infantil em sua área de competência” (WILSON DONIZETI LIBERATI, “Conteúdo Material do Direito à Educação Escolar”, “in” “Direito à Educação: Uma Questão de Justiça”, p. 236/238, item n. 3.5, 2004, Malheiros), sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário. Cabe referir, novamente, neste ponto, outra observação de PINTO FERREIRA (“Educação e Constituinte” “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173), quando adverte – considerada a ilusão que o caráter meramente retórico das proclamações constitucionais muitas vezes encerra – sobre a necessidade de se conferir efetiva concretização a esse direito essencial, cuja eficácia não pode ser comprometida pela inação do Poder Público: “O direito à educação necessita ter eficácia. Sendo considerado como um direito público subjetivo do particular, ele consiste na faculdade que tem o particular de exigir do Estado o cumprimento de determinadas prestações. Para que fosse cumprido o direito à educação, seria necessário que ele fosse dotado de eficácia e acionabilidade (…).” (grifei) O objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de educação infantil, especialmente se reconhecido que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser implementado mediante adoção de políticas públicas consequentes e responsáveis – notadamente aquelas que visem a fazer cessar, em favor da infância carente, a injusta situação de exclusão social e de desigual acesso às oportunidades de atendimento em creche e pré-escola –, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público. Ao julgar a ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, proferi decisão assim ementada (Informativo/STF nº 345/2004): “ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA ‘RESERVA DO POSSÍVEL’. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO ‘MÍNIMO EXISTENCIAL’. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).” Salientei, então, em tal decisão, que o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam – enquanto direitos de segunda geração (como o direito à educação, p. ex.) – com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO). É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 75/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal: “DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO. – O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um 'facere' (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. – Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse 'non facere' ou 'non praestare', resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. – A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” (RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF nº 345/2004) – que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Impende assinalar, contudo, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame. Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (LUÍS FERNANDO SGARBOSSA, “Crítica à Teoria dos Custos dos Direitos”, vol. 1, 2010, Fabris Editor; STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”, 1999, Norton, New York; ANA PAULA DE BARCELLOS, “A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245/246, 2002, Renovar; FLÁVIO GALDINO, “Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos”, p. 190/198, itens ns. 9.5 e 9.6, e p. 345/347, item n. 15.3, 2005, Lumen Juris), notadamente em sede de efetivação e implementação (usualmente onerosas) de determinados direitos cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe-lhe e dele exige prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004). Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando dessa conduta governamental negativa puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta observação de REGINA MARIA FONSECA MUNIZ (“O Direito à Educação”, p. 92, item n. 3, 2002, Renovar), cuja abordagem do tema – após qualificar a educação como um dos direitos fundamentais da pessoa humana – põe em destaque a imprescindibilidade de sua implementação, em ordem a promover o bem-estar social e a melhoria da qualidade de vida de todos, notadamente das classes menos favorecidas, assinalando, com particular ênfase, a propósito de obstáculos governamentais que possam ser eventualmente opostos ao adimplemento dessa obrigação constitucional, que “o Estado não pode se furtar de tal dever sob alegação de inviabilidade econômica ou de falta de normas de regulamentação” (grifei). Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a educação infantil – que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 208, IV) – tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município (CF, art. 211, § 2º), disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial, como adverte, em ponderadas reflexões, a ilustre magistrada MARIA CRISTINA DE BRITO LIMA, em obra monográfica dedicada ao tema ora em exame (“A Educação como Direito Fundamental”, 2003, Lumen Juris). Cabe referir, ainda, neste ponto, ante a extrema pertinência de suas observações, a advertência de LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN, ilustre Subprocuradora Geral da República (“Políticas Públicas – A Responsabilidade do Administrador e o Ministério Público”, p. 59, 95 e 97, 2000, Max Limonad), cujo magistério, a propósito da limitada discricionariedade governamental em tema de concretização das políticas públicas constitucionais, assinala: “Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na Constituição Federal; a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer. Como demonstrado no item anterior, o administrador público está vinculado à Constituição e às normas infraconstitucionais para a implementação das políticas públicas relativas à ordem social constitucional, ou seja, própria à finalidade da mesma: o bem-estar e a justiça social. Conclui-se, portanto, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou as normas de integração. As dúvidas sobre essa margem de discricionariedade devem ser dirimidas pelo Judiciário, cabendo ao Juiz dar sentido concreto à norma e controlar a legitimidade do ato administrativo (omissivo ou comissivo), verificando se o mesmo não contraria sua finalidade constitucional, no caso, a concretização da ordem social constitucional.” (grifei) Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que os Municípios – que atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Constituição, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se de atendimento das crianças em creche e na pré-escola (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. As razões ora expostas convencem-me, portanto, da inteira procedência da pretensão recursal deduzida pela recorrente, seja em face das considerações que expendeu no recurso extraordinário, seja, ainda, em virtude dos próprios fundamentos que dão suporte a diversas decisões sobre o tema em análise, já proferidas no âmbito desta Suprema Corte (AI 455.802/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – AI 475.571/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – ARE 698.258/SP, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI – RE 401.673/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 410.715- -AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 411.518/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 436.996/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RE 463.210-AgR/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RE 464.143-AgR/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 592.937-AgR/SC, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 909.986/DF, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 919.489/DF, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, v.g.): “CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA – SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA – LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS ‘ASTREINTES’ CONTRA O PODER PÚBLICO – DOUTRINA – JURISPRUDÊNCIA – OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS – EDUCAÇÃO INFANTIL – DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) – COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO – DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO – INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS ‘ESCOLHAS TRÁGICAS’ – RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL – PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA – QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO – PRINCÍPIO ‘JURA NOVIT CURIA’ – INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.” (ARE 639.337-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Cumpre destacar, neste ponto, por oportuno, ante a inquestionável procedência de suas observações, a decisão proferida pelo eminente Ministro MARCO AURÉLIO (RE 431.773/SP), no sentido de que, “Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da Carta Federal, consubstancia dever do Estado a educação, garantindo o atendimento em creche e pré-escola às crianças (…). O Estado – União, Estados propriamente ditos, ou seja, unidades federadas, e Municípios – deve aparelhar-se para a observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa” (grifei). Isso significa, portanto, considerada a indiscutível primazia reconhecida aos direitos da criança e do adolescente (ANA MARIA MOREIRA MARCHESAN, “O princípio da prioridade absoluta aos direitos da criança e do adolescente e a discricionariedade administrativa”, “in” RT 749/82-103), que a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a incompetência na adequada implementação da programação orçamentária em tema de educação pública, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a educação infantil, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais estabelecidas em favor das pessoas carentes não podem nem devem representar obstáculos à execução, pelo Poder Público, notadamente pelo Município (CF, art. 211, § 2º), da norma inscrita no art. 208, IV, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de a ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental da cidadania e que é, no contexto que ora se examina, o direito à educação, cuja amplitude conceitual abrange, na globalidade de seu alcance, o fornecimento de creches públicas e de ensino pré-primário “às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC nº 53/2006). Vale acentuar, finalmente, no tocante à alegada violação ao princípio da isonomia, em que se fundamentou o acórdão ora recorrido, que o Ministério Público Federal, ao opinar sobre essa questão, corretamente destacou, em seu douto parecer, da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. ODIM BRANDÃO FERREIRA, passagem a seguir reproduzida, que bem revela a legitimidade da pretensão recursal ora em exame: “O argumento da isonomia não se presta ao caso por redundar em afastar, de forma completa, a eficácia e a busca da efetividade do direito previsto constitucionalmente. Como não há discricionariedade do administrador, a omissão nesses casos já não se encerra no âmbito de discricionariedade, mas passa a representar violação dos mencionados direitos subjetivos. Disso decorre a ilegitimidade do condicionamento do direito à observância de lista de excedente, que nem sequer poderia existir.” (grifei) Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, dou provimento ao presente recurso extraordinário (CPC/15, art. 932, VIII, c/c o RISTF, art. 21 § 1º), em ordem a restabelecer a sentença proferida pelo ilustre magistrado estadual de primeira instância. Publique-se. Brasília, 12 de maio de 2016. Ministro CELSO DE MELLO Relator
(RE 956475, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 12/05/2016, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16/05/2016 PUBLIC 17/05/2016)
O que se observa da decisão acima relatada é que o Min. Relator sopesou ser a educação um direito fundamental de segunda geração cujo adimplemento impõe ao Poder Público a satisfação de um dever de prestação positiva: a criação de condições objetivas que propiciem aos titulares do direito o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento, em creche e pré-escola.
O Ministro ainda destacou que esse direito fundamental não pode ser comprometido pela inação do Poder Público, considerando sua não realização como “censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público”.
Deve-se ressaltar que no voto, o Ministro Celso de Mello, afirma que, conforme registrado no exame da ADPF 45/DF, “não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e de implementar políticas públicas” pois esse encargo incumbe precipuamente aos Poderes Legislativo e Executivo.
Porém, o julgador destaca que “tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais”, o que justificaria a decisão impositiva.
Não se pode negar que o acesso à educação infantil representa garantia constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros. Porém, a decisão não considerou o impacto dessa jurisprudência para a economia do município, que agora deverá arcar com o custo de matrícula, infraestrutura, manutenção, profissionais capacitados e tantos outros para cumprir a decisão. Dessa forma, é inegável o alto impacto da decisão no orçamento municipal.
Embora o voto tenha feito constar que a decisão significaria impacto econômico relevante na economia local, o Min. Relator asseverou que na hipótese deve-se prestigiar o direito à educação em detrimento do princípio da reserva do possível[3].
Assim, o referido julgamento é um bom exemplo de decisão em que um valor jurídico abstrato, qual seja o direito fundamental a educação, foi utilizado para impor ao Poder Público, sem que fosse feita, de fato, uma análise prévia de quais serão as consequências práticas dessa decisão. Não consta da decisão qualquer referência ao orçamento municipal e ao custo desse direito constitucionalmente previsto aos cofres públicos. Também não foi dado ao município prazo para que ele efetivasse a medida. Todos esses aspectos demonstram que, ao final, não foram consideradas as consequências práticas daquela decisão.
Igualmente ocorreu no RE 429903/RJ, em que o Governo Estadual do Rio de Janeiro foi condenado a manter estoque mínimo de medicamento utilizado no combate da Doença de Gaucher (moléstia genética rara relacionada com o metabolismo dos lipídeos), de modo a evitar novas interrupções no tratamento (STF. 1ª Turma. RE 429903/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 25/6/2014).
No mesmo sentido o Estado de São Paulo foi condenado pela Suprema Corte a garantir o direito a acessibilidade em prédios públicos, notadamente impôs que o ente realize reformas e adaptações necessárias na Escola Estadual Professor Vicente Teodoro de Souza, em Ribeirão Preto para garantir a acessibilidade de alunos deficientes. Deve-se destacar que nesse caso o Min. Marco Aurélio afirmou que embora se trate de decisão dirigida a escola específica “a decisão vai se irradiar alcançando inúmeros prédios públicos” (STF. 1ª Turma. RE 440028/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/10/2013).
Dessa forma, observa-se que a arbitrariedade e o decisionismo são aspectos comumente observados na jurisprudência pátria, o que inclui também os Tribunais Superiores – o que é ainda mais grave, uma vez que estes tribunais encontram-se distantes das realidades experimentadas pelos entes e administradores públicos e não tem ferramentas aptas a analisar o consequencialismo de suas decisões.
5.ATIVISMO JUDICIAL E ARBITRARIEDADE DESCISÓRIA
Como observado, não são isolados os exemplos de ativismo judicial (considerando assim as vezes que o poder judiciário fez as vezes de poder legislativo/executivo) ou arbitrariedade descisória (referindo-se aos casos em que o julgador decidiu de forma alheia ao preceito legal). Edilson Vitorelli atribui esse ativismo ou arbitrariedade à existência de valores abstratos previstos na Constituição Federal que precisam ser densificados pelo operador do Direito, dando concretude e eficácia a direitos constitucionalmente previstos:
Aliás, em realidade, são os valores abstratos que mais demandam a intervenção judicial. Aqueles cuja atuação está minudenciada em lei, via de regra, não ensejam maior litigiosidade. O problema está, precisamente, em concretizar direitos em relação aos quais não há norma infraconstitucional regulamentadora. Ou seja, direitos abstratamente garantidos na Constituição. E, quanto a eles, há, não apenas possibilidade, mas dever de atuação do juiz e do controlador. E isso o Supremo Tribunal Federal já reconheceu e reafirmou, há pelo menos duas décadas. Em conclusão, é inarredável a violação deste dispositivo a todo o teor do art. 5º da Constituição e, de modo especial, ao seu § 1º, que determina que "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata" estabelecendo, assim, um dever de concretização dos direitos fundamentais para todas as autoridades estatais, de todas as esferas. (VITORELLI, 2018, P.6-7)
Entretanto, esses casos não se tratam de reflexos da indeterminação do direito, mas sim da ausência de hermenêutica previamente estabelecida: o julgador, antes de decidir, tem de saber o que (quais os parâmetros) irá ponderar para julgar o caso concreto e aplicar-lhe a lei e/ou consequências cabíveis.
Sobre esse aspecto, Marçal Justen Filho aduz que o problema está no “simplismo” descisório, assim fundamentando:
“(...) Diante da dificuldade do caso, pode ocorrer de a autoridade optar por uma decisão superficial, que não reflete a complexidade do problema, nem traduz uma avaliação efetiva quanto à solução mais adequada. É nesse sentido que Carlos Ari Sundfeld aludiu à “preguiça” do agente investido da competência descisória, numa linguagem provocativa. Trata-se não necessariamente de uma ausência de dedicação do agente estatal, mas também de uma espécie de citicismo quanto à viabilidade ou utilidade de aprofundamento. A decisão simplista supera a controvérsia mediante invocação de normas abertas – tão abertas que poderiam conduzir a conclusões até opostas àquela efetivamente adotada” (FILHO, 2018, P. 22).
Os efeitos práticos dessas decisões seriam, em primeiro lugar, é a hipertrofia do controle, que, a pretexto de interpretar a lei, acabam por usurpar a competência descisória de assuntos que seriam de exclusiva alçada do Poder Executivo, que conhece as peculiaridades e necessidades da população, bem como suas limitações orçamentárias. Em segundo lugar, levariam ao engessamento da atividade do gestor, que se apequena temendo a responsabilizações imprevisíveis perante os órgãos de controle. Por fim, criar-se-ia cenário de extrema insegurança jurídica, o que compromete o exercício da função pública e do desenvolvimento local, regional e nacional.
Diferentemente, a consultoria jurídica do Tribunal de Contas da União (2018), com base no Relatório de Políticas e Programas de Governo (RePP)[4], defendeu que a inegável ineficiência, a paralisia e a insegurança jurídica estão dentro da própria Administração Pública, não podendo ser esses inconvenientes serem imputados aos órgãos controladores, que, ao contrário, atuam para coibir esses desvios, assim informando:
“(...) As ineficiências apontadas no relatório implicam consideráveis desperdícios e desvios sistêmicos na aplicação dos recursos públicos federais. Com base na análise dos achados consolidados, concluiu-se que os referidos déficits institucionais, se não corrigidos, são capazes de perenizar a baixa eficácia dos bens e serviços públicos ofertados pelo Estado, que têm sido percebidos pela sociedade, em regra, como inadequados e de pouca qualidade. No tocante aos problemas estruturantes na Administração Pública Federal, verificou-se a existência de falhas na estratégia do Estado, como ausência de plano de longo prazo, fragilidades do Plano Plurianual (PPA), ausência generalizada de planos estratégicos institucionais e falta de uniformidade e padronização dos planos nacionais setoriais, que dificultam o desenvolvimento sustentável de políticas e programas públicos e prejudicam a efetividade das ações governamentais. Além disso, o relatório afirma que a baixa capacidade do Estado em planejar e coordenar as diversas políticas públicas tem levado ao aumento do risco de desperdício de recursos, do comprometimento de resultados e da baixa qualidade dos serviços à população. Ademais, existem impropriedades na Governança Orçamentária do país que comprometem a alocação efetiva e eficiente do gasto público. Outra questão importante apontada foi a ineficiência dos mecanismos de monitoramento e avaliação governamental e gestão de riscos, que, respectivamente, dificultam o acompanhamento e aferição de resultados e impedem o alcance dos objetivos almejados. Um segundo achado do trabalho se refere à constatação de que problemas de gestão e governança do Centro de Governo refletem-se quase que simetricamente nas políticas e programas selecionados para análise do relatório e, em ambos os casos, não se tem logrado êxito em transformar de forma coerente, sustentável ou razoável os problemas nacionais relevantes (...)”. (UNIÃO, 2018, P.9)
Deve-se esclarecer, no entanto, que a Lei nº 13.655/18 não nega a contribuição da administração pública para os problemas mencionados. O dever de coibir a ineficiência, paralisia e insegurança jurídica é função dos três poderes, sendo que cada um deles deve atuar, estritamente, no seu âmbito de competências.
Inclusive, a mencionada lei dispõe que a necessidade de fundamentação consequencialista é imposta às esferas administrativa, controladora e judicial. Ou seja, a todos os poderes é defeso decidir fora destes parâmetros, o que inclui o Poder Executivo, devendo, por óbvio o gestor analisar as consequências de suas escolhas e as possíveis alternativas aplicáveis em cada caso.
Conclui-se que, o que se espera dos órgãos controladores e judiciais, não é sua inatividade ou a paralisação e engessamento das atividades que lhe são típicas, mas sim que estes, ao fazê-las, observem determinados vetores instituídos pela lei, notadamente a análise do impacto de suas decisões.
6.O ARTIGO 20 DA LEI DE INTRODUÇÃO AO DIREITO BRASILEIRO MODIFICADO PELA LEI 13.655/18 E A TENTATIVA DE CONTROLE DAS DECISÕES ARBITRÁRIAS – a exigência de justificar a necessidade, a adequação e de medir as consequências práticas das decisões.
O artigo 20 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro possui a seguinte redação:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Conforme se depreende da leitura do dispositivo, é patente a intenção do legislador em estabelecer a necessidade de que as decisões (nas esferas controladora, administrativa e judicial) sejam devidamente fundamentadas, ressaltando a necessidade de uma análise consequencialista daquela. Visam, portanto, reduzir possíveis práticas que resultem em insegurança jurídica no desenvolvimento estatal (FILHO, 2018, 15).
O Decreto 9.830/2019, sob o intento de regulamentar os novos dispositivos inseridos na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (que sofreram críticas pela sua subjetividade e abstração)[5], estabeleceu critérios mais precisos para identificar-se quando será considerada motivada uma decisão, assim dispondo em seu art.2º:
Art. 2º A decisão será motivada com a contextualização dos fatos, quando cabível, e com a indicação dos fundamentos de mérito e jurídicos.
§ 1º A motivação da decisão conterá os seus fundamentos e apresentará a congruência entre as normas e os fatos que a embasaram, de forma argumentativa.
§ 2º A motivação indicará as normas, a interpretação jurídica, a jurisprudência ou a doutrina que a embasaram.
§ 3º A motivação poderá ser constituída por declaração de concordância com o conteúdo de notas técnicas, pareceres, informações, decisões ou propostas que precederam a decisão.
Art. 3º A decisão que se basear exclusivamente em valores jurídicos abstratos observará o disposto no art. 2º e as consequências práticas da decisão.
§ 1º Para fins do disposto neste Decreto, consideram-se valores jurídicos abstratos aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração.
§ 2º Na indicação das consequências práticas da decisão, o decisor apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos.
§ 3º A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta, inclusive consideradas as possíveis alternativas e observados os critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade.
Assim, reputa-se fundamentada uma decisão quando apresentar a exata subsunção do fato à norma podendo, para tal, basear-se na doutrina, jurisprudência, pareceres técnicos, dentre outras fontes do Direito. Ademais, quando o descisor utilizar-se de valores jurídicos abstratos deve-se apontar quais as consequências práticas daquela decisão, sobretudo em face das possíveis alternativas.
O ponto, porém, é merecedor de críticas por parte dos órgãos jurisdicionais e de controle.
O Tribunal de Contas da União, em Parecer ao Projeto de Lei nº 7.448/2017 (2018), entendeu que o mencionado dispositivo obriga o órgão a decidir com elementos que não estão nos autos, exigindo que ele conheça profundamente a realidade de cada órgão e entidade pública por completo para que preveja alternativas possíveis para solução de cada caso.
O ente controlador ainda aduz inconstitucionalidade do referido dispositivo, entendendo que a Constituição Federal impôs ao agente investido da competência descisória o ônus de comprovar que sua decisão levou em consideração todas as alternativas possíveis, ônus este anteriormente pertencente ao administrador que, inclusive, deveria ser desincumbido antes mesmo da prática do ato.
Nesse sentido:
“(...) Além disso, esse dispositivo inverte o ônus da prova, que originariamente é do administrador público, em decorrência do disposto no art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal, segundo o qual “Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária”. Isso porque o dever de demonstrar as alternativas possíveis é do agente público que pratica o ato posteriormente invalidado. E o administrador deve cumprir esse dever antes da prática do ato, exatamente para se certificar de que, analisadas as “possíveis alternativas”, ele faz a melhor escolha (...)”. (UNIÃO, 2018, P.14).
Igualmente, o Ministério Público Federal, quando da análise do projeto de lei que resultou na norma em comento (Projeto de Lei nº 7.448/2017), argumentou que a lei influi profundamente na motivação do ato judicial e, por conseguinte, afeta diretamente o princípio da persuasão racional, o que caracteriza ingerência indevida na atuação do poder judiciário no exercício de sua função típica.
No que concerne especificadamente ao art.20, entendeu que o dispositivo possui constitucionalidade duvidosa, por negar a possibilidade de decisão baseada em princípios, recusando-se a reconhecer a força normativa dessa fonte do Direito. Por fim, a Câmara de Coordenação e revisão da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, responsável pela elaboração do referido parecer, defende que a disposição impõe que o magistrado substitua o gestor em suas funções, atuando como “consultor jurídico”, ao atribuir a ele o dever de pensar alternativas possíveis àquela tomada, assim manifestando-se:
“Resultado dessa situação esdrúxula seria o desvirtuamento da função judicial, por exemplo, para atividade de consultoria do administrador, perscrutando alternativas e consequências em seu benefício. Umas e outras devem ser buscadas e/ou suportadas pelo gestor, que deixou de adotar as cautelas necessárias para evitar que o ato viesse a ser invalidado” (FEDERAL, 2018, P.5).
Sob outro aspecto, a nota técnica conjunta do Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Contas e da Associação Nacional do Ministério Público de Contas, ainda aduz que a cláusula “abriria espectro recursal extremamente amplo e desarrazoado, pois sempre permitiria às partes contestar as decisões no caso de uma das eventuais e infinitas alternativas não ter sido contemplada e ponderada pelo juízo decisório” (CONTAS, 2018, P.1).
A análise dos referidos órgãos, entretanto, parece equivocada. Em nenhum momento pretendeu-se que o julgador decida com base em elementos não contidos nos autos. Buscou-se, em outra leitura, impor ao julgador a análise consequencialista da sua decisão, com base em elementos trazidos pelas partes, conforme reforçam os §2º e §3º do art.2º do Decreto 9.830/2019.
Esse aspecto, inclusive, limita a recorribilidade infinita das decisões, pois o agente investido da competência descisória julgará o processo no estado em que se encontrar, observando as alternativas arguidas pelas partes e as circunstâncias fáticas daquele momento em específico.
Ademais, o referido decreto também deixa claro que “o decisor apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos” (art.3º, §2º), ou seja, o que requer é que se aponte o maior número de consequências práticas que possa vislumbrar, mediante as provas e documentos trazidos pelas partes, sem que isso signifique, contudo, que outras alternativas não possam ser cogitadas e que não foram mencionadas (CAVALCANTE, 2019, P.1).
Como bem esclarecem os autores do projeto que deu origem ao dispositivo questionado, o que se espera é o exercício responsável da função judicante do agente estatal (NETO, ca. 2018).
A propósito, assim justifica-se:
“(...) Veda, assim, motivações decisórias vazias, apenas retóricas ou principiológicas, sem análise prévia de fatos e de impactos. Obriga o julgador a avaliar, na motivação, a partir de elementos idôneos coligidos no processo administrativo, judicial ou de controle, as consequências práticas d e sua decisão. E, claro, esse dever se torna ainda mais importante quando há pluralidade de alternativas. Quem decide não pode ser voluntarista, usar meras intuições, improvisar ou se limitar a invocar fórmulas gerais como 'interesse público', 'princípio da moralidade' e outras. É preciso, com base em dados trazidos ao processo decisório, analisar problemas, opções e consequências reais. Afinal, as decisões estatais de qualquer seara produzem efeitos práticos no mundo e não apenas no plano das ideias (...)” (NETO, ca. 2018, P.4).
Como já ressaltado, a Ciência Jurídica é marcada pela imprecisão. Isso decorre da impossibilidade fática do legislador antecipar todas as particularidades dos casos que se pretendeu regular.
Nesse sentido, Flávio Henrique Unes Pereira destaca que “a inteligência e o tempo do legislador são finitos”, e por isso ordenamento jurídico é permeado por cláusulas abertas (lacunas propositadamente deixadas pelo legislador para que a decisão seja tomada com base no caso concreto e valores constitucionalmente previstos), e conceitos jurídicos indeterminados (vocábulos ou palavras com vagueza semântica inseridos no bojo de uma regra para permitir ao juiz melhor análise do caso concreto), que devem ser preenchidas no caso concreto.
Porém, este preenchimento não pode ser feito com discricionariedade, sob pena de violar o disposto no art.93, IX e X da Constituição Federal de 1988, acrescido pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que prevê a necessidade de fundamentação e motivação das decisões. Ressalte-se que a motivação da decisão, para além de esclarecer à parte os motivos que orientaram a decisão, possuindo importância endoprocessual, também possui importância extraprocessual, na medida em que possibilita o controle judiciário, sendo, portanto, garantia individual fundamental.
Nesse mesmo sentido, vem sendo editados, nos últimos tempos, vários diplomas legais que homenageiam a referida garantia Constitucional como, por exemplo, o Novo Código de Processo Civil (Lei nº. 13.105/2015) ao prever que a decisão não fundamentada é reputada nula (art.11 do Código de Processo Civil) e o que não pode se considerar uma decisão fundamentada (art.489, §1º do Código de Processo Civil).
A norma em comento objetiva, sobretudo, tolher a arbitrariedade descisória, ao impedir que os valores jurídicos abstratos (dignidade da pessoa humana, moralidade, etc.) possam ser utilizados de forma indiscriminada para produzir decisões que impõe graves ônus à administração pública, ao atribuir-lhe encargos não previsto no seu planejamento orçamentário. Assim destaca-se:
Com base na força normativa dos princípios constitucionais, o Poder Judiciário, nos últimos anos, condenou o Poder Público a implementar uma série de medidas destinadas a assegurar direitos que estavam sendo desrespeitados. Vamos relembrar alguns exemplos:
• Município condenado a fornecer vaga em creche a criança de até 5 anos de idade (STF. RE 956475, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 12/05/2016).
• Administração Pública condenada a manter estoque mínimo de determinado medicamento utilizado no combate a certa doença grave, de modo a evitar novas interrupções no tratamento (STF. 1ª Turma. RE 429903/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 25/6/2014).
• Estado condenado a garantir o direito a acessibilidade em prédios públicos (STF. 1ª Turma. RE 440028/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/10/2013).
• Poder Público condenado a realizar obras emergenciais em estabelecimento prisional (STF. Plenário. RE 592581/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 13/8/2015). (CAVALCANTE, 2019, P.1)
Os artigos, nesse entender, são instrumentos normativos balizadores das decisões judiciais, impondo-lhe nada mais do que novos critérios a serem observados para consolidar o consagrado princípio constitucional da fundamentação das decisões.
Como destaca Flávio Henrique Unes Pereira:
“(...) o projeto de lei em estudo contribuirá muito para desmascarar as motivações mascaradas, pois, para a decisão ser válida, ela não poderá se limitar a termos indeterminados (António Francisco de Sousa. Conceitos jurídicos indeterminados no direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1994), desprovidos do exame proposto pelo bem-vindo art. 20 que, oxalá, tornar-se-á realidade em breve. A motivação, desse modo, ganhará espaço, a partir dessas novas balizas, na gramática democrática que funda a República Federativa do Brasil. (...)” (PEREIRA, ANASTASIA, 2015, P.19).
Destarte, o objetivo das alterações promovidas na LINDB foi justamente dar previsibilidade e estabilidade decisória, trazendo ao gestor mais segurança jurídica para efetivar políticas públicas ao imputar maior responsabilidade descisória aos órgãos de controle, sejam eles legislativos ou judiciários.
7 METODOLOGIA
No presente trabalho foi utilizado como método o levantamento bibliográfico, no qual foram selecionadas diversas doutrinas tidas como referências nas áreas do Direito Administrativo, Constitucional e Processual Civil. Referida metodologia foi escolhida para trazer maior credibilidade e profundidade ao tema central, eis que bastante atual.
Também foram analisados diversos pareceres técnicos emitidos por órgãos da estrutura do Tribunal de Constas da União e do Ministério Público Federal, e da nota técnica conjunta emitida pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais de Contas e pela Associação Nacional do Ministério Público de Contas.
O estudo deste trabalho será fundamentado em ideias e pressupostos de teóricos que apresentam significativa importância na definição e construção dos conceitos discutidos nesta análise: segurança jurídica, fundamentação, estabilidade descisória, arbitrariedade descisional, dentre outros.
Outrossim, como tipo de pesquisa, foi estabelecida a pesquisa indireta, em que se utiliza dados coletados por juristas renomados no âmbito do Direito Público.
Destarte, o trabalho utilizará o método conceitual-analítico, com o objetivo de conciliar conceitos e ideias de vários autores para a construção de uma análise coerente sobre o tema proposto.
Ademais, para a coleta de dados, partiu-se de um levantamento documental, no qual foi realizada uma análise legislativa, em especial da Lei n.º 13.655/2018, assim como de artigos científicos e bibliografias de profissionais já renomados.
O método de pesquisa escolhido favorece a análise ampla de diversos posicionamentos, teorias e opiniões, possibilitando a ocorrência de diversas conclusões no decorrer do percurso, não obrigando atribuir uma resposta única e universal a respeito do objeto.
8.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a publicação da Lei n.º 13.655/2018, foram incluídos 10 novos artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, quais seja: os arts. 20 a 30 (o artigo 25 foi objeto de veto presidencial).
Como explicado, as inovações trazidas pela Lei nº 13.655/18 tratam-se de verdadeira leitura hermenêutica do direito público, e considerando a aplicabilidade das normas ali previstas como aplicáveis a todo o ordenamento jurídico, mais precisamente no âmbito do Direito Administrativo é possível afirmar que as alterações feitas na LINDB possuem grande relevância jurídica e prática.
Dada sua relevância, a inserção desses artigos propulsionou várias discussões doutrinárias. Dentre elas, destaca-se, no presente trabalho, a realizada em torno do artigo 20 da referida lei. Dessa forma foi necessária a realização da análise do dispositivo a partir do estudo da doutrina, dos princípios do Direito Administrativo, bem como dos artigos científicos publicados sobre o tema.
A partir das informações colhidas, percebe-se que vários doutrinadores defendem que a Lei n.º 13.655/2018 visa trazer maior segurança jurídica ao ordenamento jurídico, entendendo que as alterações promovidas na LINDB significaram grande avanço ao tentar promover um ambiente de menor instabilidade interpretativa para os agentes públicos e atos administrativos, os quais durante muito tempo ficaram reféns do alvedrio do judiciário e dos órgãos de controle. Outros, por sua vez, entendem o diploma legal como tentativa de amordaçar a liberdade descisória dos entes incumbidos desse papel, concluindo que as modificações podem ocasionar, na prática, verdadeiro enfraquecimento do controle da administração pública por parte do judiciário e dos Tribunais de Conta.
Com efeito, analisando os resultados colhidos, entende-se que essas modificações não significam um enfraquecimento do controle por parte do judiciário e dos Tribunais de Conta, mas sim reforça a exigência de coerência e estabilidade decisória que deve estar presente em qualquer decisão de caráter sancionatório ou correcional.
No presente trabalho pode-se observar que as normas jurídicas são dotadas de algum grau de abstração, que lhes é intrínseco por serem destinadas à regular múltiplas hipóteses e não casos específicos. Tal característica gera, por si só, cenário de insegurança aos jurisdicionados, que não conseguem prever qual norma será aplicada ao seu caso, não possuindo baliza segura para determinar suas condutas.
Entretanto, o que se observa atualmente, é que esse cenário de insegurança inerente às leis vem sendo ampliado pelo fenômeno do descisionismo, em que os julgadores impõem a sua vontade acima da “vontade da lei”, como nomearia Konrad Hesse[6]. Os julgadores adotam assim qualquer metodologia hermenêutica para, ao final, decidir como bem entendem, não observando os efeitos práticos de sua decisão, sobretudo no que concerne aos ônus demasiadamente graves impostos ao poder executivo.
Dessa forma, o art. 20 da mencionada legislação fomenta o princípio da motivação dos atos decisórios, garantia constitucionalmente prevista no art.93, incisos IX e X da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, com o escopo de reduzir o subjetivismo e a superficialidade das decisões. Por outro lado, reforça, também, o princípio da segurança jurídica ao impor ao descisor verdadeira hermenêutica jurídica que deve ser observada ao proferir suas decisões, garantindo ao juriscionado, mais especificadamente ao poder executivo, segurança na hora de tomar as decisões políticas que lhe incumbem. Por fim, o referido dispositivo ainda desenvolve o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, tendo em vista que prevê serem indispensáveis a demonstração da necessidade e adequação da medida imposta ou da invalidação do ato.
Destarte, infere-se que vários princípios do Direito Administrativo foram realçados, pela referida legislação que, como esboçado em sua ementa, objetivou incluir no ordenamento jurídico “disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.
Considerando que o objetivo do trabalho foi entender a aplicabilidade do artigo 20, inserido pela Lei nº 13.655/18 e compreender quais as vantagens e desvantagens de sua aplicação para a interpretação do direito público, sobretudo na área administrativa, conclui-se que ao final, a Lei n.º 13.655/2018 cumpriu seus objetivos ao propugnar balizas hermenêuticas a serem adotadas pelos julgadores com o fim de estabelecer maior segurança em nosso ordenamento jurídico.
REFERÊNCIAS
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BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 236.
BENJAMIN. Cássio Corrêa. O que é uma Constituição? Decisionismo como estrutura em Carl Schimitt. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. Volume 111. Janeiro de 2016/ Dezembro 2016. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/133510/129522
BRASIL. Decreto 9.830, de junho de 2019. Regulamenta o disposto nos art. 20 ao art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, que institui a Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro. Diário Oficial: Brasília, 10 de junho de 2019.
BRASIL. Lei 13.655, de abril de 2018. Inclui no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Diário Oficial: Brasília, 25 de abril de 2018.
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[1] Refere-se às Constituições dogmáticas que se fundam em várias ideologias.
[2] Refere-se às Constituições caracterizadas pela existência, em seus textos, de normas programáticas, dirigindo a atuação futura dos órgãos governamentais.
[3] Segundo Ana Paula de Barcellos, a expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. A reserva do possível significa traduz-se na ideia do que se pode exigir judicialmente do Estado, devendo sopesar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos.
[4] Segundo o parecer da consultoria jurídica do Tribunal de Contas da União o Relatório de Políticas e Programas de Governo, desenvolvido em cumprimento ao disposto no art. 123 da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2018, apresenta como achado fundamental a existência de déficits institucionais de governança e de gestão da Administração Pública Federal que produzem ineficiências generalizadas no gasto público federal.
[5] Segundo nota técnica das 1ª, 2ª, 3ª, 4ª, 5ª e 7ª Câmaras de Coordenação e Revisão e da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão pelo veto integral ao PL 7448/2017 do Ministério Público Federal.
[6] Em seu texto “A Força Normativa da Constituição”, Konrad Hesse defende que a Constituição é muito mais do que um pedaço de papel, ou texto formal, defendendo que ela seria dotada de uma força normativa. No entender do autor essa força normativa da Constituição tem seu fundamento na vontade humana de obedecer as leis, vontade essa nomeada “vontade da Constituição”, manifestada no desejo de concretizar as normas ali descritas.
Graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Vencedora do prêmio "Raphael Magalhães e Cândido Naves" que a Faculdade concede ao bacharelando que obtiver a melhor desempenho na disciplina Direito Processual Civil, do ano de 2018, selecionada entre os melhores alunos da disciplina naquele ano. Atualmente é Assessora do Procurador de Justiça Dr. Cláudio Emanuel da Cunha no Ministério Público de Minas Gerais. Anteriormente, realizou estágio supervisionado em importantes órgãos da Administração Pública, como na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, na Defensoria Pública da União e na Procuradoria Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Penal e Processual Penal, Direito Tributário e Processual Tributário, Direito Civil e Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUARTE, ANNA LUIZA MATTOS. Modificações na Lei de Introdução ao Direito Brasileiro feitas pela Lei nº 13.655/18 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 maio 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61512/modificaes-na-lei-de-introduo-ao-direito-brasileiro-feitas-pela-lei-n-13-655-18. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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