RESUMO: Este artigo trata a respeito das alterações trazidas pela omissão legislativa e pelo ativismo judicial no Brasil, analisando-se as narrativas sobre os choques entre os poderes oriundos do empoderamento do Poder Judiciário, como resultado do déficit democrático dos demais poderes, com a finalidade de mostrar aos leitores que esse processo relaciona-se com a democracia, podendo ou não afetar a estabilidade do Estado Democrático de Direito.
ABSTRACT: This article brings light to the changes brought by legislative omission and the judicial activism in Brazil, and also analyzes the narratives on the clashes between the powers arising from the empowerment of the Judiciary, as the result of the democratical deficit from the others powers, with the goal of showing reader this process is related to the democracy, and the way it may or may not affect the stability of the democratic rule of law.
PALAVRAS-CHAVE: Ativismo Judicial, Paternalização do Direito, Democracia, Cidadania
KEYWORDS: Judicial Activism, Paternalization of Law, Democracy, Citizenship
INTRODUÇÃO
A busca constante por segurança jurídica por meio do processo de codificação do Direito, notadamente mais intenso após o Código de Napoleão de 1804, fez com que surgisse um novo paradigma: até que ponto a legalidade baseada apenas na retidão da lei formal seria o modelo ideal?
Atrocidades oriundas dos regimes totalitários fizeram com que a interpretação formal-positivista do Direito fosse definitivamente posta em cheque. Surgiu um novo modo de compreensão da ciência do Direito: a doutrina “pós-positivista” ou “neopositivista”, lastreada em uma concepção formal-valorativa do arcabouço normativo.
O legislador, ao elaborar a Constituinte de 1988, não fugiu ao modelo de codificação. Pelo contrário, temendo a manutenção ou retorno do período obscuro da ditadura, criou-se uma Constituição analítica, pormenorizada. Estabeleceu-se, por exemplo, a forma republicana de governo, com fundamento axiológico na dignidade humana, sem olvidar da separação dos poderes e do estabelecimento de objetivos republicanos. Também enunciou-se princípios para reger as relações internacionais, direitos e garantias fundamentais, além de conferir maior rigidez às partes do texto constitucional consideradas chave do sistema (cláusulas pétreas).
Entretanto, apesar do esforço em oferecer uma tutela efetiva ao povo, a realidade mostrou-se bastante diversa do ideal. A omissão legislativa, a adoção do modelo burocrático de administração, a improbidade, o descaso com a coisa pública, dentre outros, fez com que direitos e garantias constitucionalmente consagrados fossem diuturnamente vilipendiados. Muitos desses direitos, previstos ou entendidos como normas de eficácia limitada, revelaram-se como meros compromissos dilatórios. Assim, a atuação deficitária dos poderes Legislativo e Executivo na concretização desses direitos acabou por permitir a expansão do Judiciário em áreas alheias às suas competências típicas.
A ignorância do povo e o seu afastamento das esferas de decisão política acabou por permitir que o Legislativo atuasse de acordo com os seus próprios interesses, ou mesmo segundo a vontade das minorias elitistas financiadoras das campanhas eleitorais. Essa omissão dos poderes Legislativo e Executivo, especialmente na implementação e concretização de políticas públicas, resultou em um empoderamento do Judiciário, que passou a atuar como supridor de lacunas, como instância de busca da justiça.
Esse fenômeno de empoderamento do Judiciário, apesar de mostrar-se bastante eficaz para resolver determinadas demandas, também trouxe à baila a questão da separação dos poderes e da interdependência entre eles, emergindo debates acerca da legitimidade do ativismo judicial. Por esse motivo, é relevante a reflexão acerca da função institucional desses poderes, inclusive o controle recíproco, e sobre as possíveis consequências desse novo cenário jurídico-político que se manifesta.
1. DEMOCRACIA E DIREITO: ASPECTOS GERAIS
O Direito surge como ferramenta hábil a organizar a sociedade e produzir certa segurança jurídica, pacificando os conflitos sociais, preservando a liberdade, integrando os povos e legitimando o poder. A democracia (demo=povo; kratos=poder), por outro lado, surge como forma de imputação desse poder.
Isso quer dizer que, se o Estado é criado visando à tutela de interesses coletivos, nada mais justo que os tutelados participem das decisões e ações políticas que os afetarão direta ou indiretamente. Essa participação pode se dar de forma direta (democracia pura) ou indireta (democracia representativa).
O procedimento legislativo democrático se caracteriza por tornar o caráter vinculante do direito dependente de discursos e procedimentos decisórios públicos, nos quais todos os cidadãos têm o direito de tomar parte. Cidadãos em uma democracia não são apenas destinatários, mas também autores de suas normas jurídicas. (GÜNTHER, 2006, p. 225)
Entretanto, a participação popular não é bastante em si. O Direito legítimo não é aquele que decorre de princípios absolutos ou de formalismos preestabelecidos, mas o que revela os anseios e necessidades do povo. Desse modo, a consciência dos destinatários das normas jurídicas é de extrema importância para a legitimidade do Direito posto. Sem ela, há o risco de haver exteriorização de vontades alheias ao interesse coletivo, vontades essas que acabam por perseverar ante a omissão dos nativos detentores do poder político.
Nesse contexto, é relevante a atuação da pessoa de forma deliberativa. Para GÜNTHER, 2006, p. 229, isso ocorre quando o indivíduo é cidadão e pessoa de direito. Cidadão, ao ser autor de normas jurídicas e se posicionar criticamente em relação a elas. Pessoa de direito, quando torna-se destinatário das normas que ajudou a elaborar.
Sem isso, há risco de o Direito ser elaborado baseando-se apenas no procedimento ou em uma moralidade legislativa. O que pode provocar incompatibilidade quanto à vontade do cidadão, não permitindo que haja manifestação popular e não conferindo legitimidade à norma produzida. Ele afirma, ainda, que a teoria do discurso do direito visa precisar a dupla intuição em relação à legitimidade do direito.
(...) São os próprios cidadãos que decidem sobre o direito posto e que o procedimento jurídico de decisão é racional, ou seja, permite o exame de propostas de normas por meio de crítica argumentativa. Com essas características, a teoria do discurso do direito distingue-se tanto das teorias que buscam um princípio absoluto de moral ou de ética política como fundamento material de legitimação do direito quanto das teorias formais que se contentam com qualquer procedimento de criação de direito, simplesmente previsto por normas secundárias. Ela se diferencia também das teorias que, no lugar de princípios materiais ou procedimentos formais, baseiam-se na pessoa e suas aptidões e características, especialmente na razão, em que todas as pessoas se igualam. (GÜNTHER, 2006, p. 223)
Dessa ideia de participação efetiva do indivíduo na política e na elaboração do Direito, surge o conceito de cidadania. Esta, existiria quando os indivíduos que habitam um determinado território possuem capacidade de interferir na soberania, não sendo meros destinatários das leis do Estado. No entanto, para Maria de Lourdes Cerquier-Manzini, o termo comporta definições distintas, e até mesmo opostas.
O que é ser cidadão? Para muita gente, ser cidadão confunde-se com o direito de votar. Mas quem já teve alguma experiência política – no bairro, igreja, escola, sindicato etc. – sabe que o ato de votar não garante nenhuma cidadania se não vier acompanhado de determinadas condições de nível econômico, político, social e cultural. Podemos afirmar que ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser súdito e soberano. Tal situação está descrita na Carta de Direitos da ONU (Organização das Nações Unidas), de 1948, que tem suas primeiras matrizes marcantes nas cartas de Direito dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1798). Sua proposta mais funda é a de que todos os homens são iguais perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor. E ainda: a todos cabe o domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a um salário condizente para promover a própria vida, o direito à educação, à saúde, à habitação, ao lazer. E mais: é direito de todos poder expressar-se livremente, militar em partidos e sindicatos, fomentar movimentos sociais, lutar por seus valores. Enfim, o direito de ter uma vida digna como ser humano. (CERQUIER-MANZINI, 2010,p. 11-12)
Importante salientar que, quando se fala em Estado Democrático de Direito, há também a submissão do Estado às leis. Além de que este só adquire posição de vantagem em relação ao indivíduo quando em defesa do interesse geral e abstrato. Quando os representantes políticos investidos no poder se afastam dessa máxima é criada uma ditadura, na qual o Estado, valendo-se da justificativa de defesa dos interesses coletivos, acaba por legitimar suas próprias condutas, mesmo que contrárias ao interesse público.
Essa posição autossuficiente do Estado em relação ao indivíduo não possui guarida no Estado Democrático de Direito. Neste, o povo é o titular do poder e deve ser o destinatário das decisões legislativas e administrativas. E mais, o representante político, ao exercer um cargo político, deve estar ciente de que as prerrogativas e imunidades pertencem ao cargo, não a ele.
1.1. DEMOCRACIA E REPRESENTAÇÃO POPULAR NO BRASIL
É fato que no campo das Ciências Sociais a multiplicidade de pontos de vista é uma máxima. Em relação à globalização, apesar de haver divergências sobre como e quando ela se deu, existe um consenso de que nos últimos anos ela se tornou mais intensa, promovendo uma interligação entre os povos de todo o globo de forma nunca antes vista.
O alargamento das relações sociais, comerciais e políticas exigiram do legislador maior amplitude em suas decisões ao elaborar a norma jurídica. Não bastando isso, também tornou-se cada vez mais corriqueiro o surgimento de direitos e garantias internacionais, patamares mínimos exigidos daqueles Estados para que integrem determinado bloco econômico, usufruam determinado benefício, etc.
Esses fatores fizeram com que a busca pela estabilidade jurídica também se tornasse uma máxima a ser alcançada por esses Estados. Não só pela exigência dos investidores estrangeiros, que procuram locais seguros para empregarem seus capitais, mas também pela imposição de organismos internacionais que passaram a ser mais atuantes, notadamente em relação aos direitos da pessoa humana.
Vimos que o direito serve para ordenar a sociedade. A ideia da ordem se resolve na ideia de estabilidade. O caos é essencialmente instável. Entre a sociedade em desordem e a sociedade ordenada há a mesma diferença que entre um monte de materiais e um edifício. Um edifício tem o caráter de estabilidade. Estável é algo que está. Por isso a sociedade juridicamente ordenada se chama Estado. A ideia de direito e a ideia de Estado estão, portanto, intimamente relacionadas: não há Estado sem direito e nem direito sem Estado (...). (CARNELUTTI, 2007, p. 39)
Todavia, a existência de um Direito posto e de um Estado constituído e sólido não quer dizer que ele servirá aos anseios do povo. Por esse motivo, foram criados mecanismos para evitar o restabelecimento do absolutismo e permitir maior aproximação ao ideal de democracia. Nessa lógica, a separação dos poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos (checks and balances) foram mecanismos políticos propostos no intuito de manter o equilíbrio entre os poderes estruturais do Estado.
Depois de tudo o que acabamos de dizer, parece que a natureza humana dever-se-ia revoltar incessantemente contra o governo despótico; entretanto, a despeito do amor dos homens pela liberdade e de seu ódio contra a violência, os povos, em sua maior parte, estão a ele submetidos. Isso se compreende facilmente. Para formar um governo moderado é necessário combinar poderes, regulamentá-los, fazê-los agir; dar, por assim dizer, lastro a um deles, para colocá-lo em condição de resistir a outro; e isto é uma obra-prima de legislação que o acaso raramente produz, e também raramente deixa-se à prudência fazer. (MONTESQUIEU, 2008, p. 76)
Para Montesquieu, o poder deveria ser fracionado para ser exercido de forma mais democrática e de modo que um poder fiscalize a atuação do outro. Por outro lado, a elaboração de Constituições escritas foi um fator determinante para o estabelecimento desse novo modelo jurídico-político que foi trazido pela Revolução Francesa. Nesse modelo francês, havia repulsa à hipertrofia do Judiciário e do Executivo, por motivos históricos, levando os holofotes para o Legislativo, tido como legítimo Poder de representação popular. No entanto, sem conferir a este um patamar de superioridade em relação aos demais.
O mais importante e avançado dentre os artigos da famosa Declaração francesa de agosto de 1789, o artigo 16, implicitamente declara guerra a todos os regimes que não possuem constituição democrática, ao afirmar que “uma sociedade na qual a obediência à lei não está assegurada, nem tampouco a separação dos poderes definida, não possui constituição alguma”. Por causa da combinação dinâmica entre direitos universais e normas procedimentais de auto--organização, todas as implicações cosmopolitas são intrínsecas a todas as constituições democráticas e, por exemplo, os artigos 23 (1), 24 (1) e 25 da Lei Fundamental Alemã de 1948 são meros passos ulteriores que levam todos na mesma direção da autotranscendência democrática cosmopolita. (BRUNKHORST, 2011, p. 16)
Nesse cenário, houve uma expansão da constitucionalização do Direito e o surgimento de movimentos sociais, especialmente operários e feministas, visando ao respeito da dignidade da pessoa humana e à igualdade material. Emergiram, portanto, questionamentos sobre a mera igualdade formal posta pelo Direito, junto ao absenteísmo Estatal, especialmente porque mostraram-se incapazes de tutelar efetivamente os direitos previstos nos códigos.
Segundo BRUNKHORST apud MARKS, 2011, p.16, a constitucionalização e a transnacionalização do Direito não ocorreu de forma repentina, pelo contrário, resultaram das duas grandes guerras do século XX e de revoluções “travadas não apenas em nome do interesse nacional ou do interesse de uma classe específica, mas também em vista de metas e normas universais, pela democracia, pelos direitos humanos e pelo socialismo”.
Atualmente, a nova ordem cosmopolita inclui: (1) a permanentemente crescente juridicização da sociedade mundial (Bogdandy et al., 2009), (2) a emergência de algum tipo de hierarquia normativa (Peters, 2006, vol. 19; Fassbender, 2009, pp. 103ss)(como no caso nacional dos Estados Unidos ou no caso da União Européia (EU) se tornando compatível com um certo tipo de “pluralismo constitucional”) (Halberstam, 2008), e (3) o acoplamento estrutural dos sistemas jurídico e político mundiais (Di Fabio, 1998, pp. 106ss). Portanto, a atual ordem cosmopolita já é uma ordem constitucional, ao mesmo tempo cosmopolita e marcada por fortes elementos de estabilidade em níveis pós-nacionais. (...) Essa ordem mundial cosmopolita, em seu cerne institucional, foi delineada e efetivada após a Primeira Guerra Mundial, sem sucesso, e posteriormente de forma bem-sucedida, entre 1941 e 1951; e a partir de 1989, tornou-se a ordem cosmopolita de todo o planeta. Contudo, está longe de ser democrática, pois não é constitucionalizada plenamente, como veremos adiante. (BRUNKHORST, 2011, p. 9)
Contudo, o Estado Constitucional de Direito brasileiro possui características singulares. Exemplo disso é que temos uma democracia ainda incipiente, mas já marcada por golpes cívico-militares e contragolpes. Ademais, é nítido o apagamento histórico das lutas por independência e acesso a direitos, criando-se no imaginário popular a ideia de que os direitos conquistados foram concedidos pela benevolência dos soberanos e representantes.
Por esse motivo, é latente a vulnerabilidade de democracias recentes como a brasileira. Logo, quando se fala em pessoa deliberativa no Brasil é perceptível que a dupla face desse conceito não existe em sua plenitude. O problema disso é que esse distanciamento do povo dos núcleos de onde emanam as leis e regulamentos faz com que haja um enfraquecimento do processo democrático.
Essa ausência popular na determinação dos rumos políticos do Estado permite a manutenção de núcleos paralelos de poder. Estes não representam o povo e os interesses oriundos da vivência social, mas promovem e legitimam os seus próprios interesses. Desse modo, as leis, que seriam a mais poderosa ferramenta de limitação do poder arbitrário e de garantia da igualdade material, acabam por revelar as paixões e caprichos de uma pequena classe. Esta, se vale do Estado para a consecução de interesses próprios, relegando o interesse público a segundo plano.
Apenas com boas leis se podem impedir esses abusos. Mas, frequentemente os homens deixam as leis provisórias e à prudência ocasional o cuidado de regular os negócios mais importantes, quando não os confiam à vontade daqueles que têm interesse em se opor a melhores instituições e às leis sábias. Além disso, apenas depois de terem pervagado por muito tempo em meio aos erros mais prejudiciais, depois de terem exposto mil vezes a própria liberdade e a própria existência é que, cansados de sofrer, reduzidos aos últimos extremo, os homens se determinam a remediar os males que os atormentam. (...) Percorramos a História e constatemos que as leis, que deveriam constituir convenções estabelecidas livremente entre homens livres, quase sempre não foram mais do que o instrumento das paixões da minoria, ou fruto do acaso e do momento, e nunca a obra de um prudente observador da natureza humana, que tenham sabido orientar todas as ações da sociedade com esta finalidade única: todo o bem-estar possível da maioria.” (BECCARIA, 2007, p. 15-16)
Entretanto, como falar em participação popular em uma sociedade onde a maioria não possui o mínimo existencial, como moradia, educação, alimentação e trabalhos dignos?
Percebe-se, ademais, que esses fatores são condicionantes para a formação de uma pessoa deliberativa. Sem isso, as pessoas não serão mais do que um contingente de indivíduos que ocupam determinado território e nele se fixam em busca de sobrevivência. Assim, não serão cidadãos de fato e não influenciarão nos rumos políticos do Estado.
2. ATIVISMO JUDICIAL E PATERNALIZAÇÃO DO DIREITO
O ativismo judicial pode ser conceituado como uma postura proativa do Poder Judiciário na concretização de direitos fundamentais, especialmente ante à omissão dos demais poderes. Contudo, segundo MAUS, 2000, p. 185, esse fenômeno não ocorreu de forma isolada e nem regionalizada, mas decorreu de um processo de paternalização do Direito em diferentes regiões do mundo.
Assim, a figura do pai foi perdendo significância nas últimas décadas. De outra mão, os sujeitos passaram a transferir a ausência deste ao Estado, desenvolvendo um clássico modelo de superego.
Nos anos 1960 Hebert Marcuse constatava o “envelhecimento da psicanálise”, ou mais precisamente “o envelhecimento de seu objeto”. Na definição do ego. A construção de uma consciência individual passa a ser determinada muito mais pelas diretrizes sociais do que pela intermediação da figura dominante do pai, e a sociedade se vê cada vez menos integrada por meio de um âmbito pessoal, no qual se pudesse aplicar a seus atores o clássico modelo do superego. Ambas as tendências levaram a relações em que tanto o poder perde em visibilidade e acessibilidade como a sociabilidade individual perde a capacidade de submeter as normas sociais à crítica autônoma. Por isso a “sociedade órfã” ratifica paradoxalmente o infantilismo dos sujeitos, já que a consciência de suas relações sociais de dependência diminui. Indivíduo e coletividade, transformados em meros objetos administrados, podem ser facilmente conduzidos por meio da reificação e dos mecanismos funcionais da sociedade industrial moderna. (MAUS, 2000, p. 185)
Nesse espectro, uma série de acontecimentos fez com que o Judiciário passasse a abarcar a responsabilidade pela solução das injustiças sociais, grande parte resultante da omissão do próprio Legislativo. No Brasil, assistimos nos últimos anos a uma ampliação objetiva das funções do Judiciário (expansão da jurisdição constitucional), com a progressiva aceitabilidade de certo ativismo judicial, havendo a possibilidade de controle judicial sobre as políticas públicas (judicialização da política).
Segundo LENZA apud BARROSO, 2022, p. 203-204, as Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais passaram a ter relevante papel representativo, apesar de seus juízes não possuírem mandato em decorrência de eleição popular. Contudo, isso se dá porque, em certos casos, a decisão dessas Cortes está mais alinhada à vontade do povo do que as normas elaboradas pelos próprios representantes eleitos.
Segundo constata, é possível reconhecer uma “crise de legitimidade, representatividade e funcionalidade dos Parlamentos”, o que levou a uma “expansão do Poder Judiciário e, notadamente, das Supremas Cortes”.
Assim, “em certos contextos, por paradoxal que pareça, Cortes acabam sendo mais representativas dos anseios e demandas sociais do que as instâncias políticas tradicionais”. (LENZA apud BARROSO, 2022, p. 203-204)
ssim, o paradigma está na representatividade que a justiça passou a ter para a sociedade. Ela foi entronizada e elevada à categoria de instância máxima de justeza, podendo ser comparada a uma divindade, aquela que por todos intercede e tudo resolve. Ela passou a representar o pai da sociedade moderna órfã, contrariando a lógica do sistema representativo político. Esse fenômeno ocasionou enorme acúmulo de processos no Judiciário, além de estimular uma cultura de litigiosidade.
Além disso, se a justiça adquire posição paternalística, de superioridade e de mais elevada instância moral, há também a “deusificação” das pessoas que ocupam certos cargos públicos, resultando em personificações danosas à sociedade, como mostra a história recente.
Nesse sentido, no imaginário popular, as decisões desses indivíduos tidos como heróis, ou mitos, seriam uma espécie de manifestação divina e, por isso, insuscetíveis de questionamentos. Aos ”súditos” não restaria alternativa senão se curvar aos ditames dos senhores, sob risco de serem lançados à condição de inimigos da pátria.
O retorno mais marcante da imagem do pai parece revelar-se no exame da jurisdição constitucional dos Estados Unidos. Nesse país, que já desenvolvera um modo original de controle judicial da constitucionalidade desde o começo do século XIX, tal retorno é indicado pelo surgimento de uma vasta literatura a respeito de biografia dos juizes. Na visão retrospectiva do século XX, a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana apresenta-se como obra das marcantes personalidades de juizes que fizeram sua historia constitucional, os quais aparecem como “profetas” ou “deuses do Olimpo do direito” (grifos nossos). Nessas representações se revela mais que em qualquer outro campo a atual tendência ao biografismo, que demonstra uma reação passiva da personalidade em face de uma sociedade dominada por mecanismos objetivos. O aspecto típico dessas biografias de juízes parece se configurar na idéia – que suscita algo como uma reedição dos antigos “espelhos dos príncipes” – de que os pressupostos para uma decisão racional e justa residem exatamente na formação da personalidade dos juízes. (MAUS, 2000, p. 185)
Criou-se, assim, a ideia de que o julgador é justo porque a ele cabe tomar decisões justas. Para MAUS, 2000, “nesta fuga da complexidade por parte de uma sociedade na qual a objetividade dos valores está em questão não é difícil reconhecer o clássico modelo de transferência do superego”. A crítica que se faz, portanto, é a elevação dos julgadores à condição de detentores da verdade absoluta, como se fossem as únicas fontes legítimas do Direito.
Cada homem tem sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos. O espírito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou da má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou penosa, da debilidade do acusado, da violência das paixões do magistrado, de suas relações com o ofendido, enfim, da reunião de todas as pequenas causas que modificam as aparências e transmutam a natureza dos objetos no espírito mutável do homem. Veríamos, desse modo, a sorte de um cidadão mudar de face ao transferir-se para outro tribunal, e a vida dos desgraçados estaria á mercê de um errôneo raciocínio ou a bile de um juiz. Constaríamos que o juiz interpreta apressadamente as leis, segundo as ideias vagas e obscuras que estivessem, no momento, em seu espírito. (BECCARIA, 2007, p. 23)
Nota-se que escritores clássicos como BECCARIA já alertavam quanto à relatividade do conhecimento, o qual pode variar em relação ao tempo e espaço. Isso porque cada pessoa vê algo de forma diversa e a mesma pessoa vê a mesma coisa de forma diferente em épocas distintas. Ademais, uma mesma pessoa pode ter concepções desiguais de acordo com o humor que revela naquele momento.
Por isso, uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição e das leis seria a forma mais segura de tutelar os direitos da sociedade. Nesse modelo, a interpretação do ordenamento jurídico não envolve apenas poderes estatais, órgãos públicos e seus agentes, mas também os próprios cidadãos e grupos sociais. O Supremo Tribunal Federal tem adotado esse modelo nos chamados “hard cases”, estabelecendo audiências públicas e ampla participação popular, de modo a compensar o déficit democrático eventualmente delas decorrente.
Quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social – controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito de, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social. No desdobramento dessa tendência e de seus fundamentos – em que as condições sociais estruturais, assim como seu apoio em mecanismos psíquicos, devem ser levados em consideração -, convém investigar se se trata de uma simples regressão social ou antes de uma acomodação às condições do moderno e anônimo aparato de administração do Estado, em que todas as figuras paternas são obrigadas à abdicação. Pode ocorrer que penetre nesse foro interno aquela instância que compreende a si própria como moral e que, de maneira tão incontroversa, é reconhecida como consciência de toda a sociedade, de tal modo que a imagem paterna à qual se resiste atue concomitantemente como ponto de partida do clássico modelo de transferência do superego e como representante de mecanismos de integração despersonalizados. A pergunta a ser feita é, portanto, a seguinte: não será a justiça em sua atual conformação, além de substituta do imperador, o próprio monarca substituto? (MAUS, 2000, p. 1987)
MAUS, 2000, ao citar Emmanuel Sieyès, presidente da Assembleia Constituinte que escreveu a Constituição Francesa de 1791, traz ao debate a questão da perda da identidade entre o indivíduo e os seus direitos natos. Critica o fato de que as pessoas se acostumaram tanto à submissão estatal que elas olvidam do fato de que o Estado só existe porque elas permitiram que ele existisse. Que a existência desse ente só se justifica quando ele atua na defesa dos interesses de quem outorgou poder a ele (o povo).
E mais, quando a justiça é elevada à condição de supremacia, torna-se mais difícil fiscalizar e controlar os seus atos. Isso é perigoso porque pode resultar em um processo antidemocrático, substituindo-se o célebre aforismo “the king can do no wrong” pelo “the judge can do no wrong”.
Entre essas formulações aparentemente cumulativas existe uma correlação íntima que encontra sua razão de ser na premissa fundamental de Sièyes de que só pode considerar como “lei” aquilo que o povo decidiu para si mesmo – uma exigência que na teoria da criação legal de Sièyes é enfraquecida pela existência de representantes escolhidos pelo povo. Em todo caso, a autoridade protetora, ainda almejada por Sièyes, despe-se das vestes paternalistas que lhe caberiam com a “proteção da lei” e torna-se “delegada” da soberania legislativa do povo. A “proteção paternal do poder do Estado” de que fala Sièyes não mais detém prioridade, de modo que os direitos e liberdades dos “súditos” pudessem simplesmente ser ditados por ele; antes, este poder do Estado será originariamente derivado dos direitos de liberdade dos cidadãos e por eles limitado. A relação entre poder do Estado e cidadãos elabora-se assim como extremo oposto da forma tradicional da família dominada pela figura paterna. A concepção democrática de Estado inverte as relações “naturais”: nela os filhos aparecem em primeiro plano, sendo-lhes derivado o pai. (MAUS, 2000, p. 188)
No âmbito das liberdades civis tem-se que tudo que não é proibido é permitido. A lei, portanto, serve como ferramenta delimitadora do âmbito de atuação do aparato repressivo do Estado. Por outro lado, a omissão, a contradição, a obscuridade fazem com que haja uma prorrogação dos poderes do Judiciário, como decorrência lógica da inafastabilidade da jurisdição, em razão do dever-poder de solucionar o caso concreto posto em juízo (vedação do non liquet).
Este modelo traz consequências decisivas também para as relações entre Legislativo e Judiciário. Quando Sièyes diz que “a lei nada tem a permitir”, estendendo-se o campo da liberdade civil a “tudo o que ela não proíbe”, pronuncia-se por uma suposição básica e precursora em favor do cidadão, o qual aparece como interveniente posterior – e portanto sob a forma negativa de proibição em face de toda ação do Estado. O espaço original da liberdade dos cidadãos permanece tanto maior quanto menor for o do “proibido”. É de se exigir, portanto, o máximo de precisão das proibições legais, já que toda ambiguidade dilata o campo de ação do aparato estatal na aplicação das leis. (MAUS, 2000, p. 188)
Importante frisar que a clássica separação dos poderes proposta por Montesquieu visava garantir a autonomia e equidistância entre eles. O Legislativo, por ser aquele que representa a soberania popular, possuía, originariamente, posição de destaque em relação aos demais. Desse modo, havia estrita vinculação do Executivo e do Judiciário aos ditames da lei (juiz “boca da lei”).
Com o passar dos anos esse panorama foi sendo alterado e o Judiciário foi ocupando os espaços deixados pela omissão do Legislativo e do Executivo, notadamente na implementação das políticas públicas e efetivação de direitos fundamentais. Com esse fenômeno, o Poder Judiciário passou a ser visto pelo povo como a verdadeira instância moral, fazendo com que essa hipertrofia de seu poderio fosse legitimada pela vontade dos verdadeiros detentores do poder.
A introdução de pontos de vistas morais e de “valores” na jurisprudência não só lhe confere maior grau de legitimação, imunizando suas decisões contra qualquer crítica, como também conduz a uma liberação da Justiça de qualquer vinculação legal que pudesse garantir sua sintonização com a vontade popular. Toda menção a um dos princípios “superiores” ao direito escrito leva – quando a Justiça os invoca – à suspensão das disposições normativas individuais e a se decidir o caso concreto de forma inusitada. Assim, enriquecendo por pontos de vista morais, o âmbito das “proibições” legais pode ser arbitrariamente estendido ao campo extrajurídico das esferas da liberdade. Somente a posteriori, por ocasião de um processo legal, é que o cidadão experimenta o que lhe foi “proibido”, aprendendo a deduzir para o futuro o “permitido” (extremamente incerto) a partir das decisões dos tribunais. Os espaços de liberdade anteriores dos indivíduos se transformam então em produtos de decisão judicial fixados caso a caso. (MAUS, 2000, p. 190)
Como demonstrado, há um embate de narrativas entre qual modelo deve imperar, se cabe ao Judiciário adotar uma postura de autocontenção (como de outrora) ou ativista, de modo a evitar que os direitos e garantias fundamentais não sejam uma mera folha de papel (Lassale). Nesse ponto, destaca-se que a inação do Poder Judiciário já causou situações extremamente injustas no Brasil, especialmente quanto a minorias sub-representadas nos espaços de poder.
Em razão disso, devem ser refutadas as alegações de que a atuação do Judiciário na implementação de políticas públicas, especialmente aquelas relacionadas à concretização do mínimo existencial, afronta a separação dos poderes. Pelo contrário, essa atuação significa justamente que o mecanismo de freios e contrapesos está em funcionamento, evitando-se o chamado fenômeno da erosão da consciência constitucional (Karl Loewestein).
Todavia, vários pensadores criticam a abstrativização que está sendo conferida às normas, a exemplo das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, os quais dão certa liberalidade para que o julgador os interprete de acordo com o caso concreto, realizando a justiça. Criticam essas fórmulas pois permitiram uma grande subjetividade do julgador, o qual deixaria de ser mero intérprete do espírito da lei, passando a realizar a justiça segundo a realidade social e influenciado por suas convicções pessoais.
No entanto, as justificativas para que haja uma crescente descodificação do direito e a adoção cada vez mais acentuada das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados são vastas. Salientam que a dinamicidade das relações sociais no mundo globalizado não se coaduna com a edição de normas estáticas, que a norma abstrata não pode ser concretizada em todos os casos possíveis, que o Legislativo não responde à necessidade legiferante da sociedade, dentre outros.
Essa inversão das expectativas do direito não ocorre somente por meio da usurpação dos tribunais, mas também mediante a própria estrutura legal. Multiplicam-se de modo sintomático no direito moderno conceitos de teor moral como “má-fé”, “sem consciência”, “censurável”, que nem sempre são derivados de uma moral racional, mas antes constituem representações judiciais altamente tradicionalistas (ou politicamente autoritárias, como no caso da jurisprudência das Sitzblockade). A expectativa de que a justiça possa funcionar como instância moral não se manifesta somente em pressuposições de cláusulas legais, mas também na permanência de uma certa confiança popular. (MAUS, 2000, p. 190)
Entretanto, é preciso analisar de onde vem essas críticas ao denominado ativismo judicial. Não raro, observamos que os críticos costumam ocupar posições de privilégio, tendo interesse em que seja mantido o status quo das dinâmicas de poder. Como trabalhado anteriormente, as leis no sistema representativo atual costumam decorrer de uma elite política e econômica, a qual não possui interesse em alterar as estruturas de poder, o que acaba sendo ameaçado pela figura do juiz criativo.
2.1. O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA COMO CORTE CONSTITUCIONAL
Uma das recentes críticas de alguns setores da sociedade é de que as cortes constitucionais, como o Tribunal Federal Constitucional Alemão (TFC) e o Supremo Tribunal Federal (STF), conquistaram tamanha independência que, em certos aspectos, não mais se subordinam nem mesmo à Constituição. No Brasil, por exemplo, é possível que o STF dê interpretações antagônicas ao mesmo texto constitucional em épocas divergentes, fenômeno chamado pela doutrina de “mutação constitucional”.
Assim, a “competência” do TFC – como de qualquer outro órgão de controle de constitucionalidade – não deriva mais da própria Constituição, colocando-se em primeiro plano. Tal competência deriva diretamente de princípios de direito suprapositivos que o próprio Tribunal desenvolveu em sua atividade constitucional de controle normativo, o que leva a romper com os limites de qualquer “competência” constitucional. O TFC submete todas as outras instâncias políticas à Constituição por ele interpretada e aos princípios suprapositivos por ele afirmados, enquanto se libera ele próprio de qualquer vinculação às regras constitucionais. “Legibus solutus”: assim como o monarca absoluto de outrora, o tribunal que disponha de tal entendimento do conceito de Constituição encontra-se livre para tratar de litígios sociais como objetos cujo conteúdo já está previamente decidido na Constituição “corretamente interpretada”, podendo assim disfarçar o seu próprio decisionismmo sob o manto de uma “ordem de valores” submetida à Constituição. (MAUS, 2000, p. 192)
MAUS, 2000 chega a afirmar que a forma como esses tribunais aplicam os dispositivos constitucionais assemelha-se ao modo de cognição usado pelos que interpretam a Bíblia ou o Corão. Estaríamos, assim, diante de verdadeira “teologia constitucional”. Por esse motivo, esta veneração das decisões judiciais e o superego constitucional é naturalmente aceito pela sociedade.
Os tribunais ganhariam o status de guardiões da Constituição e se tornariam os reveladores da norma divinamente posta. Suas decisões seriam irrecorríveis, inquestionáveis e injustificáveis, como são os dogmas religiosos.
As leis são reconhecidas indiferenciadamente como meras previsões e premissas da atividade decisória judicial, desprezadas as suas diferentes densidades regulatórias. Entre as teorias da metodologia jurídica hoje predominantes quase que desaparece o condicionamento legal-normativo da Justiça sob o peso de orientações teleológicas, analógicas e tipológicas ou de procedimentos tópicos, finalísticos, eficacionais e valorativos, além da própria escolha pelo juiz do “método adequado” entre outras concepções concorrentes. (MAUS, 2000, p. 193)
MAUS, 2000, afirma que a busca constante do Judiciário por aumento de poder não decorreu estritamente da questão jurídica. Resultou, também, da vontade dos magistrados em manter seu poderio, que fica reduzido quando o Legislativo está em posição de destaque.
Ela cita como exemplo a descensão social que os juízes alemães tiveram quando a influência legislativa do Parlamento crescia, em meados do século XX. Isso provocara uma desvalorização da função jurisdicional, redução da remuneração e a transformação dos juízes em meros “serviçais da norma”. Assim, tanto os liberais, quanto os da esquerda e os conservadores da Alemanha exigiam mais liberdade frente à lei:
Os teóricos do Direito Livre postulando abertamente a possibilidade de decisão judicial baseada em norma jurídica positiva como exceção, e os protagonistas da Associação dos Juizes, que redefiniram o conceito de “vinculação à lei”, colocando esta à disposição da ambicionada flexibilização do direito. No decorrer do desenvolvimento de tais posturas, a Associação abdicou paulatinamente de sua reserva a compreender-se como organização de defesa de interesses profissionais, enquanto os adeptos do Direito Livre objetivaram a condição de “juiz-rei”, que atua legibus solutus bem como destaca-se por um tipo “especial de remuneração”. (MAUS, 2000, p. 195)
Segundo a autora, no período do Nazismo o positivismo e o formalismo perderam força e os juízes ganharam imensa expressividade, sendo elevados à condição de curadores dos valores do povo. As atrocidades cometidas durante o regime nazista somente foram possíveis porque o direito alemão deixou de exigir estrita vinculação à lei e permitiu certa margem de liberdade interpretativa aos magistrados.
Desse modo, a justiça deixou de legitimar suas decisões nas leis e os interesses políticos e administrativos passarem a ditar os rumos da atividade judicante, permitindo que Hitler agisse de maneira extremamente perversa, acobertado pela legalidade.
Com a apropriação dos espaços jurídicos livres por uma justiça que faz das normas “livres” e das convenções morais o fundamento de suas atividades reconhece-se a presença da coerção estatal, que na sociedade marcada pela delegação do superego se localiza na administração judicial da moral. (MAUS, 2000, p. 202)
Por esse motivo, os críticos da expansão da jurisdição constitucional afirmam ser imprescindível uma reflexão acerca dos contornos que a justiça tomou no Brasil na última década. Mesmo cientes de que dificilmente a norma geral conseguiria abarcar todas as hipóteses de incidência possíveis, ponderam ser arriscado que as decisões judiciais sejam guiadas pela moralidade dos magistrados, especialmente porque a composição da Suprema Corte pode alterar qualquer entendimento já consolidado no decorrer no tempo (overruling).
Pontuam que o alegado desequilíbrio entre os poderes do Estado traz consigo inúmeras implicações sociais, que podem resultar em um processo antidemocrático, provocando inestimáveis retrocessos ao Estado Democrático de Direito.
À despeito disso, a realidade brasileira tem demonstrado o contrário, pois a atuação contramajoritária, representativa e iluminista do Supremo Tribunal Federal mostrou-se essencial à garantia da própria separação dos poderes, do regime democrático e dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. A Suprema Corte brasileira tem se mostrado essencial para que a igualdade, proclamada desde a Revolução Francesa e inserta na nossa Constituição, não seja meramente formal, mas também material e como reconhecimento.
3. CIDADANIA E HARMONIZAÇÃO DOS PODERES
Antes de tudo, é preciso esclarecer o que é cidadania. Mesmo sabendo que os conceitos nem sempre revelam a estrita realidade, é possível estabelecer características que consubstanciam o objeto descrito. A cidadania não foge a essa máxima. De qualquer modo, mesmo sabendo ser um termo de significância pluralística, Maria de Lourdes Cerquier-Manzini faz essa ressalva, e a conceitua como um conjunto de direitos e deveres conferidos ao indivíduo em suas relações sociais. Para ela, o cidadão deve ter seus direitos respeitados, sem deixar de lado suas responsabilidades.
Ele também deve ter deveres: ser o próprio fomentador da existência dos direitos a todos, ter responsabilidade em conjunto pela coletividade, cumprir as normas e propostas elaboradas e decididas coletivamente, fazer parte do governo, direta ou indiretamente, fazer parte do governo, direta ou indiretamente, ao votar, ao pressionar por meio de movimentos sociais, ao participar de assembleias – no bairro, sindicato, partido ou escola. E mais: pressionar os governos municipal, estadual, federal e mundial (em nível de grandes organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional – FMI). (CERQUIER-MANZINI, 2010, p. 12)
Assim, a assunção dessa responsabilidade pelo indivíduo é salutar, pois os que ocupam os cargos políticos em nome do povo tendem a buscar interesses particulares em detrimento do coletivo. Esquecem que as prerrogativas e imunidades pertencem ao cargo e não a eles. Desse modo, quanto mais o cidadão participar dos rumos políticos, exigindo resultados e transparência, maiores serão os ganhos sociais.
As pessoas tendem a pensar a cidadania apenas em termos dos direitos a receber, negligenciando o fato de que elas próprias podem ser o agente da existência desses direitos. Acabam por relevar os deveres que lhe cabem, omitindo-se no sentido de serem também, de alguma forma, parte do governo, ou seja, é preciso trabalhar para conquistar esses direitos. Em vez de meros receptores, podem ser, acima de tudo, sujeitos daquilo que podem conquistar. Se existe um problema em seu bairro ou em sua rua, por exemplo, não se deve esperar que a solução venha espontaneamente. É preciso que os moradores se organizem e busquem uma solução capaz de atingir vários níveis, entre eles o de pressionar os órgãos governamentais competentes. E assim também pressionarem por maior extensão e qualidade de atendimento do direito a saúde, trabalho, moradia, escolaridade etc . (CERQUIER-MANZINI, 2010, p. 14)
É sabido que a lei, como grande ordenadora da vida em sociedade, é responsável por considerável parcela dos resultados sociais. Em um Estado Democrático de Direito, como no Brasil, essa lei é, em regra, elaborada por representantes do povo (democracia representativa), cabendo ao Judiciário a aplicação da norma ao caso concreto, dizendo o direito e harmonizando as relações sociais.
No entanto, devido ao fato de o povo não elaborar diretamente a lei que lhe será imposta, nem participar ativamente do processo de elaboração, há um grande risco: as minorias dominantes, organizadas em núcleos de poder (como os grupos de pressão), acabam perseverando seus ideais em detrimento do bem-estar social. Sobre o assunto, Roberto Lyra Filho afirma que:
A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção. Embora as leis apresentem contradições, que não nos permitem rejeitá-las sem exame, como pura expressão dos interesses daquela, também não se pode afirmar, ingênua ou manhosamente, que toda legislação seja Direito autêntico, legítimo e indiscutível. Nesta última alternativa, nós nos deixaríamos embrulhar nos “pacotes” legislativos, ditados pela simples conveniência do poder em exercício. A legislação abrange, sempre, em maior em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido. (LYRA FILHO, 1992, p. 8-9)
Desse modo, sabendo que o Direito somente será legítimo quando traduzir os reais anseios da sociedade, é evidente que deve haver participação popular nos rumos da política. Sem isso, se corre o risco de ser criado não um Direito, mas o Antidireito, que representa apenas as elites econômica e política.
Para CERQUIER-MANZINI, 2010, “os direitos de uns precisam condizer com os direitos de outros, permitindo a todos o direito à vida no sentido pleno – traço básico da cidadania”. Paralelamente, deve haver a interdependência e a igualdade entre poderes, de modo que o Estado (que é uno) possa existir em função da busca do interesse público. A ficção jurídica que é o Estado só se torna legítima quando age pelo povo e para o povo.
Nesse sentido, a participação popular, em todas as esferas de poder, resulta em um controle social efetivo sobre os rumos do Estado, interferindo diretamente nas escolhas políticas e dando legitimidade democrática às decisões judiciais. Percebe-se, portanto, que o povo não pode ser tido como mero objeto de direito, como se não pudesse traçar escolhas existenciais e orientar a sua própria vida e a de sua comunidade. Pelo contrário, é a participação popular, sem distinções e preconceitos, que legitimará a atuação dos agentes do Estado.
CONCLUSÃO
A relação do direito com seu destinatário passa, hoje, por intensas transformações. Ocorre um rápido processo de integração das economias mundiais e uma acirrada disputa internacional pelo poder político e econômico. O Direito, como elemento de coesão social e de ordenação da sociedade, sofreu profundas transformações e vem adquirindo contornos inimagináveis.
O pós-positivismo e o neoconstitucionalismo promoveram mudanças profundas na sociedade brasileira. Sem refutar o positivismo, o Direito passou a ser permeável a princípios e valores morais no intuito de concretizar direitos fundamentais, buscando-se uma visão substancialista do fenômeno jurídico.
No entanto, alguns críticos passaram a afirmar que a ausência de estrita vinculação à lei também gerou insegurança jurídica, especialmente em razão da figura do juiz criativo. Os mais alarmistas entendem que haveria riscos concretos de se repetir desmandos e arbitrariedades similares aos vivenciados pela Alemanha nazista, na qual os juristas deixaram de ser aplicadores da lei e se tornaram instrumentos de poder político do chefe do Executivo.
Contudo, olvidam a função que a constitucionalização do Direito e as Cortes Constitucionais exercem nesse cenário. A primeira, ao exercer verdadeiro filtro de validade das normas e decisões judiciais, as quais precisam estar de acordo com as normas e princípios constitucionais. A segunda, por exercer a função de guardiã da Constituição, não sendo o poder criativo dos juízos ilimitado e absoluto, mas determinado pela constituição e normas internacionais incorporadas ao Direito Brasileiro ou aplicáveis em razão da cláusula de abertura material do art. 5º, §2º. CR/88.
Ademais, percebe-se que a separação dos poderes seria a forma mais viável de organização do Estado, e que a função criativa do Judiciário não ameaça essa harmonia, sendo ela a concretização do Sistema de Freios e Contrapesos. De qualquer modo, para uma maior legitimidade democrática das decisões políticas e judiciais, é necessária uma maior participação popular nas esferas de poder, de modo que o cidadão deixe de ser mero destinatário das normas, regulamentos e decisões judiciais e se torne uma pessoa deliberativa.
Para reverter esse quadro e resgatar a cidadania é extremamente necessário que haja maciço investimento em educação, a fim de promover a consciência coletiva e a soberania popular, o que culmina em um robusto controle social das políticas públicas e dos rumos do Estado.
4. REFERÊNCIAS
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4.2 Eletrônicas
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TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. In: Impulso, Tradução Peter Naumann, Piracicaba, UNIMEP, v. 14. nº 33, 2003, p. 9-31. Disponivel em: <https://www.academia.edu/38061649/A_Bukowina_Global_sobre_a_emerg%C3%AAncia_de_um_pluralismo_jur%C3%ADdico_transnacional> Acesso em: 16.02.2012.
Possui Curso Superior em Gestão em Segurança Pública pela Universidade Estadual de Goiás (UEG-GO), graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (UCAM-RJ), cursando Pós-Graduação Lato Sensu em Direitos Humanos pela Faculdade CERS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, ROGERIO DE FARIA. O Judiciário como superego da sociedade brasileira em decorrência do déficit de representação democrática dos poderes Legislativo e Executivo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2023, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61545/o-judicirio-como-superego-da-sociedade-brasileira-em-decorrncia-do-dficit-de-representao-democrtica-dos-poderes-legislativo-e-executivo. Acesso em: 22 nov 2024.
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