FRANCISMARY SOUZA PIMENTA MACIEL[1]
NICOLA ESPINHEIRA DA COSTA KHOURY [2]
TÂNIA LOPES PIMENTA CHIOATO[3]
(coautores)
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.[4]
O nosso nobre leitor deve estar se perguntando qual a relação entre o trecho desse famoso poema de Carlos Drummond e as licitações. Já chegaremos lá. O fato é que em 1º de abril de 2021 finalmente foi publicada a Lei nº 14.133. Nome completo: (Nova) Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Nós, como bons servidores públicos, rapidamente lhe arrumamos uma sigla: NLLCA. E a Lei veio com uma regra de vigência curiosa: entraria em vigor na data da sua publicação, mas teria vigência concomitante com a legislação anterior pelo período de dois anos. Mas por quê? Em síntese:
“A vigência imediata da Lei, permitindo esse período de transição, deve ser entendida como um recado aos referidos poderes e aos órgãos e entidades públicas de que a implantação da Lei é gradativa, devendo, assim, ser amparada técnica e juridicamente a cada caso concreto. [...] a operacionalização da Lei depende, conforme cada caso concreto, entre outras providências, da adequação de recursos humanos e tecnológicos, sistemas estruturantes e rotinas internas”.[5]
Em outro artigo[6], esmiuçamos os diversos prazos de (sobre)vigência da Lei 8.666/1993 e demais diplomas anteriores trazidos pela Lei n 14.133/2021. O intuito do presente artigo é avaliar a adequação de tais prazos, e, claro, sugerir alterações à Medida Provisória nº 1.167/2023, que os modificou.
De início, podemos ponderar sobre o prazo de vigência concomitante das duas legislações assinados pela NLLCA: 2 anos. É pouco ou muito? É aqui que entra o poema de Drummond. A estrofe transcrita acima narra o paradoxo em que está envolto o autor: de um lado a razão (curiosamente retratada no poema como o “coração”) e de outro os sentidos, o concreto, o “olhável”, acessível aos sentidos (descrito como os “olhos” do autor).
O poeta mineiro indaga-se com aquele cenário “para que tanta perna, meu Deus”. A razão não sente, ela só “raciocina”. Ora, já aprendemos que o ponto de vista é a vista de um ponto[7], parcial porque visto com os privilégios e as limitações próprios do lugar de quem observa. Assim, poderiam os atores do controle externo, os acadêmicos, os observadores “de fora” indagar: 2 anos? Para que tanto prazo, meu Deus! E mais… com a prorrogação proporcionada pela MP 1.167/2023, serão (quase) mais nove meses. Precisa disso tudo? Há ainda os pedidos para que esses prazos sejam estendidos durante a tramitação da MP no Congresso. É necessário mais prazo?
Mas a estrofe continua. Enquanto a razão do autor indaga a cena, seus sentidos nada declaram: “meus olhos não perguntam nada”. Os olhos sentem, pois compõem um dos sentidos, a visão. E assim os sentidos do poeta nada manifestam: ficam absorvidos naquela visão. O sentir tem um privilégio em relação à razão: só ele entende o que a razão não alcança, apenas os sentidos descrevem nuances e desafios que a razão não poderia imaginar. Contudo, os sentidos “saem perdendo” em certo aspecto: se circunscrevem ao que sentem, ficam lá absortos.
Dessa forma, aqueles encarregados de implementação da NLLCA também não reclamam de excesso de prazo. E se possível pedem mais. Na esmagadora maioria dos casos, os agentes responsáveis por implementar a Lei são aqueles incumbidos também da própria operacionalização das contratações públicas em seus órgãos e entidades. Ou seja, esses servidores não estão lá dedicados exclusivamente a “fazer a transição”, mas estão absortos, absorvidos com os problemas e dificuldades das contratações que estão ocorrendo. E que ninguém duvide da dinamicidade que tem um setor de compras de um órgão público.
Façamos uma rápida crônica: o diretor de contratações de um órgão qualquer está saindo de casa em direção ao trabalho. Dá as últimas penteadas no já escasso cabelo lembrando de que mal dormira na última noite. O que te tirava o seu sono era um propósito: hoje vou me reunir com os demais atores e finalmente traçar um cronograma para implementar a NLLCA. Nosso diretor chega à sua sala, na porta três servidores já o esperam: cada um quer discutir um problema em licitações distintas. Antes de terminar de atender o último, a porta se abre, é sua secretária: “o chefão está te chamando na sala dele com urgência”. O diretor corre… Pois não?... Sente-se, vamos aproveitar a presença do nosso procurador para discutir aquele novo formato de contrato de terceirização. A reunião termina, o horário de almoço já passou faz tempo. Ele lembra que tem uma reunião prestes a começar, é sobre um problema em certo contrato. A reunião nem chega à metade e o celular toca: “Chefe, foi deferida liminar em um mandado de segurança, nossa licitação de helpdesk foi suspensa”. Desfaz-se a reunião, instaura-se outra, acaba o dia. O diretor vai pra casa pensando… e o prazo? Era prazo do quê mesmo?
De fato, são os executores da NLLCA que “sentem” as dificuldades. Mas aí também mora um perigo: se ficarmos presos aos sentidos, podemos entrar em uma espiral de urgências. Nisso a razão pode ajudar. Ela sabe que, se não adotadas medidas estruturantes para a implementação da NLLCA - que por sua vez também impõe um conjunto de medidas estruturantes de governança pública - , haverá sempre mais e mais urgências, os populares “incêndios a serem apagados”, jogando o órgão em um círculo vicioso e postergando indefinidamente a implantação.
Mas então? Quem arbitrará os pontos de vista da razão e dos sentidos? Quem indicará o prazo adequado para findar a vigência da Lei nº 8.666/1993? Ora, somente o Legislativo poderá fazer tal arbitramento, e a tramitação da MP 1.167/2023 é a ocasião propícia para tanto.
Antes de mais nada, reafirmamos a viabilidade de aplicação imediata da NLLCA em todos os níveis federativos. Conforme defendemos anteriormente[8], ainda que não plenamente aderentes às necessidades específicas, os sistemas, instrumentos e regulamentos já vigentes podem ser adotados e aprimorados com a experiência prática das instituições. Apesar disso, diante do risco de sucessivas ampliações do prazo de vigência do regime anterior, avaliam-se alternativas.
Nesse contexto, surge o ponto chave deste artigo: uma vez que se decida por nova prorrogação, qual prazo deveria ser adotado? Responder a esse questionamento, como visto acima, não é tarefa simplória, e a resposta pode variar bastante de acordo com o ponto de visão de quem responde. E eis que dessa história de ponto de quem vê pode surgir a resposta: não pode haver um prazo único para abarcar contextos tão distintos como são os órgãos e entidades de nível federal, estadual e municipal.
Dessa constatação pode surgir a seguinte ponderação: mas foi dado um prazo de dois anos justamente para que cada órgão atendesse às suas peculiaridades na implementação da NLLCA. É uma ponderação da razão. Os sentidos responderão: mas todo mundo não sabia de antemão que, dado o contexto de sobrecarga, muita gente iria deixar tudo para o final do prazo? A razão vai retrucar: porque faltou organização, faltou planejamento. Não, somente o Legislativo pode arbitrar esse conflito. E como? Disciplinando os sentidos e sensibilizando a razão.
São dois os principais pontos que devem nortear a fixação de prazos distintos: a esfera de governo e o tipo de contratação. De fato, “é a enorme discrepância entre as unidades federativas em seus níveis federal, estadual e municipal”[9]. Podemos começar a distingui-los pelos seus aparatos financeiros e de pessoal. Mas a diferença também está em nível de maturidade: enquanto a União, principalmente o Executivo federal, amadureceu bastante na temática das contratações públicas através de suas instruções normativas, sistemas informatizados e outros instrumentos, há municípios que detêm praticamente o mesmo instrumental da entrada em vigor da Lei nº 8.666/1993.
E podemos dar exemplos bem concretos: há anos os órgãos do Executivo federal já convivem com o Plano de Contratações Anual (PCA), os Estudos Técnicos Preliminares (ETP), mapa de gestão de riscos e outros instrumentos. Na outra ponta, há municípios cujos servidores jamais ouviram sequer a pronúncia de tais termos. Então a primeira possível segmentação de prazos parece óbvia: prazo menor para a União, um pouco maior para os estados e mais estendido para os municípios.
Mas essa segmentação não resolverá um outro problema: é possível que, cada um em seu prazo, deixe novamente tudo para a última hora. É preciso entender que, dada a dinâmica das contratações públicas, o Legislador necessita escalonar também a implementação em cada unidade federativa, concedendo prazos para etapas menores a fim de direcionar o gestor público à implementação progressiva da NLLCA.
A implementação de uma inovação normativa em etapas não seria bem uma novidade. Objetivando aprimorar o processo de planejamento das obras públicas, muitas das quais acabam sofrendo com paralisações, nova sistemática de modelagem dos projetos denominada de Building Information Modelling (BIM) foi estabelecida por meio do Decreto 10.306, de 2 de abril de 2020.
Ocorre que o referido normativo não teve a pretensão de impor o uso imediato para toda a administração pública federal, tampouco obrigou o uso para todas as obras públicas a serem contratadas pelos órgãos e entidades indicados para a atuação pioneira, destacando que o artigo 4º do referido decreto enunciou a implementação gradual.
Assim, o início ocorreu em momentos distintos para órgãos e entidades com maior ou menor grau de maturidade na contratação de obras públicas, sendo que os que iniciaram o novo paradigma eram justamente aqueles que possuíam maior possibilidade de implementação inicial, a exemplo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e o Exército Brasileiro, tradicionais contratantes de obras públicas.
Importante destacar que nem mesmo os mais experientes na contratação de obras públicas seriam obrigados a contratar com a modelagem BIM em todos os seus novos contratos. O Decreto dispôs que o DNIT adotaria tal modelagem para reforço e reabilitação estrutural de obras de arte especiais, mas não nas inúmeras obras rodoviárias, enquanto o Exército apenas nas obras relativas aos seus imóveis.
De igual modo, conforme exemplo anterior, seria possível que, respeitado o prazo total de cada unidade federativa, o estabelecimento de prazos sucessivos para implementação da NLLCA nos processos de dispensa e inexigibilidade, nos processos de licitação, nas atas de registro de preço, nos credenciamentos, nos contratos por prazo indeterminado e assim sucessivamente. Observe-se que a própria Portaria-Seges nº 720/2023 acabou, por vias transversas, demonstrando em parte essa necessidade, ao dispor de prazos distintos para autorização da contratação, publicação dos editais e extratos, contratos por prazo indeterminado, atas de registro de preços, dentre outros.
Desse modo, o Legislador é chamado a - na sua peculiar e vocacionada função de aglutinar pontos de vistas distintos - arbitrar a tensão entre a razão e os sentidos para fixar os prazos de sobrevida da Lei nº 8.666/1993 e correlatas. Para tanto, a sugestão é que, na apreciação da MP 1.167/2023, sejam estabelecidos prazos distintos. Prazos totais diferentes para União, estados e municípios e, dentro de cada prazo total, prazos parciais para diferentes instrumentos previstos na legislação.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia, 1930.
BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso: 12 abr 2023.
BOFF, Leonardo. A águia e a galinha, 51a ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013.
CAMARGO, Bibiana Helena Freitas (org). ROSSI, Sergio Ciquera (org). Reflexões sobre a nova lei de licitações; revisor: Patrick Raffael Comparoni. – São Paulo : EPCP, 2022.
MACIEL, Francismary Souza Pimenta. BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. CHIOATO, Tânia Lopes Pimenta. É preciso avançar: considerações sobre a MP 1167/2023. No prelo.
[1] Mestranda no Mestrado profissional em Administração Pública pelo IDP. Secretária de Licitações, Contratos e Patrimônio do TCU. Especialista em Gestão de Logística na Administração Pública. Graduada em Administração.
[2] Secretário de Administração Pública Consensual do TCU. Ex-Secretário-Geral Adjunto de Controle Externo do TCU. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Ceub. Especialista em Pavimentação pela UFBA. Auditor do TCU. Engenheiro Civil pela UFBA. Advogado.
[3] Secretária da Função Jurisdicional do TCU. Ex-Secretária de Controle Externo de Aquisições Logísticas do TCU. Auditora do TCU. Graduada em Engenharia Civil e Matemática pela UnB.
[4] Estrofe de Poema de Sete faces. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma Poesia, 1930.
[5] CAMARGO, Bibiana Helena Freitas (org). ROSSI, Sergio Ciquera (org). Reflexões sobre a nova lei de licitações; revisor: Patrick Raffael Comparoni. – São Paulo : EPCP, 2022, p. 16.
[6] MACIEL, Francismary Souza Pimenta. BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. CHIOATO, Tânia Lopes Pimenta. É preciso avançar: considerações sobre a MP 1167/2023. No prelo.
[7] BOFF, Leonardo. A águia e a galinha, 51a ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013, p. 9.
[8] MACIEL, Francismary Souza Pimenta. BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. CHIOATO, Tânia Lopes Pimenta. É preciso avançar: considerações sobre a MP 1167/2023. No prelo.
[9] BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso: 12 abr 2023.
Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Ceub. Especialista em Direito Público pela Unifacs. Ex-Especialista Sênior e Ex-Diretor da área de licitações e contratos do TCU. Servidor do TCU. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas, do Ceub. Professor. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova Lei de Licitações: poema de sete prazos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2023, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61822/nova-lei-de-licitaes-poema-de-sete-prazos. Acesso em: 21 nov 2024.
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