RESUMO: Com o fortalecimento global das empresas, os principais órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos começaram a demonstrar preocupação com a proteção desses direitos no âmbito privado, iniciando a discussão sobre o papel do Estado e das empresas na promoção dos direitos humanos no ambiente empresarial. A discussão em torno do tema engloba os direitos humanos de uma forma geral, porém, reconhece-se a existência de grupos vulnerabilizados, que sofrem violações em seus direitos de forma estrutural e sistemática, demandando uma atenção e atuação específica, dentro deles, a população LGBTQIA+. O presente artigo analisou a temática a partir do Caso Oliveira Fuentes vs. Perú, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em fevereiro de 2023, que analisou a discriminação sofrida por um casal homoafetivo praticada por funcionários de uma empresa privada, tendo sido discutido o papel do Estado na proteção dos direitos humanos no ambiente privado bem como o papel das empresas nesse sentido. A partir da análise do caso, constatou-se o diálogo feito pela Corte com diversos documentos internacionais que tratam da temática, que, de forma articulada, evidenciam como o tema vem sendo tratado e entendido pelos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos. LGBTQIA+. Empresas. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Jurisprudência internacional.
RESUMEN: Con el fortalecimento mundial de las empresas, los principales organismos internacionales de protección de los derechos humanos comenzaron a mostrar preocupación por la protección de estos derechos em el ámbito privado, iniciando la discusión sobre el papel del Estado y de las empresas em la promoción de los derechos humanos em el entorno empresarial. La discusión em torne al tema abarca los derechos humanos em general, sin embargo, se reconoce la existência de grupos vulnerables, los cuales sufren violaciones a sus derechos de forma estructural y sistemática, demandando atención y acción específica, dentro de ellos, la población LGBTQIA+. El presente artículo analizó el tema del Caso Oliveira Fuentes vs. Perú, juzgado por la Corte Interamericana de Derechos Humanos em febrero de 2023, que analizó la discriminación sufrida por uma pareja del mismo sexo por parte de empleados de uma empresa privada, discutiendo el rol de Estado em la protección de los derechos humanos em em ámbito privado, como así el rol de las empresas en este sentido. A partir del análisis del caso, se constato el diálogo realizado por la Corte com varios documentos internacionales que tratan el tema, los cuales, de manera articulada, muestren como el tema há sido tratado y entendido por los órganos internacionales de protección de derechos humanos.
PALABRAS-CLAVES: Derechos humanos. LGBTQIA+. Empresas. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Jurisprudencia internacional.
1. INTRODUÇÃO
As empresas e suas relações ganharam a atenção nas últimas décadas dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos, que constataram um fortalecimento a nível global dessas instituições. Os direitos humanos, com ligação histórica indissociável da luta dos indivíduos contra o arbítrio estatal, demandam, numa nova concepção de mundo, mecanismos de proteção compatíveis com os arranjos sociais que emergem, fazendo com que se reconheça, cada vez mais, ser impossível tratar da proteção e respeito dos direitos humanos sem discutir o papel das empresas nessa atividade.
O ambiente empresarial – compreendido de forma ampla - é uma faceta presente na vida de praticamente todos os indivíduos ao redor do globo, afinal, o sistema capitalista, salvo exceções pontuais, é um fenômeno global, o que propicia a relação direta das pessoas com as empresas, seja na qualidade de funcionários, de fornecedores, de consumidores, de alvos de publicidade etc. Assim, o respeito aos direitos humanos nessa dimensão da vida torna-se cada vez mais urgente.
Na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por exemplo, já se trata de uma temática recorrente. Por diversas ocasiões o Tribunal se viu instado a se manifestar sobre fatos que acontecerem no âmbito privado, e partir deles discutir a responsabilidade internacional do Estado. O Caso Oliveira Fuentes vs. Perú é o último caso no qual a Corte debruçou-se sobre o tema, com um enfoque particular: a proteção da população LGBTQIA+.
O tema, como natural, é complexo e extenso. Os direitos humanos manifestam-se das mais variadas formas e nos mais diferentes contextos empresariais. As inúmeras facetas da vida que cada direito protege, as variadas relações que possuem um indivíduo com determinada empresa, as infinitas possibilidades de arranjos e de mecanismos de proteção e outros inúmeros aspectos tornam o tema denso e repleto de filigranas. A partir do Caso Oliveira Fuentes, porém, é possível compreender alguns aspectos sobre a temática, em especial com relação à população LGBTQIA+. A análise da sentença do caso permite identificar, para além do posicionamento da Corte, como os órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos estão articulando e desenvolvendo a temática.
Assim, tendo por guia o caso em questão, será realizado a análise sobre a proteção e o respeito pelos direitos humanos no ambiente empresarial, com enfoque nos direitos humanos da população LGBTQIA+, identificando-se a responsabilidade dos Estados e das empresas diretamente nessa obrigação.
2. O CASO OLIVEIRA FUENTES VS. PERÚ
O Caso Oliveira Fuentes vs. Perú, julgado pela Corte IDH, com sentença proferida em 4 de fevereiro de 2023, revela-se um importante referencial com relação ao tema da proteção dos direitos humanos pelas empresas, em especial com relação à população LGBTQIA+. O Tribunal interamericano teve a oportunidade de se debruçar especificamente sobre a temática e concretizar o dever das empresas (entes privados) acerca da proteção dos direitos humanos, com recorte temático especifico para tal grupo.
Em síntese, o cerne do caso reside na repressão sofrida por um casal homoafetivo por parte de funcionários de uma cafeteria, em razão da demonstração pública de afeto entre eles, assim como a proteção insuficiente fornecida pelo Estado peruano.
Em 11 de agosto de 2004, Crissthian Manuel Oliveira Fuentes estava com seu companheiro em uma cafeteria, dentro de um supermercado, em Lima. Lá, haviam realizado demonstrações de afeto típico de um casal, como olhares, toques, beijos, “proximidade física” entre outros. Diante disso, um cliente reclamou a uma funcionária do estabelecimento, afirmando estar incomodado com a situação e que sua filha estaria brincando na área dos jogos, próximo à mesa em que se encontrava o casal. Diante da queixa, a funcionária intercedeu junto ao casal, pedindo que se abstivessem de praticar demonstrações de afeto em respeito aos demais clientes e às crianças próximas ou que teriam que se retirar do estabelecimento. Um agente da polícia teria acompanhado, em dado momento, o incidente.
Oliveira Fuentes insurgiu-se contra a abordagem da funcionária, apontando que se tratava de um ato discriminatório, tendo sido constrangido a se retirar. Tempos depois, como parte de uma reportagem de um programa televisivo, retornou ao local com seu companheiro, juntamente com o jornalista e sua parceira, de sexo diverso. Ambos os casais praticaram intencionalmente demonstrações de afeto, sendo que o casal homoafetivo sofreu novas reprimendas, tendo sido apontado pelos funcionários que a conduta praticada seria incompatível com a política da empresa e que seria possível que agissem assim na rua, mas não no ambiente da empresa, e, portanto, deveriam se retirar. Lado outro, o casal heterossexual não foi advertido de qualquer forma, muito embora tivessem realizado os mesmos atos. É possível encontrar a reportagem sobre o caso na internet[1].
A partir de então, Oliveira Fuentes teria percorrido as instâncias administrativas e judiciais. Inicialmente, apresentou denúncia perante a Comissão de Proteção do Consumidor. Nestes autos, o supermercado defendeu seu comportamento, apontando que não se tratou de ato discriminatório, mas apenas o cuidado com os demais clientes e a moral e os bons costumes. O órgão concluiu que não havia provas suficientes acerca da existência do ato discriminatório, e em razão das versões conflitantes, entendeu infundada a denúncia. Ainda no âmbito administrativo, Oliveira Fuentes interpôs recursos contra a decisão, porém não obteve sucesso (muito embora tenha havido votos divergentes, reconhecendo o ato discriminatório). Após a não resolução na via administrativa, Fuentes inaugurou a instância judicial, ingressando com diversos recursos, porém não logrou êxito em nenhum. Diante da insuficiente resposta estatal, o caso chegou à Corte IDH.
3. A ORIENTAÇÃO SEXUAL E IDENTIDADE DE GÊNERO COMO CATEGORIAS PROTEGIDAS PELA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Na sentença proferida no Caso Oliveira Fuentes, a Corte IDH reafirmou sua jurisprudência no sentido de compreender a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas como categorias protegidas pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), dialogando com seus precedentes e consolidando, ainda mais, o seu entendimento.
Desde o Caso Atala Riffo e crianças vs. Chile, julgado em 2012, o Tribunal entende que tais categorias estão contempladas pela CADH, em especial em seu artigo 1.1, que veda qualquer tipo de discriminação em razão de qualquer condição pessoal. Ainda, o entendimento foi reforçado com as Opiniões Consultivas nº 24 e 29, que estabeleceram também o dever de proteção sobre a identidade de gênero, o qual vem sendo reiterado na jurisprudência contenciosa do Tribunal, conforme se constata nos Casos Azul Rojas Marín vs. Perú e Vicky Hernandéz e outras vs. Honduras.
A proteção das categorias em questão é corolária dos direitos à liberdade, à vida privada e, em suma, da possibilidade de todo ser humano autodeterminar-se e escolher livremente as circunstâncias que dão sentido à sua existência, conforme suas próprias convicções (CORTE IDH, 2021a, p. 33; 2022, p. 20).
O direito à liberdade, previsto no art. 7.1 da CADH, recebe, desde o Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez vs. Equador, uma interpretação ampliativa do Tribunal, no sentido de compreendê-lo como a capacidade de fazer ou deixar de fazer tudo o que é licitamente permitido, ou seja, organizar, conforme a lei, sua vida pessoal e social, de acordo com suas próprias convicções (CORTE IDH, 2023, p. 32).
O direito à vida privada, por sua vez, consagrado no art. 11.2 da Convenção, engloba aspectos sobre a identidade física e social, incluindo o direito à autonomia pessoal e o direito de se relacionar com outros seres humanos e o mundo exterior à sua maneira. Ou seja, não se limita à faceta da privacidade, pois abarca uma série de fatores relacionados com a dignidade humana, como por exemplo, a capacidade de desenvolver sua personalidade e de se relacionar, sendo que a vida afetiva é um dos principais aspectos desse âmbito da intimidade. Assim, esse espaço da vida privada caracteriza um espaço de liberdade, devendo estar imune de qualquer ingerência abusiva ou arbitrária por parte de terceiros ou das autoridades públicas (CORTE IDH, 2017, p. 44; 2023, p. 32).
Ou seja, constata-se que, para a Corte IDH, a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias ínsitas ao seres humanos, que constituem a sua própria personalidade, que dão sentido à sua existência, e que devem ser desenvolvidas e expressadas sem qualquer retaliação ou embaraço, sob pena de ofensa à própria dignidade do indivíduo, ao seu direito à liberdade e à vida privada, assim como a vedação à discriminação contida na Convenção. A Corte ressaltou que, à luz dessa perspectiva, nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais ou de particulares, podem diminuir ou restringir, de qualquer modo, os direitos de uma pessoa em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero (CORTE IDH, 2023, p. 29).
Nesse sentido, atenta à realidade, a Corte ressaltou que as formas de discriminação contra as pessoas LGBTQIA+ se manifestam de diversas formas, tanto no âmbito privado quanto público, reconhecendo o quadro de discriminação estrutural existente contra essa população, sendo que as violências praticadas têm por efeito impedir ou anular o reconhecimento, o gozo ou o exercício dos direitos humanos por parte das pessoas discriminadas (CORTE IDH, 2023, p. 30).
O direito à igualdade e à não discriminação, portanto, nutre indissociável vínculo com a proteção dos direitos humanos, conforme reconhece o Tribunal interamericano, uma vez ser impossível a proteção dos direitos humanos se determinado grupo populacional sofre discriminação, a qual tem por efeito prático justamente negar os direitos desse grupo. Nessa lógica, a Corte assenta que a Convenção, por meio de seus artigos 1.1 e 24 - que reconhecem a igualdade e vedam a discriminação por qualquer condição pessoal -, não permite qualquer prática que coloque determinado grupo numa posição privilegiada, e outro em situação inferior, impedido de gozar seus direitos. Ainda, destaca que o direito à igualdade possui duas dimensões, a primeira formal, que estabelece a igualdade perante a lei, e a segunda material, que exige a adoção de medidas positivas de promoção de determinados grupos, que são histórica e sistematicamente discriminados ou marginalizados; ou seja, cabe ao Estado adotar medidas positivas para corrigir a situação de exclusão e, enfim, garantir verdadeiramente o direito à igualdade, já que o mero tratamento isonômico, em tais casos, é insuficiente diante da realidade encontrada (CORTE IDH, 2023, p. 28/29).
Conclui-se, assim, que a orientação sexual e identidade de gênero são categorias protegidas pela CADH, ou, em outras palavras, são direitos humanos, devendo, portanto, ser objetos de proteção, a fim de que não funcionem como circunstâncias que dão ensejo à discriminação, de forma a impedir determinado grupo populacional de gozar livremente de seus direitos.
4. OS DEVERES DE PROTEÇÃO DO ESTADO NA ESFERA PRIVADA
É cediço que os tratados internacionais de direitos humanos, mormente a Convenção Americana, são firmados por Estados soberanos. São estes que se comprometem internacionalmente com a proteção dos direitos humanos, e são estes que são julgados pela Corte IDH. A partir de um caso concreto, a Corte definirá se o Estado processado vulnerou alguns dos direitos humanos aos quais havia se comprometido em proteger. Logo, não pode um indivíduo/ente particular ser réu no processo internacional perante a Corte, por falta de legitimidade. Tal entendimento foi exarado na jurisprudência da Corte já no Caso Suárez Rosero vs. Equador, julgado em 1997, no qual se assentou que não cabe ao Tribunal interamericano julgar um particular, sendo tal decisão de competência exclusiva dos tribunais internos do Estado (CORTE IDH, 1997, p. 16).
Não obstante, a Corte IDH expressou no Caso Oliveira Fuentes, reafirmando sua jurisprudência, que a obrigação dos Estados de respeitar os direitos humanos, previsto no art. 1.1 da CADH, não se limita às relações entre os agentes estatais e os particulares, abarcando, também, o dever de proteção na esfera privada, a fim de evitar que terceiros (particulares) vulnerem os direitos consagrados internacionalmente. Isso implica dizer, portanto, que é possível que um Estado responda internacionalmente por atos praticados por particulares, como ocorrera no caso em tela (CORTE IDH, 2023, p. 33). Vê-se que tal entendimento também foi firmado no âmbito da jurisprudência consultiva da Corte, a qual, em sua Opinião Consultiva n. 23, afirmou a possibilidade de responsabilização do Estado por atos de particulares.
Contudo, a Corte ressalvou que não é qualquer ato praticado por particular que dará ensejo à responsabilização do Estado, devendo-se analisar as circunstâncias do caso concreto. Ao ratificar a CADH, firmando o compromisso de proteção dos direitos humanos, o Estado está obrigado tanto a se abster de praticar qualquer conduta que os vulnere – e aqui tem relevância a análise da discriminação da população LGBTQIA+ -, quanto a adotar medidas afirmativas, capazes de reverter as situações discriminatórias presentes na sociedade, que impedem o gozo dos direitos por determinado grupo estigmatizado. Isto é, tal obrigação positiva reflete no dever especial de proteção que o Estado possui com relação a pratica de terceiros particulares que, com sua tolerância indevida, favoreçam situações discriminatórias (CORTE IDH, 2023, p. 33).
Quer-se dizer, assim, que cabe ao Estados, à luz do marco dos deveres de respeito aos direitos humanos e de adotar disposições de direito interno para garanti-los (previstos nos arts. 1.1 e 2, da CADH), prevenir eventuais violações produzidas por empresas privadas, adotando medidas legislativas, políticas públicas e outras medidas preventivas, assim como cumprir com a obrigação a investigar, punir e reparar violações. Ou seja, os Estados estão obrigados a adotar políticas adequadas, assim como exercer a atividade de regulamentação, monitoração e fiscalização para que as empresas adotem as medidas necessárias para eliminar todo tipo de prática e atitude discriminatórias que violam os direitos humanos, destacando-se, aqui, aqueles da população LGBTQIA+. Em outras palavras, há uma obrigação a ser cumprida pelas empresas e regulada pelo Estado (CORTE IDH, 2023, p. 34/35). É nessa perspectiva, então, quando o Estado falha em regulamentar e fiscalizar a proteção dos direitos humanos na esfera privada, que se reconhece sua responsabilidade internacional.
Um caso paradigmático com relação ao tema é o Caso dos Buzos Miskitos (Lemoth Morris e outros) vs. Honduras, no qual a Corte IDH, a despeito do Estado ter reconhecido internacionalmente sua responsabilidade, fez questão de discutir o mérito do caso e de abordar as suas temáticas subjacentes, dentre elas, a relação entre Estado, empresas e direitos humanos.
Na ocasião, o Tribunal assentou a obrigação dos Estados de garantir o livre e pleno exercício dos direitos previstos na CADH, devendo, para isso, organizar todo o aparato governamental, e, em geral, toda a estrutura pela qual se manifesta o poder público, de forma a efetivamente assegurar tais direitos, tanto numa perspectiva protetiva quanto pós-violatória. Como decorrência dessa obrigação, reconheceu-se que a proteção estende-se para além das relações indivíduo-Estado, alcançando, também, as relações entre particulares, sendo dever do Estado promover políticas públicas, adotar legislações internas e todo tipo de prática que efetivamente assegure os direitos humanos, bem como efetivamente fiscalizar a atuação dos particulares (CORTE IDH, 2021b, p. 16/17).
À luz dessa compreensão, a Corte externou, tanto no Caso Oliveira Fuentes quanto no Caso Buzos Miskitos, que o Estado deve adotar medidas de forma a compelir as empresas para que a) contem com políticas internas apropriadas com a proteção dos direitos humanos; b) incorporem práticas de boa governança corporativa, que direcione a atividade empresarial para o cumprimento das normas e respeito aos direitos humanos; c) contem com processos internos adequados para identificação, prevenção e correção de violações de direitos humanos; d) contem com processos que permitam a reparação de violações em decorrência das atividades empresariais exercidas (CORTE IDH, 2023, p. 34; 2021b, p. 19).
No Caso Oliveira Fuentes, o Tribunal teve a oportunidade de densificar o conteúdo dessas medidas com relação especificamente à população LGBTQIA+. A partir da premissa de que a orientação sexual e identidade de gênero são categorias protegidas pela CADH e da existência de uma discriminação estrutural contra essa população, que a impede de gozar os direitos humanos com igualdade, a Corte reforça o dever do Estado e de toda a sociedade, especialmente das empresas, de combater os atos discriminatórios, a fim de assegurar a efetiva igualdade material, superando a mera igualdade formal (perante a lei). Com esse recorte temático, a Corte acentua que os Estados devem adotar as medidas de regulação, monitoração e fiscalização com o fim de que as empresas asseguram os direitos da população LGBTQIA+, adotando: a) políticas internas de respeito aos direitos humanos incluindo expressamente essa população vulnerável; b) práticas para identificar, prevenir e mitigar todas as violações dos direitos humanos dessa população, relacionadas com suas operações, produtos, serviços e relações comerciais; c) medidas reparatórias eficazes para eventuais violações (CORTE IDH, 2023, p. 35/36).
A partir dos argumentos lançados pela Corte IDH em tais casos, portanto, é possível concluir o papel do Estado com relação à proteção dos direitos humanos na esfera privada. Compreendendo que determinados direitos humanos são expressados também na esfera privada – como a orientação sexual e identidade de gênero -, não basta que o Estado forneça proteção no âmbito de suas relações (indivíduo-Estado). Conforme a melhor exegese da CADH, segundo o Tribunal interamericano, o dever de proteção estende-se ao âmbito particular, sobretudo das empresas, de forma a exigir que os Estados adotem uma postura ativa, articulando uma série de mecanismos internos que possibilitem a tutela desses direitos também neste âmbito, tais como leis, políticas públicas, mecanismos de fiscalização, apuração de responsabilidade etc. A omissão nesse dever positivo, a insuficiente proteção conferida no âmbito particular, a deficiente fiscalização e regulamentação, se presentes diante de uma violação aos direitos humanos, darão ensejo à responsabilização internacional do Estado[2].
6. O PAPEL DAS EMPRESAS NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
A Corte IDH, no Caso Oliveira Fuentes, articulou o conteúdo de alguns documentos internacionais que abordam a temática da promoção e proteção dos direitos humanos pelas empresas privadas, assentando, a partir deles, os deveres das empresas e a responsabilidade do Estado peruano no caso concreto. Porém, a análise destes documentos permite compreender, para além do caso julgado, a forma com que o tema está sendo tratado atualmente pelo Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, tanto no âmbito interamericano quanto no âmbito global. Destacam-se, entre as referências da Corte, os seguintes documentos a) Os princípios reitores sobre as empresas e os direitos humanos, adotados pela Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – ONU (Princípios de Ruggie); b) Empresas e direitos humanos: Estandartes interamericanos, documento produzido pela Relatoria Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); c) Normas de conduta para as empresas: contra a discriminação das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
6.1. Os Princípios de Ruggie: Os Princípios Reitores
A participação das empresas no processo de promoção e proteção dos direitos humanos é tema que ganhou relevância nas últimas décadas por diversos fatores, sobretudo diante das novas configurações empresariais, das empresas multinacionais e sua enorme força econômica e da economia cada vez mais globalizada. A preocupação crescente com o tema fez a ONU se movimentasse para debater o tema, sendo que, após décadas de discussões, movimentos, operações, realidades, a Comissão de Direitos Humanos (hoje Conselho de Direitos Humanos), em 21 de março de 2011, adotou o documento final apresentado por John Ruggie, quem havia sido nomeado pelo Secretário-Geral da ONU como representante especial para o tema de direitos humanos e empresas transnacionais (BENACCHIO; RIBEIRO, 2022, p. 6).
Consoante extrai-se do documento da Comissão e da análise de Benacchio e Ribeiro (2022), o documento apresentado e endossado pelo Conselho de Direitos Humanos traz trinta e um princípios reitores sobre as empresas e os direitos humanos, assentados em três premissas básicas, das quais decorrem a sistematização dos princípios: proteger, respeitar e reparar. A partir dessa lógica, os princípios são divididos em três pilares: a) O dever do Estado de proteger os direitos humanos; b) A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos; c) Acesso a mecanismos de reparação. Cada tópico, por sua vez, é divido entre princípios fundamentais e princípios operacionais.
Quanto ao dever do Estado de proteger os direitos humanos, o documento traz dois princípios fundamentais (ONU, 2011, p. 7/8)[3]:
1) Os Estados devem proteger contra as violações dos direitos humanos cometidas em seu território e/ou sua jurisdição por terceiros, inclusive as empresas. Para isso devem adotar as medidas apropriadas para prevenir, investigar, punir e reparar os abusos mediantes políticas adequadas, atividade de regulamentação e submissão à justiça.
2) Os Estados devem declarar claramente que todas as empresas sediadas em seu território e/ou jurisdição devem respeitar os direitos humanos em todas as suas atividades.
Sobre o primeiro princípio fundamental, os comentários contidos no documento assentam que o dever de proteção do Estado é uma norma de conduta, assim, embora não sejam os Estados responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas por agentes privados por si só, podem responder por estarem descumprindo com suas obrigações internacionais de adotar medidas adequadas para prevenir, investigar, punir e reparar os abusos cometidos (ONU, 2011, p. 8). Nota-se, pois, que o entendimento da Corte IDH encontra-se em completa harmonia com o posicionamento da ONU sobre o tema, reconhecendo a possibilidade de responsabilização internacional do Estado por atos de particulares, uma vez caracterizado uma proteção insuficiente neste âmbito – seja por falta de regulamentação, fiscalização, reparação etc.
Nos princípios operacionais, o documento explícita obrigações mais concretas dos Estados, tais como o dever de fazer cumprir as leis que tenham por objeto a proteção de direitos humanos nas empresas, de assessorar as empresas; dever de adotar medidas de proteção; dever de fomentar o respeito aos direitos humanos, dentre outros.
Já com relação a responsabilidade direta das empresas acerca do dever de respeitar os direitos humanos, o documento traz como princípios fundamentais (ONU, 2011, p. 15/17)[4]:
1) As empresas devem respeitar os direitos humanos. Isso significa que devem abster-se de infringir os direitos humanos de terceiro e fazer frente às consequências negativas sobre os direitos humanos que tenham alguma participação.
2) A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos refere-se aos direitos humanos reconhecido internacionalmente – abrangendo, no mínimo, os direitos enunciados na Carta Internacional de Direito Humanos e os princípios relativos ao direitos fundamentais estabelecidos na Declaração da Organização Internacional do Trabalho relativo aos princípios e direitos fundamentais no trabalho.
3) A responsabilidade de respeitar os direitos humanos exige que as empresas: a) Evitem que suas próprias atividades provoquem ou contribuam a provocar consequências negativas sobre os direitos humanos e façam frente a essas consequências quando se produzam; b) Tratem de prevenir ou mitigar as consequências negativas sobre os direitos humanos diretamente relacionadas com operações, produtos ou serviços prestados em suas relações comerciais, inclusive quando não tenham contribuído para gera-los;
4) A responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos aplica-se a todas as empresas, independentemente de seu tamanho, setor, contexto operacional, proprietário e estrutura. Sem embargo, a magnitude e a complexidade dos meios dispostos pelas empresas para assumir essa responsabilidade podem variar em função desses fatores e da gravidade das consequências negativas das atividades da empresa sobre os direitos humanos.
5) Para cumprir com sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos, as empresas devem contar com políticas e procedimentos apropriados em função de seu tamanho e circunstâncias, a saber: a) um compromisso política de assumir sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos; b) um processo de diligência adequada em matéria de direitos humanos para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas de como abordam seu impacto sobre os direitos humanos; c) processo que permitam reparar todas as consequências negativas sobre os direitos humanos que tenham provocado ou contribuído a provocar.
Interessante notar, a partir de tais princípios, que se reconhece obrigações diretas das empresas em respeitar os direitos humanos. Os comentários tecidos sobre o primeiro princípio evidenciam a questão (ONU, 2011, p. 15)[5]:
A responsabilidade de respeitar os direitos humanos constituem um norma de conduta mundial aplicável a todas as empresas, em qualquer lugar que operem. Existe independentemente da capacidade e/ou voluntariedade dos Estados de cumprir com suas próprias obrigações de direitos humanos e não reduz essas obrigações. Trata-se de uma responsabilidade adicional a de cumprir as leis e regulamentos nacionais para a proteção dos direitos humanos.
Da mesma forma, os princípios operacionais trazidos neste tópico do documento tratam aspectos concretos das obrigações das empresas, como assumir o compromisso político de cumprir os direitos humanos, aprovado pelo mais alto nível diretivo da empresa; obrigação de agir com eficiência para identificar, prevenir e mitigar as consequências negativas de violações dos direitos humanos; obrigação de avaliar os riscos de suas atividade, dentre outros.
Por fim, quanto ao tópico atinente ao acesso de mecanismos de reparação, o documento traz um princípio fundamental (ONU, 2011, p. 25):
1) Como parte do dever de proteção contra as violações de direitos humanos relacionadas com atividades empresarias, os Estados devem tomar medidas apropriadas para garantir, pelas vias judiciais, administrativas, legislativas ou de outro tipo que equivalem, que quando se produzam esse tipo de abuso em seu território e/ou jurisdição os afetados possam acessar mecanismo de reparação eficazes.
Os princípios operacionais sobre esse aspecto evidenciam o dever de garantir mecanismos judiciais, extrajudiciais, não estatais, bem como outras obrigações. Esse aspecto reforça a obrigação do Estado de garantir a proteção dos direitos humanos, seja numa perspectiva pré ou pós-violatória.
Retornado ao âmbito interamericano, a Corte IDH, tanto no Caso dos Buzos Miskitos quanto no Caso Oliveira Fuentes, dialogou com os Princípios de Ruggie, de forma a assentar a responsabilidade das empresas sobre a proteção dos direitos humanos assim como a obrigação dos Estados em garantir, através de um postura ativa, essa âmbito de proteção no ambiente privado.
6.2. Normas de conduta para as empresas: contra a discriminação das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais
Um segundo documento que a Corte IDH dialoga no Caso Oliveira Fuentes foi produzido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em setembro de 2017, que dialoga e decorre diretamente dos Princípios de Ruggie e tem por escopo trazer normas de conduta às empresas para que façam frente à discriminação que sofre a população LGBTQIA+.
Segundo consta no resumo do documento, cada vez mais cria-se consciência sobre a importância das empresas para a redução da discriminação e para a promoção da diversidades, sendo que muitas delas já vem tomando medidas para levar a cabo seu compromisso com o respeito aos direitos humanos da população LGBTQIA+. As normas de conduta previstas consistem numa orientação prática às empresas sobre como respeitar e apoiar os direitos humanos da população em questão, tanto no lugar de trabalho, no mercado e na comunidade, que se apoiam no direito internacional dos direitos humanos e estão de acordo com os Princípios Reitores sobre as empresas e os direitos humanos (Princípios de Ruggie) (ONU, 2017, p. 10).
O documento traz cinco normas, especificando o seu âmbito de alcance. Em todo o momento, as empresas devem 1) respeitar os direitos humanos. No ambiente de trabalho, as empresas devem 2) eliminar a discriminação e 3) prestar apoio à população LGBTQIA+, adotando medidas de inclusão. No mercado, devem 4) prevenir outras violações de direitos humanos. E na comunidade, devem 5) atuar na esfera pública. A partir do conjunto destas normas, ter-se-á um conjunto de elementos de referência para guiar a atuação das empresas. Cada norma, ainda, é densificada pelo próprio documento.
Quanto ao dever de respeito dos direitos humanos, devem as empresas formular políticas que atendam sua responsabilidade, prevendo expressamente o direito da população LGBTQIA+; devem exercer fiscalização diligente para detectar, prevenir e mitigar qualquer repercussão negativa de violações ocorridas relacionadas a suas operações, produtos, serviços e relações comerciais; e devem reparar todas as violações ocorridas.
No tocante à eliminação da discriminação, as empresas devem adotar medidas para que orientação sexual, a identidade ou expressão de gênero não gerem qualquer tipo de discriminação em suas atividades, internas e externas, devendo criar a consciência entre seus empregados sobre a diversidade, sobre o problemas que enfrentam essa população e sobre o dever de respeito, bem como respeitar a intimidade e fornecer as mesmas prestações a todos.
Com relação às obrigações de prestar apoio, as empresas devem adotar medidas proativas para criar um ambiente positivo e afirmativo que garanta a dignidade da população LGBTQIA+, inclusive apoiando a criação de grupos informais por parte dos próprios funcionários dessa população, garantindo-lhe as mesmas oportunidades de participar em atividades fora do trabalho.
Como forma de prevenir outras violações de direitos humanos, as empresas devem detectar, prevenir e mitigar outros riscos para os direitos humanos que podem ser específicos em seu setor ou contexto local. Devem, para isso, possuir mecanismos em que os funcionários e outros interessados possam apresentar denúncias com segurança.
Já na esfera pública, reconhece-se que as empresas não podem mudar a sociedade por si sós, o que faz importante sua participação na sociedade, devendo comunicar de forma clara sua política de respeito aos direitos humanos, promover ações coletivas, dentre outros.
Vê-se, assim, que o documento traz normas de conduta para as empresas e diversos aspectos práticos de sua aplicação, especificando, em diversas dimensões, seus desdobramentos. Ademais, é possível extrair das dimensões para as quais as obrigações se espraiam, que o dever das empresas exorbita o seu próprio âmbito interno; ou seja, o respeito com os direitos humanos de uma forma geral e especificamente da população LGBTQIA+ não se limita à relação funcionário-empresa, expandindo-se, também, para as relações comerciais como um todo, a relação com os fornecedores, consumidores e comunidade em geral.
Por fim, a título de arremate, é oportuno transcrever um trecho do documento que responde a uma questão central da temática: a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos é uma obrigação jurídica? (ONU, 2017, p. 24):
Os Princípios Reitores sobre as Empresas e Direitos Humanos não são um instrumento internacional do qual emanam obrigações jurídicas para as empresas. De acordo com eles, a responsabilidade de respeitar os direitos humanos é uma norma porque se espera que as empresas firmem-se sobre a base do direito internacional e das convenções vigentes.
Sem embargo, isso não implica que essa responsabilidade não está relacionada com nenhuma obrigação jurídica, porque é possível que esteja reconhecida na legislação nacional que rege as atividades empresarias ou os acordo vinculantes celebrados entre as empresas e seus clientes e fornecedores, empresariais ou privados, razão pela qual poderia ser aplicada pelos meios judiciais. Ademais, em algumas circunstâncias as empresas também podem ter obrigações decorrentes do direito internacional humanitário e do direito penal internacional.[6]
6.3. Empresas e direitos humanos: Estandartes interamericanos
Por fim, um terceiro documento trabalhado pela Corte IDH é oriundo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), realizado através de sua Relatoria Especial sobre os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA), aprovado em 1º de novembro de 2019, o qual analisa a relação entre empresas e direitos humanos a partir, sobretudo, de parâmetros interamericanos.
Logo na introdução do documento, a CIDH e a REDESCA evidenciam a importância que o tema “empresas e direitos humanos” vem ganhando no cenário internacional, indicando ser indispensável assentar a responsabilidade dos Estados acerca da temática. Ainda, destacam a importância das empresas e do comércio no processo de geração de riqueza, empregos e maior bem-estar da sociedade, que atuam como atores impulsionadores da economia e do desenvolvimento dos povos do continente americano, porém ressaltam que não existe desenvolvimento efetivo sem o respeito pleno aos direitos humanos, uma vez que este não pode ocorrer senão de forma sustentável, justa e igualitária, buscando crescimento econômico com equidade e consolidação da democracia. Assim, cabe aos Estados assegurar que as atividades empresarias não sejam desenvolvidas às custas dos direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos, mormente dos grupos vulnerabilizados, sendo inadmissível a tolerância de violação de direitos humanos para justificar benefícios econômicos individuais ou gerais (CIDH, 2019, p. 13/14).
O documento em questão traz uma abordagem ampla sobre a temática, dialogando com seus mais variados aspectos. Porém, por uma questão metodológica, cabe a análise de pontos centrais para a temática ora estudada.
A partir da análise da normativa interamericana, em especial da (CADH), bem como da normativa internacional a nível global, em especial os Princípios de Ruggie, a Comissão assenta, assim como a Corte IDH, a obrigação dos Estados em proteger e promover os direitos humanos na esfera privada, devendo adotar as medidas apropriadas para tanto. Reconhece-se, assim, a obrigação positiva que impõe a normativa internacional aos Estados, de forma a reconhecer que não basta não violar os direitos humanos, devendo-se, também, dispensar uma proteção efetiva sobre eles, adotando-se medidas afirmativas, tanto no âmbito público ou particular (CIDH, 2019, p. 53/54).
Tais medidas afirmativas, ainda, ganham especial relevo quando se identifica uma situação de especial vulnerabilidade de um grupo, acentuando o dever de garantia do Estado, dada a situação de discriminação e violência estrutural e histórica que acomete tal população (CIDH, 2019, p. 54). Entre tais grupos, identifica-se a população LGBTQIA+.
Nesse contexto, a Comissão e a Relatoria Especial apontam quatro deveres estatais claros que identificam como obrigação para dar cumprimento a garantia de proteção dos direitos humanos no contexto de atividades empresariais: a) dever de regular e adotar normativa interna; b) dever de prevenir violações; c) dever de fiscalizar tais atividades; d) dever de investigar, sancionar e assegurar o acesso a reparações integrais para as vítimas (CIDH, 2019, p. 55).
Interessante notar, ainda, o destaque que o documento faz com relação à evolução dos direitos humanos no âmbito internacional. Com efeito, as obrigações em matéria de direitos humanos são histórica e primordialmente estatais, porém a evolução da matéria vem revelando que outros atores também podem ter obrigações em tal regime. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas Com Deficiência, por exemplo, prevê a possibilidade de certas organizações internacionais firmarem e aderirem ao dito tratado – ou seja, não apenas Estados podem ratificá-lo. O art. 30 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por sua vez, dispõe que nenhum Estado, grupo ou pessoa, pode interpretar suas disposições de forma a destruir quaisquer dos direitos e liberdades ali previstas – o que evidencia a importância de atores não estatais. E nesse prisma, o próprio Pilar II dos Princípios de Ruggie evidencia a obrigação direta das empresas de respeitar os direitos humanos, sendo tal uma norma de conduta mundial, aplicável independentemente de normas internas e das obrigações internacionais assumidas pelo Estado (CIDH, 2019, p. 93/94).
Não obstante o reconhecimento das obrigações das empresas, a Comissão ressalta o limite de competência, tanto sua quanto da Corte IDH, para o conhecimento de casos em que se aponta entes privados como violadores diretos de direitos humanos, porém frisa que a ausência de uma mecanismo internacional de controle não implica dizer que as normas internacionais de direitos humanos não se aplicam às empresas. Reconhece-se que, a partir das obrigações de garantia e proteção dos Estados, as empresas podem impedir ou favorecer a realização dos direitos humanos (CIDH, 2019, p. 95).
A Comissão, ainda, faz uma constatação precisa: parte-se do reconhecimento da dignidade humana como fundamento para os direitos humanos internacional reconhecidos; essa dignidade é incondicional e, em consequência, sua proteção e respeito não podem depender de fatores extrínsecos, incluindo a identidade do agressor (CIDH, 2019, p. 96).
À luz desse contexto, a CIDH assenta, portanto, a responsabilidade dos Estados em efetivamente proteger os direitos humanos no âmbito privado, por meio de medidas adequadas, bem como o dever das empresas de respeitá-los em todas as suas atividades, de forma a promover um desenvolvimento econômico e social dos países de forma consentânea com a proteção da dignidade humana.
Após uma análise ampla sobre a responsabilidade dos Estados e das empresas sobre a proteção e respeito dos direitos humanos, a Comissão e sua REDESCA avançam para uma análise das especificidades que determinados grupos populacionais vulnerabilizados ostentam no âmbito empresarial, dada a situação de violência e discriminação estrutural e histórica que enfrentam. Dentre os diversos grupos identificados, pertine a este artigo a análise feita do grupo LGBTQIA+.
De uma forma geral, a Comissão relembra o dever especial dos Estados de proteger os grupos vulnerabilizados, uma vez que, para além da proteção geral que deve ser dispensada a todos os indivíduos, tais grupos possuem particularidades e contexto sociais que demandam uma atenção especial, a exigir medidas imediatas e socioculturalmente adequadas para prevenir, reduzir e eliminar as condições e atitudes que geram a perpetuação das violações de direitos humanos (CIDH, 2019, p. 155).
A REDESCA observa, a partir dos dados colhidos, que a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias que geram discriminação e violência no ambiente de trabalho, em especial diante dos padrões culturais que constituem e formaram historicamente as sociedades no continente Americano, como a heteronormatividade, a cisnormatividade, a hierarquia social, a binariedade do sexo e gênero e a misoginia. Tais padrões culturais combinados com a intolerância quase generalizada faz com que as pessoas com orientação sexual, identidade e expressão de gênero não normativas (“padrão”) sofram violações em seus direitos (CIDH, 2019, p. 181/182).
Nesse contexto de violação, destaca que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já identificou diversos casos discriminatórios: as pessoas LGBTQIA+ são alvos de perguntas invasivas sobre sua vida privada, devem ajustar-se às exigências da noção binária de masculinidade e feminidade para lograr aceitação no ambiente profissional e em muitos casos esconder, negar ou manter em segredo sua orientação sexual ou identidade de gênero para conseguir uma vaga de emprego, não perdê-lo, não sofrer represálias ou ridicularizações. As pessoas trans, ainda, sofrem de maneira acentuada com tal situação, como a impossibilidade de obter documentação que reflita seu nome e gênero, desrespeito ao seu nome e a sua forma de se vestir, impossibilidade de utilizar banheiros públicos de acordo com sua identidade e maior hostilidade de seus colegas de trabalhos; tal contexto faz com que tais pessoas sejam expostas ao trabalho sexual, única estratégia de sobrevivência que lhes resta, o que reforça sua vulnerabilidade (CIDH, 2019, p. 182).
Além desse cenário hostil encontrado pela população LGBTQIA+ no ambiente laboral, o documento demonstra preocupação com a abordagem pública sobre ela pelas empresas de comunicação. A partir da análise de casos concretos, a Comissão ressalta que os meios de comunicação tendem a ignorar por completo os assuntos que afetam tal população, ou mesmo, quando abordam, o fazem de maneira sensacionalista e pejorativa, reforçando estereótipos e contribuindo para a realidade social que viola os direitos humanos desse grupo (CIDH, 2019, p. 184).
Tal realidade de discriminação produz um ciclo de exclusão, que tende a culminar na pobreza, na falta de acessos a serviços, oportunidades e prestações sociais, vulnerabilizando de forma mais acentuada a população LGBTQIA+ (CIDH, 2019, p. 184/185).
A CIDH e sua REDESCA, assim, reconhecem o papel importante que as empresas no geral cumprem em transformar concepções estereotipadas sobre essa população, podendo assim, por meio da inclusão, fomentar o respeito dos princípios da não discriminação e efetivamente transformar a realidade social. Nessa compreensão, exortam aos Estados para redobrar os esforços para que se faça garantir os direito das pessoas LGBTQIA+, em particular assegurando que as empresas cumpram com suas responsabilidades de respeitar os direitos humanos (CIDH, 2019, p. 183).
7. CONCLUSÃO
O reconhecimento da importância das empresas no papel de proteção e respeito dos direitos humanos já é dado nos órgãos internacionais de proteção desses direitos. Tanto no âmbito global quanto interamericano, há robusta discussão sobre o tema, revelando sua relevância e sua indispensabilidade para efetivamente se conseguir uma proteção ampla dos direitos humanos, em todas as sociedades e em todas as dimensões da vida dos indivíduos, da pública à privada.
A discussão permite reconhecer diferentes enfoques temáticos. Ao passo em que se busca a proteção e promoção de todos os direitos humanos, reconhece-se que grupos vulnerabilizados demandam uma atenção especial e medidas específicas, a fim de que seus direitos sejam efetivamente cumpridos. Tal exigência revela-se a medida em que se percebe uma realidade de violência e discriminação estrutural e histórica, que sistematicamente nega direitos a esses grupos em todas as suas dimensões de vida; dentre eles, a população LGBTQIA+. Essa constatação leva a Corte IDH a assentar que é impossível a proteção dos direitos humanos sem a promoção da igualdade e da não discriminação – categorias protegidas pela CADH -, uma vez que atos discriminatórios tem por condão justamente obstaculizar ou efetivamente negar o gozo de direitos por parte do indivíduo discriminado; logo, somente com o tratamento isonômico, tanto numa perspectiva formal quanto material (que impõe medidas afirmativas), com a garantia de que todos os indivíduos poderão gozar de seus direitos da mesma forma e com a mesma intensidade, é que se pode promover de forma efetiva a dignidade humana.
Com uma análise da temática tendo por guia o Caso Oliveira Fuentes vs. Perú, julgado pela Corte IDH, é possível conhecer, para além da jurisprudência do Tribunal, as articulações que faz o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos sobre o tema. A partir da análise dos fatos do caso, a Corte chega a conclusões importantes, que consolidam sua jurisprudência e dialogam com o Sistema Internacional de Proteção de uma forma ampla.
O Tribunal assenta a possibilidade de um Estado ser responsabilizado internacionalmente por um ato de particular, isso porque emerge da CADH os deveres de proteção dos direitos humanos, que compreende, além do respeito direito por eles por parte dos agentes estatais, o dever de organizar todo o aparato governamental, e, em geral, toda a estrutura pela qual se manifesta o poder público, de forma a efetivamente assegurar tais direitos, tanto numa perspectiva protetiva quanto pós-violatória, seja nos espaços públicos ou privados da vida. Ou seja, é preciso existir legislações e políticas públicas que exijam e incentivem a observância dos direitos humanos no âmbito empresarial, bem como efetiva regularização e fiscalização dos entes privados, punindo-se quando necessário. A deficiência nesse dever de proteção – positivo – implica a ofensa à CADH e, por consequência, a responsabilização internacional do Estado. Em outras palavras, é obrigação do Estado promover a proteção dos direitos humanos no âmbito privado, adotando as medidas necessárias e possíveis para tanto.
Ainda, a Corte reconhece a importância do papel das empresas diretamente na promoção e respeito dos direitos humanos, mormente com relação aos grupos vulnerabilizados, com destaque à população LGTBQIA+. No caso concreto reconheceu-se os atos discriminatórios praticados contra o casal homoafetivo, o que evidencia que os direitos humanos podem ser violados nos ambientes privados, tendo por agressor diretamente as empresas.
Nesse contexto, dialoga com documentos internacionais centrais sobre o tema; no presente artigo destacou-se os três principais. O primeiro se trata dos Princípios Reitores das Empresas e Direitos Humanos (Princípios de Ruggie), principal documento no âmbito da ONU que dispõe acerca do dever das empresas de proteção e respeito dos direitos humanos, o qual prevê uma séria de princípios aplicáveis tanto aos Estados quanto às empresas. O segundo trata-se de um manual de condutas produzidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, corolário dos Princípios de Ruggie, que específica os deveres das empresas, trazendo normas de conduta em diferentes dimensões da atividade empresarial que são compatíveis e são aptas à promoção dos direitos humanos. Por fim, destacou-se um documento produzido pela CIDH e sua Relatoria Especial para os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, que analisa, com enfoque no continente Americano, o papel do Estado e das empresas na promoção dos direitos humanos no ambiente privado e empresarial, trazendo diversos aspectos da temática e destaques com relação a grupos vulnerabilizados, dentre deles a população LGBTQIA+.
Conforme analisado, todos os documentos se inter-relacionam e nutrem mutua conexão. Na sentença do Caso Oliveira Fuentes, a Corte promove um diálogo construtivo entre eles, de forma a assentar postulados sólidos sobre o tema, analisados ao longo do artigo, o quais podem ser assim sistematizados: a) a orientação sexual e identidade de gênero como categorias protegidas pela CADH; b) a indispensabilidade da igualdade e não discriminação como fatores de promoção dos direitos humanos; c) o dever dos Estados de garantir o respeito dos direitos humanos no ambiente privado e empresarial, devendo adotar as medidas pertinentes e adequadas para tanto; d) a possiblidade de responsabilização internacional do Estado caso não cumpra de forma satisfatória esse dever positivo de proteção; d) a importância das empresas no papel de promoção dos direitos humanos, devendo comprometer-se com os direitos humanos e criar mecanismos internos que garantam sua efetiva promoção, tais como políticas internas, canais de denúncias, capacitação de funcionários dentre outros.
REFERÊNCIAS
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CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Empresas y Derechos Humanos: Estándares Interamericanos, 2019. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/EmpresasDDHH.pdf. Acesso em: 18/06/2023.
Corte IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso dos Buzos Miskitos (Lemoth Morris e outros) vs. Honduras, 31 de agosto de 2021b. Série C No. 432. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_432_esp.pdf. Acesso em: 16/06/2023.
________. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Oliveira Fuentes vs. Perú, 4 de fevereiro de 2023. Série C No. 484. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_484_esp.pdf. Acesso em: 15/06/2023.
_________. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva nº 24, 24 de novembro de 2017. Série A No. 24. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf. Acesso em: 15/06/2023.
_________. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Pavez Pavez vs. Chile, 4 de fevereiro de 2022. Série C No. 449. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_449_esp.pdf. Acesso em: 15/06/2023.
_________. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Suárez Rosero vs. Equador, 12 de novembro de 1997. Série C No. 35. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_35_esp.pdf. Acesso em: 14/06/2023.
_________. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Vicky Hernandez vs. Honduras, 26 de março de 2021a. Série C No. 442. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_422_esp.pdf. Acesso em: 15/06/2023.
ONU. Organização das Nações Unidas. Hacer frente a la discriminación contra las personas lesbianas, gais, bisexuales, trans e intersexuales: normas de conducta para las empresas, 2017. Disponível em: https://www.unfe.org/wp-content/uploads/2018/04/Principios-mundiales-para-las-empresas.pdf. Acesso em: 17/06/2023.
____. Organização das Nações Unidas. Principios Recortes sobre las empresas y los derechos humanos: puesta em práctica del marco da las Naciones Unidas para “proteger, respetar y remediar”, 2011. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G11/121/93/PDF/G1112193.pdf?OpenElement. Acesso em: 17/06/2023.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=vImSrc6vCBE. Acesso em 14/06/2023.
[2] Vale a menção que no Caso Trabalhadores da Fábrica de Fogos em Santo Antônio de Jesus e familiares vs. Brasil, o Estado brasileiro foi responsabilizado internacionalmente justamente em razão da sua omissão na fiscalização da atividade privada, que gerou a ofensa de inúmeros direitos humanos consagrados no sistema interamericano.
[3] Tradução livre
[4] Tradução livre.
[5] Tradução livre.
[6] Tradução livre.
Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP); Pós-graduando em Direitos Humanos pelo Círculo de Estudos pela Internet (CEI); Advogado. OAB/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CUOGHI, LEONARDO SEEFELDT. A proteção dos direitos humanos da população LGBTQIA+ no âmbito das empresas: uma leitura a partir do direito internacional dos direitos humanos e do caso Oliveira Fuentes vs. Perú Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jul 2023, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/61951/a-proteo-dos-direitos-humanos-da-populao-lgbtqia-no-mbito-das-empresas-uma-leitura-a-partir-do-direito-internacional-dos-direitos-humanos-e-do-caso-oliveira-fuentes-vs-per. Acesso em: 23 nov 2024.
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