Resumo: Este trabalho busca estudar as formas de reparação decorrentes do divórcio e da separação por ato ilícito de um dos cônjuges, bem como a aplicação da Teoria da Responsabilidade Civil no Direito de Família, mais especificamente nas relações matrimoniais. Assim, em um primeiro momento, serão realizadas análises introdutórias a respeito da Teoria da Responsabilidade Civil e a evolução dos conceitos de família e de casamento. Após, será analisada a relação entre os Direitos da Personalidade e a indenização devida ao ex-cônjuge. Posteriormente, será reservado espaço próprio para análise da aplicabilidade da Teoria da Responsabilidade Civil nas ações de separação e divórcio. Neste ponto, serão expostos os principais argumentos da doutrina no intuito de afastar o pedido de indenização por um dos cônjuges nas ações de divórcio. Assim, haverá possibilidade de análise crítica da matéria extremamente relevante na atualidade.
1 – Introdução – A Responsabilidade Civil e os Danos no Divórcio.
Como se sabe, o ser humano é, por essência, um ser gregário. Somente na vida em sociedade consegue se realizar, expandir seus horizontes e potencializar suas capacidades. Assim, para que viva em grupo, necessita da existência de organizações mínimas, que permitam a coexistência pacífica de todos os membros da comunidade para que, respeitando e sendo respeitados, possam progredir juntos, alcançando benefícios comuns que favorecerão a todos[1].
Note-se, entretanto, que não há meios para que se previna, com grau de absoluta eficiência, que todos os membros da comunidade respeitem as normas de convivência estabelecidas. O ser humano é psicologicamente livre e, assim, sua conduta pode ser obediente ou contraveniente às regras constituídas[2]. Disso, decorre a pretensão de que se restabeleça o equilíbrio social rompido, conferindo-se a vítima o direito de exigir ressarcimento do agente transgressor da norma jurídica.
Surge, então, a teoria da Responsabilidade Civil, que, segundo Caio Mário da Silva possui três requisitos essenciais: a) a conduta antijurídica, quer por comissão quer por omissão; b) o dano, c) o nexo de causalidade entre um e outro[3]. Para César Fiúza, a antijuridicidade não significa, por si só, ato Ilícito, já que a antijuridicidade pode ser pura e simples, como avançar um sinal de trânsito, sem qualquer tipo de conseqüência. Desta forma, para que o ato seja ilícito para o Direito Civil, é preciso algo mais que a simples conduta antijurídica, é necessária a ocorrência de dano, prejuízo, seja ele material ou moral[4].
A palavra “responder” tem origem no latim, “respondere”, que está ligado à idéia de contraprestação ou correspondência. Outrossim, o efeito da responsabilidade civil é o dever de reparação, para que se restabeleça o equilíbrio rompido, restituindo tanto o que a vítima perdeu, quanto aquilo que deixou de ganhar.
Em um primeiro momento, a responsabilidade civil esteve ligada a idéia de dolo do agente. Mais tarde, como forma de sanção ao indivíduo imprudente, imperito ou negligente, a teoria também passa a englobar o conceito de culpa. Atualmente, na jurisprudência de vários países, o que se vê é uma tendência de alargamento da idéia da culpa, para casos em que não se pode encontrá-la em sentido estrito, criando-se a noção de culpa presumida[5]. Foi nessa linha de pensamento que nasceu a teoria da responsabilidade objetiva, fundada não na culpa do agente, mas no risco da atividade exercida. Sem querer prolongar por demais o tema, já que não é o objetivo primordial deste trabalho, nas atividades em que o risco é fator essencial já se admite a responsabilidade objetiva pelos danos causados.
A responsabilidade Civil pode ainda ser divida em contratual e extracontratual, segundo leciona César Fiúza:
“A responsabilidade civil admite duas espécies, a contratual e a extracontratual. A contratual é aquela oriunda dos contratos. A parte contratante que lesa a outra é obrigada a reparar os prejuízos. A extracontratual tem origem nos atos ilícitos, sendo chamada de stricto sensu, para diferenciá-la da responsabilidade civil lato sensu, que engloba a contratual e a extracontratual[6].”
Depois desta breve explanação, resta saber a aplicabilidade da teoria da Responsabilidade Civil no Direito de Família, mais precisamente na separação e no divórcio. A matéria em estudo é em muito controversa e vem causando profundos debates, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Tais divergências tem em seu seio central os próprios conceitos de família e casamento e os efeitos que este gerariam a seus integrantes.
O livro de Gêneses, constante na bíblia sagrada, assim já preconiza “Deus quer que vocês entendam o casamento como uma união neste nível. Uma só carne não significa um relacionamento leviano, fútil, capaz de ser quebrado por qualquer incompatibilidade”. Tal idéia, de homem e mulher vivendo uma só vida, foi adotada no antigo direito inglês e se encontra presente no Direito Brasileiro até os dias de hoje, conforme se verifica no artigo 1.511 do Código Civil que prescreve explicitamente que “o casamento estabelece comunhão plena de vida”.
Nos dias atuais, no entanto, a família, compreendida como conjunto de pessoas, não pode ser mais vista como núcleo econômico e de reprodução. O casamento não tem mais como fim a legitimação do sexo, mas deve ser encarado como método de auto-realização dos cônjuges que, na vida a dois, anseiam por companheirismo e afeto. O interesse predominante passa a ser da pessoa, não da entidade familiar, que deve existir em função daquela[7].
Neste ponto, para alguns, nasce a questionadora dúvida a respeito do que se deve ser feito quando a deteriorização do casamento se tornar irremediável: proteger à família ou o direito do membro, com base na autonomia da vontade. Nesta seara, destacam-se as palavras do ex-ministro do STJ, Ruy Rosado de Aguiar Junior:
“São dois os valores constitucionais em confronto. De um lado, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 19, III), que deve ficar protegida de qualquer agressão, idéia que se expande também para o direito privado e tem vigência no direito de família. Neste, a necessidade de proteção da dignidade do membro da família, como pessoa, pode entrar em conflito com o interesse da entidade familiar, pois uma norma-objetivo atribui ao Estado o dever de preservar a família, instituição social valiosa, "base da sociedade, que tem especial proteção do Estado" (artigo 227)”[8].
Com a visão contemporânea do instituto do casamento como meio de promoção humana, o direito ao afeto, ao carinho e o respeito tornam-se garantias indiscutíveis aos cônjuges, conquanto a idealização do matrimônio como ato indissolúvel torna-se inaceitável. Ora, o ser humano está sempre em constante evolução e, ao longo da vida, é natural que altere suas metas, preferências e objetivos. Diante disso, é aceitável, e até mesmo previsível, a ruptura do matrimônio, mesmo que não tenha havido falta grave ou culpa de um dos cônjuges.
Assim, seguindo a tendência das legislações européias, o Direito Brasileiro, tanto na Constituição da República quanto no Código Civil, se distância da culpa e introduz, gradualmente, o princípio da ruptura nas ações de separação e divórcio. Ora, na maioria dos casos a apuração da culpa é inviável, inoportuna e inútil aos anseios do casal, pelo que se deve adotar o princípio da ruptura, bastando à demonstração da impossibilidade de vida a dois para a decretação do divórcio[9]. Neste sentido, inclusive, está a Emenda Constitucional nº 66, que possibilitou a decretação do divórcio sem prévia necessidade de separação.
Estes são, sem dúvida, os dois temas mais intrigantes para a análise da aplicabilidade da teoria da Responsabilidade Civil nos casos de separação e divórcio. Afinal, tutelar sobremaneira o direito à autonomia do cônjuge não seria mais uma maneira de o Estado se intrometer na entidade familiar? A idéia de reparação Civil entre ex-cônjuges não vai justamente contra as correntes contemporâneas que optam pela teoria da ruptura nas causas do divórcio?
Este trabalho busca, justamente, o estudo da aplicabilidade da Teoria da Responsabilidade Civil nas ações de separação e divórcio, bem como a análise das outras formas de reparação decorrentes da quebra do vínculo conjugal existentes no Direito Brasileiro.
A princípio, verifica-se que não há qualquer óbice algum para a aplicabilidade dos princípios gerais da responsabilidade civil no Direito de Família, não obstante as dúvidas levantadas (invasão da privacidade familiar e tendência de não apuração de culpa no divórcio). Primeiro, por não ser a Família um ente abstrato superior a seus membros, sendo ilógico o pensamento de que para a defesa da entidade familiar, é preciso ofender os direitos de seus componentes. Segundo, porque a reparação civil tem causa distinta da separação ou do divórcio, uma vez que a indenização não é cabida pelo simples rompimento do matrimônio, mas pela prática de ato ilícito[10]. Conforme ensina René Savatier, “o texto que obriga uma pessoa a fazer ou não fazer alguma coisa tem, normalmente, um caráter absoluto. Ele é oponível por toda a vítima da observância deste texto. Ele é oponível a todo o autor desta violação[11]”. É desta ideia que se fundamenta esta tese, partindo do princípio que, havendo ação lesiva por um dos cônjuges, praticada contra o outro, por ato ilícito, com conduta antijurídica e dano, surge o direito do ofendido à reparação.
É certo que no Direito Brasileiro, ao contrário dos Códigos Francês e Peruano, não há dispositivo expresso determinando a indenização em caso de dissolução do casamento. Todavia, nos termos dos artigos 186 e 927 do Código Civil, qualquer ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que violar direito, ou causar prejuízo à outrem, é fato gerador de responsabilidade civil. Assim, já se percebe claramente o enquadramento dos atos ilícitos como fatos geradores da responsabilidade, sendo que qualquer conduta ilícita de um dos cônjuges que causar danos ao companheiro, é, em regra, indenizável[12].
Por fim, nesta análise introdutória, resta a classificação a respeito dos danos derivados do ato do rompimento matrimonial por ato Ilícito de um dos cônjuges. No direito estrangeiro – argentino, português e francês – é feita a distinção entre os danos acarretados pelo ato ilícito praticado e os prejuízos da ruptura do casamento. Os primeiros derivam da própria causa do divórcio e, por isso, são denominados de “imediatos”. Podem ser de natureza moral, consubstanciados, por exemplo, nos abalos psíquicos sofridos pelo cônjuge traído, ou de natureza material, caso do cônjuge agredido que precisa efetuar gastos para realização do tratamento médico adequado[13]. Os segundos, por sua vez, são os “danos mediatos”, que possuem ligação indireta com o descumprimento do dever conjugal. Neste caso, o dano é baseado na desigualdade e os prejuízos que a ruptura precoce do matrimônio podem causar para o cônjuge, como por exemplo, o prejuízo pela liquidação da sociedade imposta pela partilha de bens.
Desta forma, é indubitável que a prática de ato ilícito por um dos cônjuges e a ruptura precoce do matrimônio geram danos de natureza moral e patrimonial. Outrossim, várias são as formas de reparação dos danos causados, tanto no direito estrangeiro quanto no direito pátrio, conforme se verificará na sequência desse estudo.
2. A Reparação Civil na Separação e no Divórcio
2.1 - Direito das Personalidades e Reparação Civil no Divórcio
Apenas no século XVIII que os Direitos da Personalidade começaram a ser construídos da maneira que os conhecemos hoje, sob a denominação “Direitos Fundamentais do Homem e do Cidadão”. Contudo, como conceito complexo que é, sua construção se deu ao longo dos anos, sendo possível encontrar suas raízes em declarações históricas de datas bem mais anteriores, como a Magna Carta, de 1.215 e a Declaração dos homens e do Cidadão, de 1.789[14]. O grande diferencial, no entanto, é que estas normas antigas relacionavam os direitos da personalidade em relação ao Poder Público. Isto é, eram regras de caráter absoluto que garantiam ao indivíduo o mínimo de segurança contra as arbitrariedades cometidas pelo Estado, um direito de caráter absoluto para fazer frente ao poder absoluto do rei. Os direitos da personalidade tal qual são entendidos hoje, e que deram causa à reviravolta da visão que se tinha das relações sociais, dizem respeito a estes mesmos direitos, mas sobre o ângulo do Direito Privado, nas relações entre os particulares.
A importância destas normas ganha relevo após a Segunda Grande Guerra Mundial, como forma de reação aos horrores realizados pelos estados nazi-fascistas. Nasce, daí, as Declaração Universal dos Direitos dos Homens, de 1950, que garante os direitos básico do ser humano não só contra o Estado ou autoridade (direitos humanos propriamente ditos), como também oponíveis à outro particular (direitos da personalidade)[15] .
Em uma definição sucinta, os direitos da personalidade são aqueles inerentes a toda e qualquer pessoa, tais como a vida, à dignidade, à busca pela felicidade, etc. São aqueles que permitem a cada ser humano capacidade de existência e de liberdade. São direitos privados, inatos e vitalícios que têm por objeto manifestações interiores à própria pessoa e, por serem inerentes, não podem transmitir-se nem dispor-se de forma inerente e radical[16].
Neste novo paradigma, no qual os direitos da personalidade são elevados à categoria de garantias constitucionais, como no caso brasileiro, nasce a necessidade de resguardá-los contra possível ameaça de terceiros. Assim, a teoria da responsabilidade civil passa a ser aplicada também para tutelar direitos subjetivos como a honra e a imagem, dando ensejo a reparação de danos tanto morais, quanto materiais.
Mais do que isso, na medida em que se passa a enxergar os direitos da personalidade como base fundamental da sociedade atual, sob a ótica de que só é possível a felicidade social conjugada com felicidade individual, a reparação civil passa a ser aplicada, ou ao menos discutida, em situações antigamente impensadas. É o caso da aplicação da Teoria da Responsabilidade no Direito de Família e, mais precisamente, nos casos de separação e divórcio. Se antigamente á família era vista como entidade de caráter superior, de garantia da própria existência da vida social, agora passa a ser entendida como meio de realização do ser humano. Isto é, não há que se falar em preservação da vida familiar com o sacrifício dos direitos da personalidade de um de seus membros, já que, neste caso, a própria família estaria fadada precocemente ao fracasso. Com a virada paradigmática, então, cada vez mais países passam a aceitar e regular a reparação civil nos casos de separação e divórcio, dando ao cônjuge inocente direito à indenização por eventuais danos sofridos.
A França foi o primeiro país a regular expressamente a matéria, fazendo constar em seu Código Civil, no artigo 266 [17], possibilidade de ressarcimento de danos causados com a ruptura da vida em comum. Destarte, antes mesmo da introdução do artigo mencionado, já havia ampla jurisprudência no sentido de conceder indenização ao cônjuge lesado consubstanciada na regra geral de Responsabilidade, do art. 1.382 [18], do Código Francês[19]. Sobre o tema, comungamos do entendimento de Regina Beatriz Tavares da Silva que, com base em doutrinadores como Alex Weill e François Terré, afirma que os artigos 266 e 1.382 não são excludentes, mas complementares[20]. Isto porque, a regra constante do art. 266 (prestação compensatória) concerne aos prejuízos provocados indiretamente pela dissolução do casamento e a norma disposta no art. 1.382 diz respeito à causa da ruptura em si.
Neste mesmo sentido caminha o Direito Português, que também possui disposição expressa sobre a reparação civil na separação e no divórcio, no art. 1.792[21] do seu Código Civil. Tal qual a sistemática do Direito Francês, entende-se que a regra especial só é utilizada em relação aos danos mediatos, isto é, os prejuízos que o divórcio e a separação de corpos poderão trazer a um dos cônjuges. Os danos emergentes dos fatos que originaram o pedido de separação/divórcio continuam encontrando seu fundamento na regra geral de responsabilidade civil, no caso, no art. 483[22] do Código Civil Português.
O Direito Argentino, por sua vez, não possui regra expressa sobre a reparação civil nos casos de separação e divórcio. A partir da década de 1970, no entanto, a possibilidade de indenização do cônjuge culpado em favor do inocente passou a ser justificada com base na regra legal da Responsabilidade Civil[23], disposta no art. 1.109 do Código Civil Argentino. A grande discussão que por lá se coloca é quais seriam os danos indenizáveis: se os oriundos do fato causador do divórcio ou se os ocasionados pela ruptura da vida conjugal em si. Corrente crescente e cada vez mais forte, tanto na doutrina como jurisprudência local, é de que somente os danos imediatos, relacionados à conduta do cônjuge culpado, são indenizáveis[24]. Isto porque, os danos ocasionados pelo rompimento da vida conjugal já estariam indenizados com as regras do direito de família, que punem o cônjuge culpado pela separação, impondo-o, por exemplo, obrigação de prestar alimentos e conferindo ao cônjuge inocente direito de permanecer no imóvel que foi domicilio conjugal[25].
Por fim, o Direito Peruano, junto com o francês e o português, completa o rol dos países que contêm disposição normativa expressa quanto a indenizabilidade pela ruptura da via conjugal[26]. O moderno Código Civil Peruano, de 1.984, dispõe em seu art. 351: “Se os fatos determinantes do divórcio comprometem gravemente o legítimo interesse pessoal do cônjuge inocente, o juiz poderá lhe conceder uma soma em dinheiro como reparação pelo dano moral”.
Conforme se verifica, são poucos os países que possuem disposição expressa em seu sistema normativo sobre a reparação dos danos na separação e no divórcio. Ao longo dos anos, no entanto, o que se percebe em vários sistemas normativos ao redor do globo é a aplicação do princípio da reparação com base na Teoria Geral da Responsabilidade Civil. Isto porque, na realidade contemporânea, o que se vê é a valorização do indivíduo, com a crescente tutela aos direitos da personalidade. Assim, a todo ser humano é reconhecido um direito a um projeto de vida que, se interrompido por outrem por motivo injusto e brutal, não só pode, mas deve ser reparado. Neste campo, o casamento, como um dos principais projetos que se pode realizar durante uma vida, reveste-se de fundamental importância, já que sua ruptura poderá ocasionar sérios transtornos psicológicos, quando não materiais, à vítima.
2.2- O Tema no Direito Pátrio.
A possibilidade de reparação civil nos casos de separação e divórcio nunca angariou grande simpatia da doutrina e jurisprudência brasileiras clássicas. Isto porque, segundo estes, o Código Civil traz remédios específicos para caso de danos por ação de um dos cônjuges e, no tradicional Direito de Família, a disposição de defesa da estabilidade e da estrutura familiar apontam para caminho diverso da responsabilidade[27].
A partir da Constituição de 1988, todavia, parece haver crescido o número de defensores do cabimento da responsabilidade civil no âmbito do direito de família. Isto porque, a Constituição Brasileira, espelhada no paradigma do Estado Democrático do Direito, coloca a dignidade humana como fundamento da pátria. O inciso III, do art. 1º, da CF/88 dispõe expressamente que “a República Federativa do Brasil tem como fundamento a Dignidade Humana”, além desse, outros artigos, como o 3º e o 5º, reafirmam a preocupação do constituinte em se construir um país com respeito aos direitos individuais. Assim, a pessoa passa a ser considerada como razão do direito e seu último fundamento.
Neste sentido tem sido o posicionamento de grandes doutrinadores da atualidade. Sem querer adentrar em tópico que será especificadamente tratado mais adianta, citam-se as palavras de Yusser Cahali neste sentido:
“Ora, conforme se viu anteriormente nosso legislador fez-se invisível à admissibilidade de qualquer forma de indenização por perdas e danos, fundada exclusivamente na conduta faltosa de um dos cônjuges como causa de dissolução da sociedade conjuga, exaurindo a sanção, sob este aspecto, no encargo alimentar, eventuais danos materiais e morais, ligadas ao ato posto como causa de separação extrapolariam o âmbito de direito de família, inserindo no âmbito da responsabilidade aquiliana do direito comum ”.
Regina Beatriz Tavares da Silva Papa dos Santos também é fiel a este entendimento:
“No Direito Brasileiro, diante da legislação vigente projetada, é descabida qualquer interpretação que impeça a aplicação dos princípios e regras sobre responsabilidade civil à dissolução culposa da sociedade conjugal, porque a essência ética do casamento e a defesa da paz familiar, argumentos estes que busca apoiar-se aquela exegese, não tem qualquer valia depois que um dos cônjuges promove contra o outro uma ação de separação judicial.”
Até mesmo o clássico Caio Mário da Silva Pereira afirma categoricamente que “afora os alimentos, que suprem a perda da assistência direta, poderá ocorrer ainda a indenização por perdas e danos (dano patrimonial e dano moral), em face do prejuízo sofrido pelo cônjuge inocente[28]”.
Assim, embora ainda presente no Direito Brasileiro, a teoria de imunidade dos entes familiares parece estar perdendo força. Atualmente, é grande o número de defensores da aplicabilidade da teoria da responsabilidade nas relações familiares, como fez, por exemplo, o desembargador José Flávio de Almeida em recente julgado do TJMG, na apelação Cível de nº 2.0000.00.417592-2/000:
INFRAÇÃO DOS DEVERES DO CASAMENTO - FILHO ADULTERINO - FATO REVELADO APÓS SEPARAÇÃO JUDICIAL DO CASAL - AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL - REPARAÇÃO DEVIDA. O ato ilícito que configura infração grave dos deveres conjugais legitima o ajuizamento de ação de reparação de danos morais pelo ofendido, de acordo com a regra geral de definição da responsabilidade civil, independentemente de se apresentar como causa da dissolução do casamento. Inflige dano moral ao ex-marido a mulher que, após a separação judicial do casal, deixa revelar que ele não é o pai da filha adolescente concebida na constância do casamento.
Acompanhando as evoluções doutrinárias e jurisprudenciais brasileiras constata-se, portanto, cada vez mais a aplicação da teoria da Responsabilidade Civil nos casos de separação e divórcio, entendimento que coaduna com os valores modernamente atribuídos aos direitos da personalidade, à autonomia da vontade e o desejo de igualdade entre os cônjuges.
No Estado Democrático de Direito não há espaço para a família centrada em uma estrutura hierarquizada e controlada pelo domínio do marido, chefe e provedor da sociedade conjugal. Tampouco se pode entender a sociedade familiar como entidade superior, protegida pelo divino e que deva, de toda forma, ser tutelada para que se mantenha duradora, mesmo que a conseqüência disso seja acompanhada a profunda infelicidade dos envolvidos. Ao contrário, a família, e mais precisamente o casamento, deve ser entendido como meio de se alcançar a felicidade, devendo ser desconsiderado qualquer tipo de entendimento que a transforme um fim em si mesmo.
2.3. - Indenização por danos morais e materiais
Nosso ordenamento jurídico não contém nenhum tipo de previsão específica sobre a reparação de danos materiais ou morais decorrentes da separação ou divórcio. Neste sentido, há o projeto de Lei nº 6.960, de 2002, de autoria do deputado Ricardo Fiúza, que visa acrescentar um segundo parágrafo no art. 927, com a seguinte redação: “Os princípios da responsabilidade civil se aplicam ao direito de família”.
Se ainda não há previsão legal expressa para a aplicação dos princípios da responsabilidade civil no Direito de Família, por outro lado, não há nenhum tipo de vedação que desautorize a reparação por danos morais ou materiais nos casos familiares, o que, ao menos em tese, não impediria a aplicação da regra geral de responsabilidade, prevista no art. 186 do Código Civil.
Grandes nomes da doutrina clássica defendem a não aplicação da teoria da responsabilidade civil nas relações de família pela peculiaridade que é própria ao Direito de Família, no qual o elemento pessoal deve sempre se sobrepor ao elemento patrimonial[29]. Neste sentido, defende Maria Celina Bodim Moraes:
“O problema grave, parece-me (...) é que a compensação do dano moral se faz exclusivamente , em pecúnia, em dinheiro. Então, em havendo o descumprimento de qualquer dos deveres do casamento – dever de assistência moral e material, dever de respeito, dever de coabitação, dever de fidelidade, etc – a solução deve ser a compensação em dinheiro?[30]”
“O pagamento de uma indenização, nestes casos específicos, agravaria ainda mais a situação de grave conflito, de verdadeira guerra nuclear – perdoem a analogia – que normalmente ser vêem nos juízos de separação e de divórcio. As pessoas envolvidas já estão sofrendo mais do que o suficiente e pagando todos os seus pecados. A idéia de se poder tirar dinheiro da situação acende ou faz surgir o que há de pior em nós: a cobiça.[31]”
Tal argumento, de não aplicação dos danos morais ao direito de família sob risco de monetarização dos sentimentos, parece-nos, na verdade, uma crítica à própria indenização por dano moral. Ora, toda e qualquer reparação por dano moral diz respeito a um sentimento ou estado psíquico da vítima, sendo que eventual discussão a respeito da monetarização de sentimentos é matéria a ser discutida em toda sistemática do Direito Civil, não se restringindo ao Direito de Família.
Neste sentido, a Constituição Federal pacificou a questão sobre a reparabilidade do dano moral, estatuindo em seu art. 5º, inciso V, ser “assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alem de indenização por dano moral ou à imagem”. Assim, não há dúvidas de que os sentimentos e o estado psíquico das pessoas são bens jurídicos a serem protegidos e restabelecidos em caso de agressão. O fato de a reparação estabelecida ser em pecúnia se dá unicamente em razão da insuficiência dos meios humanos, que, em se tratando de bens imateriais, não conseguem restabelecê-los ao estado de origem após uma agressão [32]. Ademais, não há qualquer prerrogativa familiar a permitir que possa um membro da família causar dano doloso ou culposo a outro, mediante conduta ilícita, e se eximir de sua responsabilidade em virtude do vinculo familiar, já que a pessoa não responde em razão do vínculo familiar, mas em razão do dano causado[33].
Outro argumento para um princípio da imunidade da responsabilidade civil nas relações de família é a possibilidade de ocorrência do “bis in idem”, já que o cônjuge culpado já poderia estar obrigado a prestar alimentos[34]. Neste ponto, reiteramos o entendimento sobre o descabimento de se considerar a natureza exclusivamente indenizatória dos alimentos, já que não se pode conceber uma indenização condicionada à necessidade do credor. Ademais, o alimento devido ao cônjuge inocente ressarce única e simplesmente os danos sofridos com a cessação do dever de assistência.
O argumento de proteção à família como célula máter da sociedade também não pode prosperar, seja pelas garantias aos direitos da personalidade exaustivamente tratadas neste trabalho, seja pelo fato de que, com a dissolução do matrimônio pelo divórcio, já não existe relação conjugal entre ofensor e ofendido.
Diante de tudo isso, resta indiscutível a aplicabilidade dos princípios gerais da responsabilidade civil no Direito de Família e, em especial, nos casos de separação e divórcio.
2.4 - Danos indenizáveis
Uma vez constatada a possibilidade de reparação civil, por perdas e danos, nas relações de família, mais precisamente nos casos de separação e divórcio, deve-se esclarecer quais seriam os danos indenizáveis. Para isso, todavia, é preciso, antes, compreender a natureza jurídica da reparação civil na separação e no divórcio, se contratual ou extracontratual. Sobre o tema, Regina Beatriz Tavares deixa claro seu posicionamento:
“Por ser o casamento um contrato, embora especial de Direito de Família, a responsabilidade pela reparação dos danos oriundos de sua ruptura é do tipo contratual [35].”
Em que pese o posicionamento da renomada estudiosa, acreditamos que a reparação civil advinda da ruptura da vida em comum não pode, em hipótese alguma, ser considerada contratual. Isto porque, face aos direitos inerentes à personalidade, nem toda violação aos direitos conjugais seriam consideradas indenizáveis.
Conforme já explanado no tópico pertinente, os direitos da personalidade são “direitos privados, inatos e vitalícios que têm por objeto manifestações interiores à própria pessoa e, por serem inerentes, não podem transmitir-se nem dispor-se de forma inerente e radical”. Desta maneira, não se pode admitir que o casamento crie algum tipo de dever que interfira nos direitos inerentes à personalidade do cônjuge. Qualquer pensamento neste sentido resultaria, inclusive, em conclusões temerosas como a inexistência de crime de estupro praticado contra o cônjuge, já que só se estaria cobrando obrigação de fazer anteriormente acordada entre as partes.
Sem querer adentrar em discussões que não são objeto do presente trabalho, como, por exemplo, a natureza jurídica do casamento (se de contrato ou se de instituto), deve-se lembrar que o dever de reparação pelos danos causados não nascem com a celebração do casamento. Isto é, aquele que comete injúria grave contra outro, tem o dever de indenizar pelos danos morais causados, independente de ter relações com a vítima ou não. Se por um lado o matrimônio não obsta a aplicação da Teoria Geral da Responsabilidade Civil, como afirmava a corrente clássica, por outro, é situação que não modifica ou cria novo dever de reparar os danos causados mediante conduta ilícita. Neste sentido, leciona Caren Alves Becker de Souza:
“Com efeito, não se pode afirmar uma imunidade total entre cônjuges, podendo se agredir mutuamente, sem respeito aos direitos do consorte, em especial aos direitos da personalidade. No entanto, indenização porventura devida não decorrerá de violação de um dever pessoal de família, mas da infração de um dever absoluto, que surge independente do vínculo familiar[36].”
Definido o tipo da responsabilidade civil nos casos de separação e divórcio já se esclarece, em muito, quais seriam os danos indenizáveis. Uma vez que a responsabilidade civil dos cônjuges não advém dos “deveres conjugais”, não é a sua simples violação que gerará o dever de indenizar, será preciso a comprovação de dano exorbitante a normalidade conjugal.
Algumas atitudes dos cônjuges, embora sejam vedadas pelos “deveres conjugais”, são meros exercícios do direito de autodeterminação, expressando apenas a perda do vínculo afetivo. Assim, não cabe indenização em condutas que são simplesmente expressões de desamor, de perda do vínculo de afeto. Neste sentido, explica Rolf Madaleno:
“O desamor não se indeniza, os sentimentos e sua evolução são ingovernáveis, da maneira que representaria uma aplicação excessiva dos princípios gerais impor o pagamento de indenização frente a atos que, se bem podem implicar a cessação dos deveres conjugais, na sua essência não podem ser considerados mais do que a expressão da perda do vínculo afetivo; a indenização há de ficar reservada somente para as condutas dos cônjuges que, ademais de representar violação de deveres matrimoniais, implicam autênticos agravos a outro cônjuge, sem se limiar a expressões de mera perda de vínculo de afeto[37].”
Neste ponto, é interessante distinguir os conceitos de crise conjugal e de real culpa conjugal. A crise conjugal geralmente acontece por sucessão recíproca de ambos os cônjuges que levam, gradualmente, a perda do afeto e o não exercício dos deveres conjugais como o da vida em comum ( inciso I, art. 1.566, CC) ou o de mútua assistência (inciso III, art. 1.566, CC). Desta maneira, só devem ser indenizados danos oriundos de real culpa conjugal, que ocorrem devido atitudes exorbitantes à normalidade da vida a dois como, por exemplo, o adultério, o insulto público, agressões físicas, etc.
Conforme se observa, a análise a respeito da possibilidade de reparação de eventual dano causado deve se realizar através de detalhada análise do caso concreto. O simples descumprimento de dever conjugal não deve servir de subsídio para pedidos de reparação. Um cônjuge que, por exemplo, resolver abandonar o domicílio da família em razão de sucessivas brigas, não deverá ser condenado a indenizar sua ex-companheira, mesmo que isso tenha lhe causado sérios danos, já que apenas exerceu seu direito de autodeterminação, sem qualquer tipo de dolo ou culpa, já que os sentimentos humanos não são de nenhuma maneira controláveis ou previsíveis. Por outro lado, caso um dos companheiros pratique injúria grave ou ato de adultério, estará cometendo, dolosamente, ato ilícito que, gerando dano, ensejará a reparação civil.
Sobre este tema, é precisa a lição de Gischwow Pereira, citado na obra “A Culpa na separação do divórcio” de Caren Becker Alves de Souza:
“Concorda-se em que não possa um cônjuge ou companheiro infligir ao outro, por exemplo, agressões físicas e/ou morais (agressão moral entendida aqui não como mal-estar provocado por determinado comportamento não endereçado intencionalmente contra o cônjuge, mas sim como ofensa verbal direta e dolosa) e não estar sujeito, se for o caso, a indenizar por danos morais, assim como qualquer pessoa está sujeita a indenizar a outrem por danos morais decorrentes de tais agressões. O perigo da extensão da indenizabilidade está em deferi-la, indiscriminadamente, para as hipóteses em que somente entre os cônjuges, ou entre quem – de uma forma mais genérica e abrangente – vivencia relação erótico-afetiva, possa ocorrer determinada atitude que se queira como geradora de dano moral, como sucede nas infrações de deveres do casamento e da união estável. A prosperar este exagero, praticamente toda a ação de separação judicial ensejaria pedido cumulado de perdas e danos morais, em deplorável e perniciosa monetarização das relações afetivas(...). O mesmo problema haveria no divórcio e na união estável, e, certamente, em pouco tempo, a onda avassaladora de duvidoso moralismo atingiria os relacionamento erótico-afetivos [38]””.
Para prosseguir a análise, convém, mais uma vez, distinguirmos os danos mediatos e imediatos. Como nos ensina Maria Helena Diniz[39], o dano poderá ser direto ou indireto mediante ao fato gerador. O dano será direto se resultante do fato lesivo, havendo uma relação imediata entre a causa destacada pelo direito e a conduta sofrida pela pessoa. O dano será indireto se consistir na conseqüência da perda mediatamente sofrida pelo lesado, representando uma perda em outros bens que não foram diretamente atingidos pelo fato lesivo.
Conforme já observamos, é indiscutível a reparabilidade dos danos causados diretamente da ação de um cônjuge em relação ao outro, desde que não sejam simples fruto do exercício do direito de personalidade inerente a cada um deles. É pacífico que, nos caso dos danos diretos, há a presença dos requisitos da responsabilidade civil, qual seja, ato ilícito, nexo causal e dano. Desta maneira, são indenizáveis tantos os danos morais, quanto os materiais, desde que devidamente comprovados.
Todavia, o ato ilícito de um dos cônjuges pode gerar também danos mediatos, tanto de ordem material, quanto moral. Regina Beatriz Tavares[40], cita como exemplo os prejuízos impostos a um dos cônjuges pelos gastos com a troca de imóvel (danos materiais) e os danos morais que podem advir pelo sofrimento ocasionado pela ruptura do casamento.
Parece-nos, entretanto, que não há motivos para que a reparação do ato ilícito causado por um dos cônjuges alcance também os danos ocasionados pela separação ou divórcio em si. Isto porque, conforme visto acima, para que um dano seja considerado indireto é preciso que, embora não tenha vínculo causal com o ato ilícito praticado, seja conseqüência lógica do dano mediato por ele praticado, sendo certo que não ocorreria se a agressão não fosse praticada. Assim, não mais vigendo o princípio da indissolubilidade do matrimônio, torna-se impossível afirmar que a separação ou divórcio não ocorreria sem a conduta ilícita de um dos cônjuges. Ademais, nos dias atuais, o rompimento, ainda que indesejado, é previsível, ou ao menos, não é ato ilícito[41].
Neste sentido, Caren Backer Alves de Souza é de absoluta clareza ao analisar os danos morais que podem vir a sofrer um dos cônjuges pelo divórcio ocasionado pela conduta ilícita de um dos cônjuges:
“Não se nega aqui que a separação cause dor, não só aos cônjuges, mas também à prole e à própria sociedade que cerca a família. Porém, esta dor não abre espaço para qualquer prestação pecuniária”[42].
Nos casos de danos materiais ocasionados pelo divórcio por ato ilícito melhor que qualquer tipo de indenização, seria a introdução no Direito Brasileiro da prestação compensatória, existente no Direito Francês. Até mesmo porque a compensação das disparidades econômicas que a ruptura do casamento pode ocasionar deve acontecer mesmo sem culpa ou ato ilícito de qualquer dos cônjuges, levando-se em conta o esforço realizado para a conservação e criação destes bens.
Desta maneira, mesmo sem adentrar no argiloso terreno da culpabilidade, seria possível evitar injustiças como da mulher que, após um casamento de vários anos, no qual se dedicou exclusivamente ao lar, depara-se com o desfazimento do patrimônio e da condição financeira em razão do divórcio.
Por fim, resta analisar a possibilidade de reparação pela perda de uma chance nos casos de separação e divórcio. A indenização pela perda de uma chance se consubstancia a lesão a uma probabilidade, real, certa e futura. Nestes casos, mesmo não havendo um dano certo e determinado, existe um prejuízo para a vítima, decorrente da legítima expectativa que ela possuía em angariar um benefício ou evitar um prejuízo. Logo, para que exista a possibilidade de reparação civil das chances perdidas, deve-se enquadrá-las, como se danos fossem[43].
A jurisprudência brasileira começa a aceitar a aplicabilidade de tal teoria, em recente e pioneira decisão, a Justiça do Trabalho[44] condenou uma sociedade de advogados a indenizar o cliente por danos morais causados pela frustração pela perda do prazo recursal em ação de reclamação trabalhista, já que a jurisprudência do tribunal superior era amplamente favorável às pretensões do requerente. Desta forma, poder-se-ia imaginar a situação de um cônjuge que, com o divórcio decretado em virtude de ato ilícito do ex-parceiro, perde a chance da construção do núcleo familiar que imaginara ao se casar, destruindo todo o projeto de vida anteriormente traçado.
Em que pese a indiscutível pertinência da indenização pela perda de uma chance, tem-se que, nos casos de separação e divórcio, não há os pressupostos necessários para sua aplicação. Isto porque o casamento é, por sua própria natureza, uma escolha de conseqüências imprevisíveis. É claro que as pessoas se casam visando a felicidade, porém é de comum senso que os fins almejados não necessariamente serão alcançados. O casamento é uma escolha e, como tal, envolve risco, não havendo que falar em “perda de uma chance” de constituir um núcleo familiar duradouro e feliz, já que não há nenhum indício de certeza de que isso aconteceria sem o ato ilícito praticado.
Tais casos tratam-se, na verdade, de dano hipotético que, como elege o melhor entendimento, não é indenizável. No dano hipotético temos apenas uma suposição, um evento futuro e absolutamente incerto, completamente aleatório e que depende de inúmeros fatores externos para que um dia venha a ocorrer. Diferentemente da chance, portanto, não existe o mínimo grau de certeza em sua ocorrência e, por isso, ele não é indenizável[45].
3. Conclusão
Conforme se viu no presente trabalho, aplica-se o princípio Geral da Responsabilidade Civil nas relações de família, no qual, diante da ação lesiva é assegurado ao ofendido o direito à reparação, com o cumprimento do Direito e o restabelecimento da ordem social anteriormente rompida. As formas de reparação civil especificamente previstas no Código Civil (pensão alimentícia e reversão) não se confundem e tampouco configuram bis in idem se cumuladas com a reparação prevista no art. 186.
A reparação por perdas e danos, no entanto, não pode ser excessivamente admitida em todos os casos, sob risco de sob o pretexto de proteger os direitos da personalidade de um dos cônjuges retira-los do outro parceiro. A indenização por ventura devida ao ex-cônjuge é do tipo extracontratual e, por isso, advém da prática do ato ilícito “latu sensu” e, desta forma, não se pode reconhecer o dever de reparação pela simples quebra de um dever conjugal. A causa de pedir próxima (fundamento) da indenização é totalmente dispare do fundamento do pedido de divórcio, já que aquela se baseia no ato ilícito do ex-companheiro e esta, cada vez mais, diante da aplicação do princípio da ruptura em detrimento do princípio da culpa, baseia-se na simples impossibilidade de vida a dois, limitando-se à demonstração da culpa para fixação da pensão alimentícia, uso do sobrenome, guarda dos filhos e outras questões próprias do Direito de Família.
Pode-se concluir também a impossibilidade de reparação pelos danos causados pelo divórcio em si ou pela perda de uma chance de se construir o núcleo familiar coeso e duradouro que se imaginava do início do matrimônio. Embora seja inegável que a separação seja sempre dolorosa, é preciso reconhecer a liberdade ao outro cônjuge, para constituir um novo projeto de vida. A vida, é sempre feitas de escolhas que, como tais, envolvem riscos, e podem dar certo ou não. Deste modo, com o fim do casamento, mesmo que por ato ilícito do ex-parceiro e com todo o sofrimento que advém nestas situações, cabe ao cônjuge inocente realizar novos planos e buscar sua felicidade, sozinha ou na companhia de outro alguém, buscando, caso queira, a indenização pelos danos sofridos em virtude dos atos ilícitos praticados, nunca em razão do divórcio ou da separação em si.
Também restou clara a necessidade de criação de remédio próprios do Direito de Família para ressarcir os danos causados ao cônjuge inocente com a separação e o divórcio. Neste sentido, pode-se importar institutos já existentes no Direito estrangeiro como, por exemplo, a prestação compensatória, e/ou o alargamento de institutos já existentes no Direito pátrio, como a reversão do regime de bens em favor do cônjuge inocente.
Acredita-se que as medidas sugeridas, de maneira nenhuma, contribuirão para a degradação da entidade familiar, como afirmam os mais conservadores. Ao contrário, a aplicação da teoria da responsabilidade civil no Direito de Família e a criação de novas formas de reparação ao cônjuge inocente tendem a fortalecer a sociedade familiar, protegendo o bem que toda família tem de mais importante: seus membros individualmente considerados. Só se protege o coletivo, protegendo o singular, não há outro modo de se buscar a valorização da família, sem, antes, valorizar os membros que a compõe.
Eventual pedido de indenização, por sua vez, deverá ocorrer na Varas de Cíveis, não nas Varas de Família, já que o fundamento da ação de indenização se baseia na Teoria da Responsabilidade Civil, não tema próprio do Direito de Família[46]. Destarte, com a aplicação das medidas sugeridas, é aconselhável a expansão da competência das Varas de Família, mediante a alteração das respectivas Leis de organização judiciária (tal qual a expansão ocorrida na justiça do Trabalho que passou a ser competente para julgar e processar indenização por danos morais e materiais decorrentes da relação de trabalho).
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[1] SANTOS, REGINA BEATRIZ TAVARES PAPA DOS. Reparação Civil na Separação e no Divórcio, p. 130. São Paulo: Saraiva editora, 1999.
[2] PEREIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA. Instituições do Direito Civil, p. 653, Rio de Janeiro: Forense editora, 2007.
[3] PEREIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA. Instituições do Direito Civil, p. 653, Rio de Janeiro: Forense editora, 2007.
[4] FIÚZA, CÉSAR AUGUSTO DE CASTRO. Curso de Direito Civil Completo. Belo Horizonte: Delrey Editora, 2003
[5] PEREIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA. Instituições do Direito Civil, p. 662, Rio de Janeiro: Forense editora, 2007.
[6] FIÚZA, CÉSAR. Curso de Direito Civil, p. 281. Belo Horizonte, Del Rey, 2010.
[7] SOUZA, CAREN BECKER ALVES. A culpa na separação e no Divórcio, p.5. Belo Horizonte: UFMG, 2004.
[8] AGUIAR JUNOR, RUY ROSADO. Responsabilidade Civil no Direito de Família, n.2, p. 39. São Paulo, 2005.
[9] Souza, Caren Becker Alves. A culpa na separação e no Divórcio, p.5. Belo Horizonte: UFMG, 2004
[10] Souza, Caren Becker Alves. A culpa na separação e no Divórcio, p.5. Belo Horizonte: UFMG, 2004
[11] René Savatier, Traité de La responsabilité civile em droit français, p. 12, 12 Ed. 12. Paris, 1951
[12] Carvalho Neto, Inácio. Reparação Civil na Separação Litigiosa Culpos in ; Direito e Responsabilidade, p. 69. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2002.
[13] Santos, Regina Beatriz Tavares Papa dos. Reparação Civil na Separação e no Divórcio, p. 153. São Paulo: Saraiva editora, 1999
[14] DELGADO, MARIO LUIZ. Direito da Personalidade nas relações de família in Família e Dignidade Humana, Peireira, Rodrigo (coord), p.695. Belo Horizonte, 2006.
[15] DE MATTIA, FABIO MARIA. Direitos da Personalidade. Aspectos Gerais. São Paulo: Revista de Informação Legislativa, nº.56,p.247,1977.0
[16] DELGADO, MÁRIO LUIZ. Direito da Personalidade nas Relações de Família p.684 in Família e dignidade Humana; Pereira, Rodrigo da Cunha (Cord.) . São Paulo, 2006.
[17] “Art. 266: Quando o divórcio é decretado por culpa exclusiva de um dos cônjuges, este pode ser condenado a perdas e danos em reparação do prejuízo material ou moral que a dissolução do casamento causar.”
[18] “Art. 1.382: Todo homem que cause a outro um prejuízo, obriga aquele a repará-lo.”
[19] Souza, Caren Becker Alves de. A Culpa na separação e no Divórcio, p. 91. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2004.
[20] SANTOS, REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA PAPA. Reparação Civil na Separação e no Divórcio, p.25. São Paulo: editora Saraiva, 1.999.
[21] “art. 1.792: O cônjuge declarado único ou principal culpado e, bem assim, quem pediu divórcio com o fundamento da alínea “c” do art. 1.781 , devem reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento; II – O pedido de indenização deve ser deduzido na própria ação do divórcio
[22]“Art. 483: Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indenizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
[23] Souza, Caren Becker Alves de. A Culpa na separação e no Divórcio, p. 91. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2004
[24] SANTOS, REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA PAPA. Reparação Civil na Separação e no Divórcio, p.54. São Paulo: editora Saraiva, 1.999
[25] BORDA, GUILHERMO, p.552. Buenos Aires, 1996.
[26] SOUZA, CAREN BECKER ALVES DE. A Culpa na separação e no Divórcio, p. 98. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2004
[27] MADALENO, ROLF. Responsabilidade Civil na Conjualidade e Alimentos Compensatórios. Pereira, Rodrigo Cunha – Família e Responsabilidade. Porto Alegre, IBDFAM, 2010.
[28] PERERIRA, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. Instituições do Direito Civil: Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense editora, p.156.
[29] VILELA, JOÃO BATISTA. Família e Liberdade
[30] MORAES, MARIA CELINA BODIN. Danos Morais nas relações de Família in Anais do IV Congresso do Direito de Família p. 412. Pereira, Rodrigo da Cunha (cord.). Belo Horizonte, 2004.
[31] MORAES, MARIA CELINA BODIN. Danos Morais nas relações de Família 412 in Anais do IV Congresso do Direito de Família. Pereira, Rodrigo da Cunha (cord.). Belo Horizonte, 2004.
[32] CAHALI, YUSSEF SAID. Do dano Moral. São Paulo, 1999.
[33] ROLF, MADALENO. Curso de Direito de Família, p.287.
[34] CARVALHO NETO, INÁCIO. Responsabilidade no Direito de Família, p. 312, 2007.
[35] SILVA, REGINA BEATRIZ TAVARES. A Emenda Constitucional do Divórcio, p.166. São Paulo, 2010.
[36] SOUZA, CAREN BECKER ALVES DE. A Culpa na separação e no Divórcio, p. 101. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2004
[37] ROLF, MADALENO. Curso de Direito de Família, p.288. Rio de Janeiro, 2008.
[38] PEREIRA, SÉRGIO GISCHKOW. O dano Moral no Direito de Família: o perigo dos excessos capazes de repatrimonializar as relações Familiares in: Souza, Caren Alves Becker: A Culpa na separação e no divórcio, p. 105. Belo Horizonte 2004.
[39] DINIZ, MARIA HELENA. Curso de Direito Civil, v. 7. p. 50 in Santos, Regina Beatriz Papa dos. A reparação civil no divórcio.
[40] SILVA, REGINA BEATRIZ TAVARES. A Emenda Constitucional do Divórcio, p.171. São Paulo, 2010.
[41] SOUZA, CAREN BECKER ALVES DE. A Culpa na separação e no Divórcio, p. 101. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2004
[42] SOUZA, CAREN BECKER ALVES DE. A Culpa na separação e no Divórcio, p. 111. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2004
[43] DINIZ, MARIA HELENA. Curso de Direito Civil Brasileiro, V. 2. São Paulo, Saraiva, 2003.
[44] TRT 3ª Região; 1ª Turma; RO nº 00258-2006-016-03-00-9
[45] BRAGA, DANIEL LONGO. A responsabilidade Civil pela perda de uma chance, 2011.
[46] Isto porque segundo LOJ de MG: “art. 60: Compete a Juiz de Vara de Família processar e julgar as causas relativas ao estado das pessoas e ao Direito de Família, respeitada a competência do Juiz de Vara da Infância e da Juventude."
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-graduado em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho, Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIMENTA, Guilherme. Direito a indenização por danos na separação e divórcio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 nov 2023, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63651/direito-a-indenizao-por-danos-na-separao-e-divrcio. Acesso em: 23 nov 2024.
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