RESUMO: A existência de um Estado Constitucional pressupõe que o Estado esteja qualificado de juridicidade e consubstanciado pela democracia. Estas qualidades devem nortear toda atuação estatal, inclusive na concretização de direitos sociais. O direito ao transporte foi inserido, expressamente, no art. 6º da Constituição Federal pela Emenda nº 90/2015, no entanto, ainda apresenta graves problemas em sua concretização. A Defensoria Pública, enquanto instrumento e expressão do regime democrático, consiste em importante garantia constitucional para o acesso de comunidades vulneráveis ao gozo de tal direito. Diante disso, esta pesquisa apresenta as bases de um Estado Constitucional, contextualizando-as com os dilemas da efetivação do direito à mobilidade urbana. Utiliza, para tanto, uma pesquisa bibliográfica, valendo-se do exame de livros na área de Direito Constitucional e Administrativo.
PALAVRAS CHAVES: Estado Constitucional; Mobilidade Urbana; Transporte; Defensoria Pública; Direitos Sociais.
1. INTRODUÇÃO
O Constitucionalismo buscou justificar um Estado submisso ao direito, sem confusão de poderes, com o fito de mitigar o arbítrio daqueles que exerciam o poder político. Em verdade, o movimento de índole política, social e jurídica buscou a estruturação de um Estado dotado de qualidades imprescindíveis à sua existência. São elas: o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito. (CANOTILHO, 1997, p. 93).
O Estado de Direito, calcado na legalidade, oferece segurança jurídica, tornando previsíveis as consequências das condutas humanas perante o Direito. A lei, por seu turno, impõe restrições tanto ao agir dos indivíduos, quanto aos que estão investidos no exercício de funções públicas.
Por outro lado, o elemento democrático é introduzido no Estado Constitucional não apenas como freio do arbítrio estatal, mas, sobretudo como legitimador de sua existência, uma vez que, no contexto republicano e democrático, o poder político apenas está legitimado a atuar se a ele for deferida a outorga pelo corpo político soberano. (CALMON DE PASSOS, 2013, p. 163).
Com efeito, faz-se imprescindível que as qualidades norteadoras do Estado Constitucional dirijam, por consequência, o exercício de todos os seus poderes e funções. Nesse plano, a Administração Pública, na concretização dos direitos sociais, entre eles o direito à mobilidade urbana, deve-se pautar pela constitucionalidade e pela democracia, de modo a permitir o controle sobre a sua atividade, bem como a possibilidade de participação efetiva dos administrados.
Nessa quadra, a Defensoria Pública, na forma do art. 134, da Constituição Federal de 1988, como expressão e instrumento do regime democrático e responsável pela promoção dos direitos humanos dos necessitados, é importante garantia constitucional do cidadão para concretizar o direito à mobilidade e exercer o controle da atuação do administrador público.
O presente artigo visa ao estudo das bases do Estado Constitucional, entendendo as suas características, contextualizando-o com a (ine)efetividade da atuação o Estado na garantida do direito ao transporte, indicando, ainda, balizas para a atuação da Defensoria Pública.
O estudo revela-se relevante para que o direito à mobilidade se concretize não apenas após longos anos de um processo judicial, mas para que, por meio da atuação da Defensoria Pública, o direito seja viabilizado tanto pela via extrajudicial, pela atuação direta da instituição, quanto pelo exercício direto e participativo pelos cidadãos, sujeitos de direitos.
2. O ESTADO CONSTITUCIONAL
Quando se fala em Estado Constitucional, sem dúvidas, se está muito mais próximo a falar sobre um ponto de partida do que mesmo um ponto de chegada. Isto porque, qualquer que seja o seu conceito ou justificação, atualmente, somente é possível conceber o Estado como sendo um Estado Constitucional. A Constituição, então, deixa de ser encarada como a constituição da República e da comunidade política, para ser enxergada como a norma ou a lei que conforma o próprio Estado[1]. (CANOTILHO, 1997, p. 92).
Tal concepção advém dos frutos gerados pelo constitucionalismo, movimento político, jurídico e social, que buscou o estabelecimento de parâmetros constitucionais para a atuação do Estado. Nessa quadra, segundo Luís Roberto Barroso (2013, p. 33) em um Estado Constitucional, há pelo menos três ordens de limitação do poder.
A primeira ordem é de índole material, haja vista a existência de valores básicos e direitos fundamentais a serem observados, como a dignidade humana, e a liberdade de religião. A segunda, de viés orgânico, afixa a ideia de que as funções de legislar, administrar e julgar não devem pertencer a uma mesma pessoa, antes devem ser atribuídas a órgãos distintos e independentes. Por derradeiro, a terceira possui natureza processual, estabelecendo não apenas o agir estatal de acordo com a lei, mas o respeito ao devido processo legal e as regras que dele derivam.
Para além da ideia de limitação do arbítrio estatal, um novo pensamento eclodiu nos meados do século XX, florescendo o chamado “neoconstitucionalismo”, movimento que compreende Constituição como suprema e que reconhece sua carga axiológica e normativa, que a torna verdadeiro filtro de validade de todo o direito. Nesse momento, propõe-se uma efetiva mudança de paradigma, do Estado Legislativo de Direito para o Estado Constitucional. (CUNHA JR, 2014, p. 35).
De certo, o Constitucionalismo buscou justificar um Estado submisso ao direito, sem confusão de poderes, a fim de mitigar o arbítrio daqueles que exerciam o poder político. Nas palavras de Gomes Canotilho, o movimento buscou estruturar um Estado com qualidades, qualidades estas que fazem do Estado efetivamente um Estado Constitucional. Segundo leciona o referido autor, existem duas grandes qualidades que identificam um Estado Constitucional: O Estado de Direito e o Estado Democrático. (CANOTILHO, 1997, p. 93).
O Estado de Direito possui diversas acepções. Isto significa que diante de circunstâncias históricas e fatores culturais, a regulação do Estado pelo Direito se fez de diversos modos, todos estes, porém, com o fito de alicerçar a sua juridicidade.
A fórmula the rule of law, prevista no sistema britânico, por exemplo, aponta, a priori, para a obrigatoriedade de observância de um processo justo e legalmente previsto quando se tratar de julgamento dos cidadãos em que se discuta a liberdade e propriedade. Em segundo lugar, significa a preponderância das leis e costumes do país em face da discricionariedade do poder real. Em terceiro, ainda, traduz o sentido de igualdade dos indivíduos no acesso aos tribunais das demais entidades públicas. (CANOTILHO, 1997, p. 94).
A ideia americana always under law, associa a juridicidade do poder à justificação do governo, não se admitindo, um governo que atue distante das razões públicas, isto é, dissonante do consentimento do povo e insubordinado às leis. Nesse sentido, o governo que se justifica é aquele que obedece aos princípios e regras jurídicas esculpidos na Constituição do Estado. (CANOTILHO, 1997, p. 94).
Há também a concepção francesa L’État Légal, que se fundamenta na existência de uma ordem jurídica hierárquica, composta pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que possui caráter supra constituição, a Constituição em segundo plano, e posteriormente, as leis. Nesta estrutura, o Estado Constitucional se confunde com o Estado Legal, tendo em vista a doutrina amplamente difundida de que a lei expressa a vontade geral da nação. (CANOTILHO, 1997, p. 96).
Não se deve, porém, compreender o Estado Constitucional apenas como um Estado de Direito, sob o risco de se incorrer num reducionismo imperdoável. Em verdade, o Estado de Direito, inicialmente, cumpre bem as exigências do constitucionalismo, visto que visa à limitação do exercício do poder político pelo império do Direito. Todavia, a mitigação do arbítrio do estatal, na forma propugnada, apesar de se constituir um elemento relevante, é insuficiente para a configuração de um Estado Constitucional. (CANOTILHO, 1997, p. 98-99).
Em verdade, o Estado de Direito, através da legalidade, oferece a garantia da segurança jurídica, finalidade precípua do Estado moderno, que é marcada por proporcionar a previsibilidade das consequências das condutas humanas (certeza do direito). Por outro lado, a legalidade por si só, não oferece garantias contra o próprio legislador, que pode a qualquer momento revogar leis, restringindo ou abolindo direitos. (DIMOULIS, 2011, p. 86).
O elemento democrático, por sua vez, é introduzido no Estado Constitucional, não com a finalidade de frear o poder, mas com o fito de legitimá-lo, de justificar a real origem de sua existência. Isso porque nenhum poder político se legitima se a ele não for deferida à outorga pelo corpo político soberano, uma vez que os que se investem na função política, são, na realidade, verdadeiros mandatários a quem se deferiram poderes, cujo exercício deve se dar nos moldes estabelecidos pelos outorgantes. (CALMON DE PASSOS, 2013, p. 163).
Aqui, destaca-se o princípio da soberania popular, que assegura que “todo poder o emana do povo” garantindo igualdade de participação aos cidadãos na formação da vontade popular. A este respeito, Canotilho leciona que:
[...] o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de “charneira” entre o Estado de Direito e o Estado Democrático possibilitando a compreensão da moderna fórmula ‘Estado Democrático de Direito’. (CANOTILHO, 1997, p. 99-100).
Sabe-se, porém, que o governo da maioria e de respeito aos direitos individuais, isto é, a democracia sob viés meramente formal, também não é suficiente, ante a evidente necessidade de se efetivar um governo que seja para todos, apto, então, a propiciar à inclusão das minorias – raciais, éticas, religiosas, culturais – e demais grupos de pequena expressão política, como mulheres e a classe pobre. Nessa quadra, Barroso (2015, p. 66) acrescenta que:
Para a realização da democracia nessa dimensão mais profunda, impõe-se ao Estado não apenas o respeito aos direitos individuais, mas igualmente a promoção de outros direitos fundamentais, de conteúdo social, necessários ao estabelecimento de patamares mínimos de igualdade material, sem a qual não existe vida digna nem é possível o desfrute efetivo da liberdade.
Com efeito, para a concretização de um Estado Democrático de Direito faz-se necessária à conjugação de alguns pressupostos, sendo eles, a limitação do poder político em face do indivíduo, a institucionalização de efetivos controles sobre o exercício do poder político, bem como a exigência de limites à atuação do poder econômico, considerando a necessidade de proteção da dignidade da pessoa humana em face dos riscos da sua eminente coisificação pelo capitalismo. (CALMON DE PASSOS, 2013, p. 163).
Ademais, o conteúdo da legalidade, no Estado Democrático de Direito, pautar-se-á pela busca à promoção da igualdade, não apenas pela generalidade normativa, mas pela realização de intervenções que efetivamente alterem a situação da comunidade. De certo, o viés democrático ao Estado de Direito, lhe confere a missão de utilização da lei como instrumento de transformação social. (STRECK, p. 73-74, 2014).
Assim, nota-se que o Estado Constitucional tem como pressuposto o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito, fórmulas que visam à mitigação do arbítrio estatal, assim como a garantia da igualdade e da participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisões públicas. Invariavelmente, estas características devem nortear a atuação estatal em todos os poderes e funções exercidas.
3. O DIREITO SOCIAL À MOBILIDADE URBANA
Os direitos sociais, também denominados direitos de segunda dimensão ou geração, são aqueles que impõem uma prestação positiva do Estado, isto é, não visam simplesmente à limitação do arbítrio estatal, como fazem os direitos civis e políticos, mas, calcados no ideal da igualdade, têm a finalidade de reduzir as desigualdades sociais existentes. (CUNHA, 2014)
O direito à mobilidade urbana se apresenta nesta conjuntura, ao passo que, conforme descreve José Afonso da Silva, não é possível se compreender o aglomerado urbano sem que o Poder Público forneça às devidas condições de circulação. Assim, é dever do Estado o fornecimento de um serviço público de transporte de qualidade, bem como é seu dever engendrar esforços para que as vias públicas estejam em condições razoáveis de circulação. (SILVA, 2010, p. 179).
A mobilidade urbana, em verdade, está diretamente ligada ao direito constitucional de liberdade de locomoção. Representa, assim, o deslocamento de pessoas e bens em uma cidade e não consiste em somente mover-se na cidade, mas deslocar-se com facilidade. Por isso, não há como se pensar um planeamento urbanístico sem levar em consideração o sistema viário, sobretudo o sistema de transportes. (SILVA, 2010, p. 180)
A disponibilização de um transporte público efetivo e de qualidade constitui-se, sobretudo em relação à população de baixa renda, como condição essencial para o exercício dos demais direitos sociais. Isto porque a população se valerá do transporte público para o acesso aos centros de saúde, postos de trabalhos, às escolas e aos locais de lazer.
Apesar da existência de leis infraconstitucionais, como a Lei nº 12.587 de 03 janeiro de 2012, que instituiu a Política Nacional de Mobilidade Urbana, cujo objetivo é contribuição para o acesso universal à cidade, somente no ano de 2015, através da Emenda Constitucional nº 90, de forma expressa, a Constituição incorporou o transporte ao rol dos direitos sociais previstos no art. 6º, veja-se:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Grifo nosso)
Na proposta de emenda de autoria da Dep. Luiza Erundina (PSB/SP), registrou-se a relevância da inclusão do transporte no rol do art. 6º, considerando que no contexto da sociedade moderna, tal serviço público se destaca em relação à mobilidade das pessoas ao gozo de bens e serviços.
Ademais, destacou-se ainda que para o cumprimento da função social da cidade,
[...] o transporte, notadamente o público, cumpre função social vital, uma vez que o maior ou menor acesso aos meios de transporte pode tornar-se determinante à própria emancipação social e o bem-estar daqueles segmentos que não possuem meios próprios de locomoção. (ERUNDINA, 2011)
Noutro passo, é salutar o entendimento de que não basta o fornecimento do serviço de transporte, para que possa atender à finalidade da norma constitucional, faz-se necessário que, além de urbano, o transporte público seja humano, isto é, se dê em condições dignas para os seus usuários.
Nesse sentido a Carta Mundial do Direito à Cidade aduz:
As cidades devem garantir a todas as pessoas o direito à mobilidade e circulação na cidade através um sistema de transporte público acessível e a preços razoáveis, segundo um plano de deslocamento urbano e interurbano, através de meios de transportes adequados às diferentes necessidades ambientais e sociais (de gênero, idade, incapacidades).
Apesar dos ditames constitucionais e dispositivos legais, parafraseando Norberto Bobbio (2004, p. 32), uma coisa é declarar os direitos do homem e justificá-los com argumentos convincentes, outra é garantir-lhes uma proteção efetiva, sobretudo no que tange aos direitos sociais.
O que se denota é que, muito embora tenha sido fixado na Constituição Federal, as comunidades vulneráveis continuam a mercê da “boa vontade” dos gestores públicos que, utilizando-se da perniciosa discricionariedade, atuam fornecendo o serviço de maneira inadequada e insuficiente, privando a população do acesso pleno e efetivo aos demais direitos constitucionais.
Como demonstram as pesquisas, as cidades que mais sofrem com inefetividade do direito à mobilidade urbana são Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Sobrecarregamento do espaço, limitação do fluxo, aumento do índice de acidentes, pouca oferta de alternativas de mobilidade e poluição do meio ambiente são os principais problemas causados pela gestão ineficiente do Estado.
Tais problemas apontam que, muito embora o Estado brasileiro tenha declarado a fundamentalidade do direito ao transporte, com a Emenda de nº 90/2015, não consegue concretizar o direito, de modo que até mesmo as políticas públicas traçadas não contam com a participação da população diretamente afetada: os trabalhadores, consumidores, estudantes, idosos, pessoas com deficiência, comunidades vulneráveis em geral.
Diante da relevância do direito à mobilidade urbana, os parâmetros para a sua prestação estão traçados na lei nº 8.987/95, notadamente, no §1º do art. 6º. Como serviço público, a sua disponibilidade aos cidadãos deve satisfazer as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
A não observância deve ser objeto de controle pela sociedade civil em seus diversos modos o que, inclusive, pode ensejar, ainda, o controle jurisdicional da política pública instituída. De certo, seja na via extrajudicial, que deve ser considerada preferencial (art. 4º, II, da LC nº 80/94), seja judicialmente, assume a Defensoria Pública um papel de protagonismo na defesa dos necessitados.
4. O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO AO TRANSPORTE
A Defensoria Pública é uma instituição que ganhou novos contornos a partir da vigência da Emenda Constitucional nº 80/2014. Erigida ao status de instituição permanente, portanto, garantia fundamental de todo o cidadão, a Defensoria ganhou capítulo próprio no texto constitucional, sendo considerada essencial à função jurisdicional do Estado.
Nesse prisma, a instituição, nas palavras da Constituição é instrumento e expressão do regime democrático. Como instrumento, viabiliza o acesso à justiça de pessoas em situação de vulnerabilidade, justiça não apenas compreendida no plano formal, de acesso ao poder judiciário, mas sob o aspecto material, que denota a concretização plena dos direitos das pessoas. Além disso, como expressão, a Defensoria é a voz dos necessitados e deve amplificá-la em toda a sua atuação.
Com efeito, a Emenda Constitucional nº 80/94 ainda concretizou, de maneira expressa, que à Defensoria incumbe, em todos os graus, a defesa dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita aos necessitados. Além disso, acrescentou ao Ato de Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT - o art. 98, que passou a estabelecer que número de defensores públicos em cada unidade jurisdicional deve ser proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.
Nesse passo, a Constituição determinou à União e aos Estados que, no prazo de oito anos, contasse com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, atendendo aos critérios de maior exclusão social e adensamento populacional, o que ainda não foi garantido pelos entes políticos.
Além das funções tradicionais da Defensoria Pública, intimamente ligadas à defesa de pessoas em situação de vulnerabilidade econômica, outros papéis foram assumidos pela instituição para a concretização do seu múnus constitucional, entre eles a curadoria especial (art. 72, do CPC/15).
Segundo a legislação processual, a curatela especial deve ser exercida pela Defensoria Pública quando o incapaz não tiver representante legal ou quando seus interesses colidirem com os do seu representante, enquanto durar a incapacidade. Além disso, deve ser concedido curador especial ao réu preso revel, bem como ao réu revel citado por edital ou com hora certa, enquanto não for constituído advogado. Trata-se, portanto, de função não tradicional da instituição e, assim, não depende da análise do requisito socioeconômico.
Atualmente, ganha relevo na defesa das pessoas em situação de vulnerabilidade, uma nova forma interventiva pela Defensoria Pública: a função de custus vulnerabilis. Segundo Maurílio Casas Maia (2017, p. 45):
“[...] custos vulnerabilis’ representa uma forma interventiva da Defensoria Pública em nome próprio e em prol de seu interesse institucional (constitucional e legal) – atuação essa subjetivamente vinculada aos interesses dos vulneráveis e objetivamente aos direitos humanos – representando a busca democrática do progresso jurídico-social das categorias mais vulneráveis no curso processual e no cenário jurídico-político”.
Em complemento, Cassio Scarpinella Bueno (2018, p. 219) aponta que:
“[...] O 'fiscal dos vulneráveis', para empregar a locução no vernáculo, ou, o que parece ser mais correto diante do que corretamente vem sendo compreendido sobre a legitimidade ativa da Defensoria Pública no âmbito do 'direito processual coletivo', o 'fiscal dos direitos vulneráveis', deve atuar, destarte, sempre que os direitos e/ou interesses dos processos (ainda que individuais) justifiquem a oitiva (e a correlata consideração) do posicionamento institucional da Defensoria Pública, inclusive, mas não apenas, nos processos formadores ou modificadores dos indexadores jurisprudenciais, tão enaltecidos pelo Código de Processo Civil. Trata-se de fator de legitimação decisória indispensável e que não pode ser negada a qualquer título”.
Essa forma interventiva amplia os direitos dos necessitados, notadamente, porque permite a participação da Defensoria Pública em qualquer processo no qual estejam sendo discutidos interesses de pessoas vulneráveis. Além disso, viabiliza a atuação recursal da instituição, deveras restrita quando atua na função de amicus curiae, em razão do que estabelecem os artigos 138, §1º e 3º, do CPC/15.
Acerca da atuação da Defensoria Pública na concretização de direitos sociais, a Lei Complementar nº 80/94, em seu art. 3º-A, estabelece que são objetivos da instituição a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais, além da prevalência e efetividade dos direitos humanos.
Enquanto função da instituição, nos termos do art. 4º da LC nº 80/94, ganha relevo a promoção, prioritariamente, da solução extrajudicial dos litígios visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos, a convocação de audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais, a promoção da difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico e a possibilidade de ajuizamento de promover ações civis públicas e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes.
Assim, sendo o direito à mobilidade urbana um direito constitucional cuja prestação inadequada reflete diretamente sobre a qualidade de vida de pessoas vulneráveis, justificada legal e constitucionalmente, está a atuação da instituição.
Diante dos contornos legais que pautam atuação da Defensoria Pública, é importante delinear importantes ações institucionais no tocante à efetivação do direito social à mobilidade urbana.
De plano, atendendo diretrizes do art. 4º da LC nº 80/94, a Defensoria Pública deve priorizar soluções extrajudiciais, iniciando a tentativa de resolução do conflito a partir de um diálogo com a administração pública. Nesse contexto, pode o Defensor Público oficiar às Secretarias responsáveis, requisitar exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições (art. 128, X).
Além disso, na busca pela solução extrajudicial, não se pode olvidar do importante negócio jurídico que é o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC. O instrumento negocial previsto art. 5º, §6º, da na Lei nº 7.347/1985 permitirá que a irregularidade na oferta do serviço de transporte, por exemplo, seja regularizada por meio de um compromisso firmado pelos interessados de adequação às exigências legais, mediante cominações. O ajuste terá eficácia de título executivo extrajudicial.
Não obstante, ainda no plano extrajudicial, a Defensoria Pública pode e deve atuar com educação em direitos perante a comunidade. Sendo a Política Nacional de Mobilidade Urbana instituída somente em 2012, pela Lei Federal de nº 12.587/2012, e considerando que o direto à educação é prestado pelo Estado de maneira insuficiente, grande parcela da população não conhece os direitos dos usuários do serviço público de transporte, previstos nos artigos 14 e seguintes da referida lei.
Assim, a instituição, por meio de palestras na comunidade, nas escolas, em associações, como também por meio de cartilhas poderá contribuir no processo de conhecimento, cidadania e participação democrática da população frente aos órgãos públicos necessários.
Noutro rumo, não havendo sucesso nas tentativas extrajudiciais, constatada a inércia da administração pública, o poder judiciário poderá ser provocado para a efetivação do direito social à mobilidade urbana, direito que na contemporaneidade, por impactar gravemente a qualidade de vida da população, deve ser visto como integrante do rol do chamado mínimo existencial.
A respeito do controle jurisdicional de políticas públicas, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema nº 698 fixou o entendimento de que:
“Na hipótese de ausência ou deficiência grave do serviço, a intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais não viola o princípio da separação dos Poderes (art. 2º, CF/88), devendo a atuação judicial, via de regra, indicar as finalidades pretendidas e impor à Administração Pública a apresentação dos meios adequados para alcançá-las” STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).
A Corte Constitucional fixou importantes teses a respeito da atuação judicial diante da constatação de falhas na concretização de direitos sociais. Segundo o STF:
“1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos Poderes.
2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado;
3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP)”.
STF. Plenário. RE 684.612/RJ, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 01/7/2023 (Repercussão Geral – Tema 698) (Info 1101).
Vê-se, portanto, ser possível que a Defensoria Pública acione o Poder Judiciário para que o serviço de transporte seja prestado com regularidade, continuidade, com tarifas módicas, segurança, atualidade e eficiência.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento do presente estudo demonstrou que, atualmente, o Estado Constitucional se revela como verdadeiro ponto de partida, visto que sua existência e força normativa possuem o condão de conformar o próprio Estado. O movimento político, jurídico e social denominado constitucionalismo destacou-se em diversos países, notadamente, nos Estados Unidos, Inglaterra e França, locais onde se lutou pela consagração de direitos fundamentais, pela repartição de poderes e pela limitação do arbítrio estatal.
O Estado de índole Constitucional é marcado por qualidades que devem nortear toda atuação do ente soberano (CANOTILHO, 1997). A primeira delas é o Estado de Direito. Nesse ponto, destacam-se as fórmulas the rule of law, Always under law e L’Etat Légal, concebidas nos sistemas britânico, americano e francês, que visam à garantia de um processo justo, cujo procedimento seja previamente previsto em lei e a subordinação do Estado aos princípios constitucionais e às leis.
A segunda qualidade é o Estado Democrático de Direito. Tal característica impõe-se não apenas para frear o exercício do poder, mas para legitimá-lo, haja vista a necessidade de se garantir a efetiva participação dos cidadãos na formação da vontade popular. Nesse passo, a democracia se revela muito além de um elemento formal, que estabeleceria meramente o governo da maioria, mas como fator à propiciação da inclusão de minorias – raciais, étnicas, religiosas, culturais - e grupos de pequena expressão. Na democracia a lei é utilizada coo instrumento de transformação social. (STRECK, p. 73-74, 2014).
Diante dessas qualidades que consubstanciam o Estado Constitucional, se torna imperioso que os demais poderes e funções do Estado estejam em harmonia com os seus fundamentos, isto é, que se revistam da juridicidade e da democracia. Assim, a ação estatal concretizadora de direitos fundamentais deve, necessariamente, pautar-se em tais ideais.
Vê-se, porém, que no tocante ao direito à mobilidade urbana, muitas comunidades vulneráveis sofrem diuturnamente com o acesso aos serviços públicos de saúde, educação, como também têm o seu direito à cidade e ao lazer obstados pela ausência do transporte público ou pela sua ineficiência.
Além disso, não há apenas a falta do serviço de transporte, mas uma política de mobilidade frágil, que ainda privilegia os meios de transporte motorizados, que ainda polui desmedidamente o meio ambiente, que não detém uma gestão democrática e, portanto, não garante o acesso universal dos cidadãos que, em regra, estão a mercê de um, serviço ineficiente, em que os ônus e benefícios decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços não são distribuídos de maneira justa.
Diante disso, como instrumento e expressão do regime democrático, a Defensoria Pública, instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado pode e deve atuar para que o direito individual e coletivo seja devidamente atendido com a dignidade e eficiência que garantem a Constituição e a Lei nº 12.587/2012.
Para tanto, a instituição poderá se valer de instrumentos importantes como o termo de ajustamento de conduta, o seu poder de requisição, priorizando a efetivação dos direitos na seara extrajudicial, em compasso com as diretrizes estabelecidas na Lei Complementar nº 80/94, mas também poderá provocar, estrategicamente, o Poder Judiciário que, observando as Teses fixadas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 698, poderá determinar que a Administração Pública atinja as metas e finalidades necessárias ao gozo efetivo do direito à mobilidade.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Direito Processual Civil Vol. 1, Teoria Geral do
STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? -.4 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
[1]Canotilho (1997, p. 88) apresenta três razões para que a Constituição, a partir do século XIX, passe a ter como referente o Estado e não a sociedade. A primeira possui caráter histórico e refere-se à evolução semântica do conceito, tratando-se do período em que, nas Constituintes Americana e Francesa se começaram a entender que a Constituição “constituía” os “Estados Unidos” ou o “Estado Nação” Francês. A segunda tem natureza politico-sociológica relacionando-se com a crescente consolidação do Estado Liberal e separação do Estado-Sociedade. A terceira tem viés filosófico-político, sob a influência da filosofia hegeliana e juspublicista germânica, em que a constituição designa uma ordem do Estado.
Graduado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB, pós graduado em Direito Público pela Estácio de Sá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLIDADE, Gabriel Garcia. Estado constitucional, direito social à mobilidade urbana e Defensoria Pública: atuação judicial e extrajudicial da instituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2023, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63667/estado-constitucional-direito-social-mobilidade-urbana-e-defensoria-pblica-atuao-judicial-e-extrajudicial-da-instituio. Acesso em: 21 nov 2024.
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