RESUMO: Não obstante seja indiscutível que, em qualquer democracia, notadamente as contemporâneas, é imprescindível a existência de uma separação e de harmonia entre os poderes, o conceito de jurisdição constitucional, na atualidade, não mais pode ser extraído da separação estanque atribuída, inicialmente, aos ensinamentos de Aristóteles, detalhada por Locke e consagrada por Montesquieu. Partindo dessa premissa, o Supremo Tribunal Federal, na qualidade de guardião da Constituição e no intuito de potencializar as garantias constitucionais, vem, ao longo dos últimos anos, proferindo as chamadas decisões manipulativas e transitivas, o que vem travando infindáveis discussões doutrinárias acerca da extrapolação, ou não, dos limites de atuação da Corte Suprema e da interferência nos demais poderes constituídos.
Palavras-Chave: Separação dos Poderes. Atuação do Supremo Tribunal Federal. Decisões manipulativas. Sentenças Transitivas.
ABSTRACT: Although it is indisputable that, in any democracy, especially contemporary ones, the existence of separation and harmony between the powers is essential, the concept of constitutional jurisdiction, today, can no longer be extracted from the watertight separation attributed to Montesquieu. Based on this premise, the Federal Supreme Court, as guardian of the Constitution and with the aim of enhancing constitutional guarantees, has, over the last few years, issued so-called manipulative and transitive decisions, which has led to endless doctrinal discussions about extrapolation, or not, the limits of the Supreme Court's actions and interference with other constituted powers.
Keywords: Separation of Powers. Action of the Federal Supreme Court. Manipulative decisions. Transitive Sentences.
1.INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, já em seu artigo 2º, dispõe que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Ato contínuo, em razão dos conhecidos males inerentes ao Estado Absolutista de outrora, e no intuito de impedir que o legislador constituinte reformador retire do texto constitucional a previsão de independência e harmonia entre os Poderes, qualifica o preceito como cláusula pétrea ao estabelecer que “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação dos Poderes” (Artigo 60, § 4º, III, da CRFB/1988).
Da leitura conjugada dos dispositivos constitucionais acima, de logo se infere a importância dada pelo Constituinte Originário à separação dos poderes.
Ocorre que, sem adentrar na seara das chamadas funções típicas e atípicas dos 3 (três) Poderes, no estudo do Neoconstitucionalismo ou nas funções contramajoritária, representativa e iluminista do Tribunal Constitucional (Barroso), fato é que a leniência dos Poderes Constituídos, tanto na atividade legiferante quanto na concretização de direitos e garantias fundamentais, fez com que a Corte Constitucional passasse a atuar de forma mais ativa para assegurar a observância da Constituição.
Em verdade, o próprio conceito de ativismo judicial é, na atualidade, submetido a uma mutação, pela atuação atípica da Corte Suprema que, no intuito de potencializar o respeito à direitos fundamentais, vem se utilizando cada vez mais das denominadas decisões manipulativas e transitivas, adentrando na esfera de atuação dos demais Poderes e dividindo a doutrina.
2.SENTENÇAS/DECISÕES MANIPULATIVAS (ou INTERMEDIÁRIAS ou NORMATIVAS)
A terminologia “sentença manipulativa” surgiu na década de sessenta, no direito italiano (“decisioni manipolative”) mas, atualmente, é adotada em diversos outros Tribunais Constitucionais do mundo, notadamente pelas Cortes Europeias. No Brasil, o instituto foi introduzido por José Adércio Leite Sampaio, pós-doutor em direito constitucional e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Em síntese, entende-se por decisão manipulativa (gênero) o conjunto de decisões nas quais o Poder Judiciário, em razão de fatores jurídicos e extrajurídicos - políticos, econômicos e sociais -, flexibiliza o tradicional binômio “constitucionalidade/inconstitucionalidade”, utilizando técnicas decisórias que ultrapassam a pura e simples declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade das normas em análise.
Em outras palavras, ao utilizar essa técnica decisória, o Supremo Tribunal Federal “manipula” o conteúdo normativo do ordenamento jurídico, modificando ou aditando a norma, no intuito de a compatibilizar com a Constituição Federal.
Ademais, faz-se mister compreender que as sentenças ou decisões manipulativas – também conhecidas como intermediárias ou normativas – são gênero, subdividido pela doutrina nas seguintes espécies: 1) sentenças interpretativas; 2) sentenças aditivas; 3) sentenças aditivas de princípio; e 4) sentenças substitutivas.
2.1. Sentenças Interpretativas: Partindo da premissa de que o sentido de uma norma não é unívoco, mas sim “plúrimo”, o Tribunal Constitucional, a um só tempo, aponta qual – ou quais - das possíveis interpretações é compatível com o texto constitucional, afasta as incompatíveis e, como resultado, mantém a norma no ordenamento - técnica da interpretação conforme a Constituição -, ou exclui uma determinada interpretação inconstitucional – técnica da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto.
Assim, note-se que a espécie “sentença interpretativa” também pode ser dividida em duas subespécies, quais sejam: a) sentença interpretativa de rechaço: situação na qual, diante de duas ou mais interpretações possíveis para uma norma, a Corte Constitucional adota aquela que se conforma à Constituição, repudiando as que contrariem o texto constitucional; e b) sentença interpretativa de aceitação: ato da Corte Constitucional de anular uma decisão, tomada por instâncias inferiores, que haja adotado interpretação lesiva à Constituição. Aqui, não ocorre a anulação do dispositivo, mas apenas de uma de suas interpretações, tida por inconstitucional.
2.2. Sentença Aditiva (decisão manipulativa de efeitos aditivos): Nesta, o Tribunal reconhece e declara a inconstitucionalidade de certo dispositivo legal não pelo que expressa, mas pelo que omite, alargando o texto da norma ou seu âmbito de incidência. A sentença aditiva pode se fundamentar, por exemplo, na inobservância do princípio da isonomia, notadamente nas situações em que a lei concede certo benefício ou tratamento a determinadas pessoas, excluindo, direta ou indiretamente, outras que se enquadram na mesma situação. Em suma, a Corte Suprema declara inconstitucional a norma na parte em que trata iguais de forma desigual (isonomia vertical ou aristotélica), sem qualquer razoabilidade e/ou nexo de causalidade. Assim, a decisão possui notório cunho aditivo, já que o Tribunal, ao decidir, acaba por criar uma norma autônoma, estendendo aos excluídos benefício que deveria, mas não foi a eles estendido.
O exemplo mais claro é o que se deu na decisão da ADPF nº 54, decidida pelo Supremo Tribunal Federal de forma criativa ao acrescentar mais uma excludente de punibilidade ao crime de aborto, para os casos de fetos com anencefalia.
Outro exemplo comumente apontado pela doutrina é a decisão tomada no Mandado de Injunção nº 670, na qual o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo a mora injustificável do legislador ordinário, determinou a aplicação aos servidores públicos da Lei nº 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve na iniciativa privada, promovendo extensão aditiva do âmbito de incidência da norma.
2.3. Sentenças aditivas de princípios (aditivas de mecanismo ou sentenças de delegação): Ocorrem quando, em razão de omissões legislativas, o Tribunal traça uma diretriz da norma ou um princípio a ser introduzido, mas atribui ao legislador o dever de editar a norma sobre a questão, via de regra, dentro de um prazo determinado. Ou seja, em virtude da inércia legislativa, o juiz constitucional reconhece a omissão e, ato contínuo, determina uma diretriz a ser seguida pelo legislador na elaboração da norma que se faz necessária. Assim, são sentenças prolatadas para que se proceda com a correção de omissões legislativas, estabelecendo um esquema (a diretriz da norma ou o princípio básico) e delegando ao legislador a atribuição de supressão da mora.
2.4. Sentença Substitutiva (decisão manipulativa de efeitos substitutivos): Aqui, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade de apenas uma parte da norma analisada e, no mesmo ato, substitui a regra inconstitucional por outra, criada pelo próprio Tribunal, a fim de que se torne consentânea com a Constituição. Dentre as espécies, esta é a que gera as mais acirradas discussões no âmbito doutrinário. Deveras, é indiscutível a existência, aqui, de uma forma de direito judicial, considerando que se trata, efetivamente, de um direito criado pelo Tribunal.
O exemplo mais frequentemente apontado pela doutrina é o seguinte: a Medida Provisória nº 2.183/1956 alterou o Decreto-Lei nº 3.365/1941 para estabelecer que, no caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do bem, fixado na sentença, deveria incidir juros compensatórios de até 6% (seis por cento) ao ano. Ao julgar ADI contra esta MP, o Supremo Tribunal Federal afirmou que o percentual de 6% (seis por cento) era inconstitucional e, em acréscimo, estabeleceu que este percentual deveria ser de 12% (doze por cento) ao ano (ADI 2332, Rel. Min. Moreira Alves, julgado em 05/09/2001).
3.SENTENÇAS TRANSITIVAS (ou TRANSACIONAIS)
Surgem no intuito de estabelecer uma espécie de negociação com a supremacia da Constituição, relativizando-a, com base, por exemplo, no art. 27 da Lei no 9.868/1999 (efeitos prospectivos).
Fixam um parâmetro transitório, em virtude de um determinado contexto social, por razões de cunho político, econômico, jurídico etc., que geram, ou podem gerar riscos (por exemplo: para segurança jurídica ou para a sociedade) e motivam a afirmação e prolatação de sentenças transitivas.
Nestas, o Tribunal Constitucional não atua nem como legislador negativo, nem como positivo, mas renuncia, episodicamente, à sua função de guardião constitucional, na medida em que transaciona sua decisão.
Da mesma forma com o que visto no capítulo anterior, as chamadas sentenças transitivas ou transacionais são gênero, e pode ser dividida nas seguintes espécies:
3.1. Sentença de inconstitucionalidade sem efeito ablativo: O Tribunal reconhece a inconstitucionalidade da norma, porém não a retira do ordenamento jurídico, por perceber que a sua ausência, na prática, geraria efeitos ainda mais danosos que a manutenção da norma inconstitucional (Reserva do Impossível).
3.2. Sentença de Apelo ou Apelativa: O órgão jurisdicional reconhece a constitucionalidade da norma, contudo, adverte o legislador de que serão necessárias mudanças no texto normativo para que, no futuro, não advenha uma inconstitucionalidade (declaração de constitucionalidade de norma “ainda” constitucional, declaração de constitucionalidade provisória ou inconstitucionalidade progressiva).
3.3. Sentenças de aviso: sinaliza uma mudança na jurisprudência da Corte no futuro, todavia, decide que tal mudança não surtirá efeitos para o caso analisado naquele momento (prospective overruling).
Em que pese a decisão pareça contraditória, foi o que decidiu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário n° 630.733, que analisou a possibilidade de segunda chamada para teste de aptidão física em concurso público. Em conclusão, o Pretório Excelso alterou seu entendimento jurisprudencial, passando a admitir a segunda chamada, mas deixou expresso que essa alteração não teria validade no caso sub judice.
3.4. Sentença de inconstitucionalidade com ablação diferida: o Tribunal Constitucional, ao decidir uma ação de controle concentrado, poderia ultrapassar a clássica dicotomia de efeitos ex tunc ou ex nunc, com o estabelecimento de novas possibilidades de decisão, fundamentadas em razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social.
Possui previsão expressa no art. 27 da Lei 9.868/1999. Aqui, o dogma da nulidade (regra: decisão retroativa ex tunc) é afastado, com base no princípio da proporcionalidade (com a ponderação entre o dogma da nulidade e razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social). Parte da premissa de que a noção de supremacia da Constituição deve ser tratada como um valor (de maneira axiológica), razão pela qual mostra-se passível de aplicação gradual (em níveis) balanceada com outros valores em jogo.
Por dizer respeito apenas aos efeitos da decisão de nulidade no controle concentrado, e não propriamente aos poderes, e à limitação de atuação da Corte Constitucional, parte da doutrina não considera essa espécie como uma sentença intermediária propriamente dita.
4.CONCLUSÃO
Conforme exposto, bem como comprovado pelos diversos exemplos citados de atuação do Supremo Tribunal Federal, a utilização das técnicas de julgamento denominadas decisões manipulativas e sentenças transitivas é uma realidade.
A despeito da compreensível opinião contrária de parte da doutrina especializada, nota-se que, nas hipóteses nas quais houve manipulação normativa pelo Poder Judiciário, o fim almejado foi, invariavelmente, o bem comum, traduzido pela escorreita - ou justa - interpretação do texto constitucional, com fundamento, sempre, na mora legislativa ou no desvirtuamento dos mandamentos constitucionais, razão pela qual defende-se - ao menos enquanto se mantiverem estes fins e fundamentos - aqui, a legitimação de tais decisões.
Dito isto, faz-se mister que a Corte Constitucional bem delineie as balizas legitimadoras de tais espécies de atuação, adotando uma postura de autocontenção quando a decisão não se refira, estritamente, à defesa de direitos fundamentais, respeitando a harmonia entre os poderes e tendo sempre em mente os dizeres de Montesquieu que, justamente ao idealizar o conceito ocidental de separação dos poderes, o fez sob a premissa de que “o abuso segue o poder, tal qual a sombra segue o homem”.
5.REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Bernardo Fernandes. Curso de Direito Constitucional. 14ª Edição. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 39ª Edição. São Paulo: Atlas, 2023.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 18ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2023.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2019.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
Pós-Graduação em Direito Público pela Universidade Anhanguera - UNIDERP; Graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió - CESMAC. Assessor Judicial no TJAL. Professor de Direito na SEUNE – Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste LTDA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, DIOGO BARROS TORRES DE. Sentenças/decisões manipulativas (intermediárias ou normativas) e sentenças transitivas (ou transacionais) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2023, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63863/sentenas-decises-manipulativas-intermedirias-ou-normativas-e-sentenas-transitivas-ou-transacionais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
Por: PRISCILA GOULART GARRASTAZU XAVIER
Precisa estar logado para fazer comentários.