RESUMO: No Brasil, a realidade do trabalho doméstico análogo à escravidão tem sido justificada, nos últimos anos, como consequência da pobreza e da educação deficitária oferecida às pessoas que se submetem a este tipo de exploração, sobretudo às mulheres. No presente momento, à luz do debate sobre direitos humanos e em meio às profundas transformações nas relações de trabalho, condena-se o trabalho forçado à erradicação. Não obstante, a mencionada atitude se contrapõe à lógica existente na atualidade, que preconiza a ideia de que a educação é fator subsidiário ao trabalho, uma vez que, diante da brutal realidade de pobreza e desigualdade presente na sociedade, muitas famílias passam a depender do trabalho doméstico para a subsistência. A exploração dos trabalhadores domésticos é uma prática disseminada e culturalmente presente na sociedade brasileira, muitas vezes confundida como um ato de ajuda às famílias carentes. Desta forma, a presente pesquisa visa elucidar, a partir de estudos doutrinários, a conceituação de trabalho doméstico e de trabalho escravo e/ou forçado, bem como suas causas e consequências, a fim de contribuir para a sua erradicação. Será evidenciado também qual é o papel do Brasil e das organizações que se prestam a proteger os direitos fundamentais destes trabalhadores, no combate à escravidão. Finalmente, explorar-se-á a receptividade das Convenções 29 e 189 da OIT na carta magna brasileira, como ferramenta eficaz na erradicação do trabalho doméstico análogo à escravidão.
Palavras-chave: Trabalho doméstico análogo à escravidão. Pobreza e Aceitação Social. Convenções 29 e 189 da OIT. Erradicação.
ABSTRACT: In Brazil, the reality of domestic work analogous to slavery has been justified, in recent years, because of poverty and poor education offered to people who submit to this type of exploitation, especially women. Now, in the light of the debate on human rights and in the midst of profound changes in labor relations, forced labor is condemned to its eradication. However, the aforementioned attitude is opposed to the current logic, which advocates the idea that education is a subsidiary factor to work, since, in the face of the brutal reality of poverty and inequality present in society, many families come to depend on the domestic work for subsistence. The exploitation of domestic workers is a widespread and culturally present practice in Brazilian society, often mistaken as an act of helping needy families. Therefore, this research aims to elucidate, based on doctrinal studies, the concept of domestic work and slave and/or forced labor, as well as its causes and consequences, in order to contribute to its eradication. It will also be evidenced what is the role of Brazil and the organizations that are willing to protect the fundamental rights of these workers, in the fight against slavery. Finally, the receptivity of Conventions 29 and 189 of the ILO in the Brazilian Magna Carta will be explored, as an effective tool in the eradication of domestic work analogous to slavery.
Keywords: Domestic work analogous to slavery. Poverty and Social Acceptance. ILO Conventions 29 and 189. Eradication.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 2 A EVOLUÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL. 2.1 A previsão do Direito do Trabalho na Constituição da República de 1988. 3 O PAPEL DA OIT NA PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DO TRABALHADOR. 3.1 A Convenção 189 da OIT. 4 O TRABALHO DOMÉSTICO. 4.1 O Trabalho doméstico análogo à escravidão. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Em todo o mundo, existem empregados que realizam tarefas domésticas na casa de terceiros, como forma de garantir a própria subsistência e a de sua família. Quando tais tarefas são realizadas em condições razoáveis de segurança dignidade, esse trabalho corrobora o desenvolvimento humano e familiar desses indivíduos. O imbróglio surge na medida em que esses trabalhadores passam a trabalhar na residência de terceiros, percebendo salários ínfimos e submetendo-se à situação de abandono e exploração.
O trabalho doméstico é um dos que mais ocorrem casos de trabalho escravo. Isso se deve pelos resquícios da escravidão no Brasil, mormente porque a maioria desses trabalhadores domésticos é formada por mulheres negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda, o que reforça a ideia de um racismo estrutural.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) vai de encontro ao labor forçado ou degradante, haja vista que tal situação os direitos humanos fundamentais de todo cidadão.
As convenções da Organização Internacional do Trabalho, uma vez ratificadas por decisão soberana de um país, passam a fazer parte de seu ordenamento jurídico. O Brasil está entre os membros fundadores da OIT e ratificadores de grande parte das orientações formuladas pela convenção, baseando-se na promoção da dignidade dos trabalhadores e da justiça social.
A Convenção nº 189 da OIT, que dispõe sobre o trabalho decente para os trabalhadores e as trabalhadoras domésticas, determina que os países devem adotar medidas para assegurar a promoção e a proteção dos direitos humanos de trabalhadoras domésticas, bem como garantir a eliminação da discriminação relativa ao emprego e ocupação. O Brasil ratificou a Convenção em 2018.
Destarte, o esforço para erradicar o trabalho doméstico análogo à escravidão justifica-se pela convenção supramencionada.
Mesmo com grandes avanços legais, o serviço doméstico ainda é visto como um trabalho inferior e resguardado a pessoas em situação vulnerável, como imigrantes e pessoas sem acesso à educação básica.
Assim, a presente pesquisa possui grande relevância no cenário jurídico frente a perversa realidade dos trabalhadores domésticos submetidos à condições subumanas, ainda que “amparados” por diversos dispositivos legais nacionais e internacionais à luz dos direitos humanos.
2 A EVOLUÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL
No conceito de VÓLIA BOMFIM CASSAR (2009), Direito do Trabalho é um sistema jurídico permeado por institutos, valores, regras e princípios dirigidos aos trabalhadores subordinados e assemelhados, aos empregadores, empresas coligadas, tomadores de serviço, para tutela do contrato mínimo de trabalho, das obrigações decorrentes das relações de trabalho, das medidas que visam à proteção da sociedade trabalhadora, sempre norteadas pelos princípios constitucionais, principalmente o da dignidade da pessoa humana.
O atraso do Brasil em relação aos direitos sociais faz-se evidente ao se analisar o processo de evolução do próprio direito trabalhista nacional. Sendo um país de formação colonial, cuja economia era essencialmente agrícola e construída em torno da relação escravista de trabalho, a ideia de que o trabalho dignificava o homem não se aplicava naquela época.
Maurício Godinho Delgado defende que a subordinação nas relações de emprego deriva de uma sociedade livre, no qual o trabalhador pode escolher onde laborar. Se o indivíduo é tratado como “res”, inexistindo manifestação de vontade sua acerca de onde e como trabalhar, a subordinação abre espaço para a escravidão. O brilhante autor salienta:
[...] Se a existência do trabalho livre (juridicamente livre) é pressuposto histórico-material para o surgimento do trabalho subordinado (e, consequentemente da relação empregatícia), não há que se fala em ramo jurídico normatizador da relação de emprego sem que o próprio pressuposto dessa relação seja estruturalmente permitido na sociedade enfocada. (DELGADO, 2014, P.106)
O sistema jurídico brasileiro tradicional sempre teve o condão de elidir ou delimitar, substantivamente o espaço aberto à construção jurídica própria pelos grupos sociais. Nesse ponto, o Direito do Trabalho, no Brasil, não respondeu, positiva e satisfatoriamente (em contraponto às matrizes democráticas dos países centrais), ao problema teórico da equação diferenciação/conflito. Muito menos abriu espaço à ação jurígena (criadora do direito) autônoma dos grupos sociais e à autoadministração dos conflitos intrassocietários (COSTA, 2010)
Em contrapartida, ainda que a Lei Áurea não tenha qualquer caráter trabalhista, ela pode ser tomada como o marco inicial de referência do Direito do Trabalho Brasileiro. Ao eliminar do ordenamento jurídico uma relação social incompatível como os ideais dos direitos trabalhistas, tal seja, a escravidão, a mencionada lei estimulou a incorporação da força de trabalho livre, instituindo a relação de emprego.
Finalmente, não havia, à época, espaço sensível para o trabalho livre, como fórmula de contraprestação de labor de alguma importância social; para a industrialização, como processo diversificado, com tendência à concentração e centralização, inerentes ao capitalismo; para a formação de grupos proletários, cidades de ação e organização coletivas, aptas a produzirem regras jurídicas; não havia espeço, em consequência, para a própria sensibilidade do Estado de absorver clamores vindos do plano térreo da sociedade, gerando regras regulatórias do trabalho humano (DELGADO, 2014).
2.1 A previsão do Direito do Trabalho na Constituição da República de 1988
Um dos mais relevantes impulsos trazidos pela promulgação da Carta Magna brasileira foi a instauração de um modelo democrático de administração dos conflitos sociais do país, sobretudo no tocante à maneira como a própria sociedade lidava com os direitos trabalhistas.
Promover os direitos trabalhistas passou a ser prioridade do Estado brasileiro na medida em que a própria Constituição da República salvaguardava os direitos humanos e fundamentais de todo o cidadão. Manter-se um sistema laboral que não propiciava condições adequadas para os trabalhadores feria justamente o Estado Democrático de Direito recentemente promulgado no Brasil.
A prioridade dada pelos constituintes aos direitos dos brasileiros pode ser observada não apenas nas questões referentes às relações de trabalho. A própria inserção dos direitos sociais como segundo título da Constituição já revela a intenção dos parlamentares que elaboraram a Carta (DELGADO, 2014).
A Carta Constitucional de 1988 trouxe, nesse quadro, o mais relevante impulso já experimentado na evolução jurídica brasileira, a um eventual modelo mais democrático de administração dos conflitos sociais no país, o que parecem indicar em sentido inverso à autonormatização social e à própria democratização do Direito do Trabalho (GARCIA, 2007; COSTA, 2010).
O artigo 7º da Constituição da República representa uma grande evolução ao ordenamento trabalhista brasileiro frente à omissão das cartas magnas anteriores no que se refere aos direitos do trabalhador. Com efeito, sob a égide da criação de condições mais benevolentes a esta classe hipossuficiente, a Constituição democratizou o sistema de gestão trabalhista, corroborando com os Princípios Fundamentais da Dignidade Humana tão importante nos dias atuais. Para Maurício Godinho Delgado:
[...] a Constituição da República criou as condições culturais, jurídicas e institucionais necessárias para superar antigo e renitente nódulo do sistema trabalhista do Brasil: a falta de efetividade de seu Direito Individual do Trabalho. Ao reforçar, substancialmente, a Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho, a par de garantir o manejo amplo de ações coletivas pelos sindicatos, o Texto Máximo de 1988 acentuou a relevância da política pública de contínua inserção econômica e social dos indivíduos, por meio do Direito do Trabalho, no contexto da democratização da sociedade civil. (DELGADO, 2014, p.124).
Ademais de resguardar a condição humana do próprio obreiro, o mencionado dispositivo legal confere validade constitucional aos direitos trabalhistas, reforçando a importância das prerrogativas trabalhistas em viabilizar a inclusão do ser humano na sociedade, com o consequente desenvolvimento de uma sociedade brasileira mais democrática.
ORLANDO GOMES e ELSON GOTTSCHALK (2006, p. 752) abordam esta noção de hipossuficiência ao afirmarem que:
(...) subordinado como se encontra ao empregador, não está, o mais das vezes, em condições de manifestar livremente a sua vontade. Consequentemente, concordará muitas vezes com a alteração que interessa à outra parte, pelo justo temor do desemprego.
Irrefutável é a proteção conferida pela Constituição da República de 1988 aos direitos trabalhistas, mas cumpre explanar como a legislação brasileira abordou a peculiar situação dos empregados domésticos, cujo tratamento será estudado no capítulo seguinte.
3 O PAPEL DA OIT NA PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS DO TRABALHADOR
A OIT, Organização Internacional do Trabalho, com sede em Genebra, na Suíça, é uma das agências especializadas da ONU – Organização das Nações Unidas. Foi criada em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, sob o fundamento de que a paz universal é diretamente interligada com a justiça social.
A criação da OIT foi justificada por inúmeros argumentos, mormente os humanitários, políticos e econômicos. Tem-se como fundamento inicial o relacionado à natureza humanitária. As condições a que se submetiam os trabalhadores, cada vez mais numerosos e explorados sem qualquer consideração pela sua saúde, pela sua vida familiar ou pelo seu desenvolvimento, eram cada vez mais intoleráveis.
Do ponto de vista político, Azevedo Neto (2015) lembra que a Declaração da OIT (1998) foi instrumento de consenso, servindo de inspiração para implementar o trabalho decente no mundo e que sua concretização podia ser alcançada na medida em que seus fundamentos passassem a ser respeitados. Para a OIT interessa que o conceito de trabalho decente alcance todos os trabalhadores, inclusive os que estão à margem do mercado de trabalho estruturado.
Atualmente, ela desempenha um papel essencial na definição das legislações trabalhistas e na elaboração de políticas econômicas, sociais e laborais. Corroborado a isso, segundo dispõe o site oficial do referido organismo internacional, a OIT regulamentou a Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho, definidos como o respeito à liberdade sindical e de associação e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, a efetiva abolição do trabalho infantil e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
A OIT empreende para a consecução de uma agenda universal e por isso concentra suas estratégias para o desenvolvimento de trabalho digno e vida digna. Nesse contexto, sua atenção volta-se, também, às questões relacionadas às pessoas com deficiência, pois entre elas as taxas de pobreza, desemprego e subemprego tendem a ser excessivas. Empreendem-se, também, esforços voltados para a juventude:
A juventude é o agente de mudança para um mundo melhor: exige mais equidade dentro das nações e também entre elas. Um jovem produtivo e motivado ajuda a aumentar a prosperidade econômica: sua criatividade e sua capacidade de inovação podem gerar fontes sustentáveis de crescimento e emprego, especialmente emprego “Verde” que contribui para o meio ambiente ser sustentável (SOMAVÍA, 2014, p. 101).
Como visto, faz-se imprescindível medidas voltadas a grupos vulneráveis com vistas a sua proteção e inserção no trabalho, sendo a proteção social e o emprego componentes essenciais na agenda para o benefício do povo.
3.1 A Convenção 189 da OIT
Consoante entendimento da OIT, grande parte da exploração doméstica tem origem na pobreza, e sua erradicação, portanto, está vinculada ao processo de crescimento econômico e seus reflexos na estrutura educacional das nações.
Explique-se que a OIT é uma organização internacional permanente, com mandato constitucional, possuindo personalidade jurídica de Direito Público Internacional e competência para elaborar normas internacionais do trabalho. Tais normativas gozam de reconhecimento universal, vez que valorizam o trabalho e perquirem a dignidade do trabalhador, questões estas diretamente ligadas aos direitos humanos. Assim, objetiva promover meios para se alcançar a justiça social e o trabalho digno. O Brasil integra essa organização na qualidade de Estado- membro. (GAMBA, 2012)
Em setembro de 2013, o Brasil ratificou a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o trabalho doméstico. Tal convenção visa melhorar as condições de vida e de trabalho dos milhões de trabalhadoras e trabalhadores domésticos no mundo, assegurando-lhes um emprego decente que lhes ofereça proteções equivalentes às dos outros trabalhadores.
A Convenção 189 surgiu da necessidade de se proteger os direitos dos trabalhadores domésticos, tendo em vista que o trabalho doméstico continua sendo subvalorizado e invisível e é executado principalmente por mulheres e meninas, muitas das quais são migrantes ou membros de comunidades desfavorecidas e, portanto, particularmente vulneráveis à discriminação em relação às condições de emprego e trabalho, bem como outros abusos de direitos humanos.
Nesse sentido, o artigo 1º da convenção 189 da OIT estabelece:
Artigo 1º
Para o propósito desta Convenção:
(a) o termo "trabalho doméstico" designa o trabalho executado em ou para um domicílio ou domicílios;
(b) o termo "trabalhadores domésticos" designa toda pessoa, do sexo feminino ou masculino, que realiza um trabalho doméstico no marco de uma relação de trabalho;
(c) uma pessoa que executa o trabalho doméstico apenas ocasionalmente ou esporadicamente, sem que este trabalho seja uma ocupação profissional, não é considerada trabalhador doméstico.
(...)
Artigo 3º
1. Todo Membro deverá adotar medidas para assegurar a promoção e a proteção efetivas dos direitos humanos de todos trabalhadores domésticos, em conformidade com as disposições da presente Convenção.
2. Todo Membro deverá, no que diz respeito aos trabalhadores domésticos, adotar medidas previstas na presente Convenção para respeitar, promover e tornar realidade os princípios e direitos fundamentais no trabalho, a saber:
(a) a liberdade de associação e a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva;
(b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;
(c) a erradicação efetiva do trabalho infantil; e
(d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
A partir da leitura do artigo acima, infere-se que a eliminação efetiva de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório deve levar em consideração as condições dignas de vida que respeitem a privacidade dos trabalhadores, bem como seus direitos fundamentais básicos.
Em suma, a Convenção nº 189 da OIT foi aprovada no sentido de promover a igualdade de tratamento dos trabalhadores domésticos com relação aos direitos já garantidos aos demais trabalhadores, faltando a ratificação do Brasil nesse desiderato. Contudo, registre-se uma notícia animadora, motivo de regozijo, vazada no Jornal da Câmara no dia 04.12.2012: foi aprovada, em segundo turno, pelo plenário da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 478/2010, cujo teor refere-se à revogação do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal a fim de estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos (trabalhadores domésticos com carteira assinada) e os demais trabalhadores urbanos e rurais (BEZERRA, 2010) (JORNAL DA CÂMARA, 2012).
Nesse sentido, é necessário conceituar o que é trabalho doméstico e, principalmente, qual é o posicionamento da legislação brasileira sobre a exploração camuflada de “emprego”.
4 O TRABALHO DOMÉSTICO
O trabalho doméstico tem sua gênese no período do regime escravocrata, onde vigorava um vínculo de exploração da mão-de-obra escrava, com resquícios de extrema violência. O trabalho era exercido majoritariamente por mulheres.
A expressão trabalho doméstico abarca uma ampla diversidade de tarefas e serviços que variam de um país para o outro, distinguindo-se em função da idade dos empregados, do gênero e do contexto cultural e econômico em que trabalham.
Segundo Goés (2007), vale a interpretação no sentido de que o legislador teria compreendido que aquele não seria o momento oportuno para estender à categoria dos empregados domésticos os mesmos direitos trabalhistas previstos na Consolidação aos demais empregados urbanos e rurais, partindo do pressuposto de que a evolução do direito deve ser gradual e consistente, no intuito de não causar traumatismos sociais, em especial no caso em apreço, quando o trabalho é prestado em condições especiais, explicite-se, no seio da família
A Organização Internacional do Trabalho – OIT usa a definição de trabalho forçado, e o considera como “o trabalho realizado involuntariamente e sob a ameaça de qualquer penalidade.” Também é definido pela organização que qualquer situação em que um indivíduo se encontre coagido a trabalhar por meio de violência ou intimidação, ou por meios de dívida manipulada, retenção de documentos de identidade ou ameaças de denúncia às autoridades de imigração, é considerado trabalho forçado.
Via de regra, o trabalho doméstico é pouco valorizado. Recentemente, com a promulgação da Lei Complementar nº 150/2015, conhecida como a PEC das domésticas, a situação dos trabalhadores domésticos transformou a forma como essas relações laborais eram reguladas. O conceito de trabalho doméstico pode ser pela transcrição do artigo da referida lei:
DO CONTRATO DE TRABALHO DOMÉSTICO
Art. 1º- Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei.
Como visto, enquadra-se como empregado doméstico a pessoa física que presta serviço em âmbito residencial, sem finalidade lucrativa, de forma onerosa e subordinada.
A continuidade acima evidenciada enseja uma conotação de convivência entre empregado, empregador e demais membros da família deste. Tal convívio dá-se durante a ininterrupta execução dos trabalhos tipicamente domésticos. Desse trato cotidiano extrai-se uma série de efeitos, na maioria das vezes, nefastos, bem lembrados por Barzotto (2011), a saber:
Deste modo, paradoxalmente, quem trabalha na família é, e não é, de certo modo, parte dela. Admitindo-se uma estilização imperfeita, ou melhor, analogia forçada. Se o trabalhador doméstico é tido como
membro da família, autoriza-se, ainda que de forma não consciente, a tratá-lo ora como filho, ao qual se dá mesada inconstante, ora como mãe, que faz tudo por amor e gratuidade, ora como pai, aquele que provê e se sacrifica por todos. Nessa economia doméstica simbólica, o espaço do trabalhador da esfera privada é pouco compreendido e ele nem sempre é visto como um profissional inserido em um mercado de trabalho. (BARZOTTO, 2011)
Todavia, em que pese a melhoria nas condições laborais dos domésticos brasileiros trazida com a Lei Complementar nº 150/2015, ainda existem muitos casos de trabalho análogo ao escravo nas residências dos empregadores, os quais vem sendo frequentemente divulgados na mídia.
Isso porque, mesmo com os evidentes avanços legislativos e por consequência lógica os avanços em termos de remuneração, ainda se verifica que, mesmo após o final do período da escravidão, permanece estilhaços de casos de trabalho forçado ou em condições análogas ao escravo em âmbito doméstico e familiar.
Certo é que qualquer situação que submete o indivíduo a condições degradantes, a jornada exaustiva, a servidão por dívida, a trabalhos forçados ou restrição de liberdade/locomoção, é considerado trabalho em condição análoga à de escravo.
4.1 O trabalho doméstico análogo à escravidão
No presente momento, à luz do debate sobre direitos humanos e em meio às profundas transformações nas relações de trabalho, condena-se o trabalho doméstico análogo ao escravo à erradicação.
A maior parte do trabalho doméstico é exercida por mulheres, por uma distribuição sociocultural e econômica das funções. Fatores como gênero e raça são determinantes para que algumas situações acabem passando despercebidas, notadamente porque as mulheres resgatadas do trabalho análogo à escravidão em sua maioria são negras, e oriundas de famílias pobres que não tinham condições de se manter de forma digna.
Segundo MASSON, na hipótese de se "sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho", um bom parâmetro para identificar se as condições de trabalho são degradantes ou não são as disposições trabalhistas vigentes no ordenamento jurídico brasileiro (MASSON, 2012, p. 240).
A título de exemplificação, o Tribunal Superior do Trabalho julgou recentemente um Recurso de Revista interposto pelo Ministério Público do Trabalho da 6ª Região, onde o cerne da discussão relaciona-se a situação qual o trabalhador é mantido em situação de dependência e exploração, e, não raro, ludibriado pela justificativa falaciosa do empregador de que o indivíduo explorado seria "como se fosse da família, contrariando o disposto no art. 5º da Constituição da República de 1988, que prevê a proteção dos direitos humanos fundamentais.
Além disso, a Ministra Relatora desse processo, Exma. Liana Chaib, utilizou-se da Convenção 189 da OIT para julgar procedente o recurso, determinando o pagamento de indenização por danos morais coletivos à vítima de trabalho análogo à escravo, conforme se verifica da ementa extraída do acórdão:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA - TRABALHO DOMÉSTICO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO - DESMISTIFICAÇÃO DO ARGUMENTO "COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA" - GRAVE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS - RECONHECIMENTO DA IMPRESCRITIBILIDADE DO DIREITO ABSOLUTO A NÃO ESCRAVIZAÇÃO - ART. 896, §1º-A, I, DA CLT. Do exame das razões recursais, observa-se que o recorrente transcreveu corretamente o trecho do acórdão regional em que analisada tese relativa à imprescritibilidade da pretensão envolvendo o labor em condições análogas à escravidão. Assim, preenchido o requisito do art. 896, §1º-A, I, da CLT há que se prosseguir no exame da questão de fundo. Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo MPT, juntamente com a DPU, para tutelar direitos individuais de trabalhadora doméstica reduzida, por mais de 20 anos - de 1998 a 2020 -, à condição análoga à de escravo, além de tutelar o direito coletivo da sociedade. Ao analisar o caso, o TRT rejeitou o argumento do Órgão Ministerial segundo o qual é imprescritível a pretensão deduzida em ação trabalhista envolvendo a prática da submissão de trabalhadora doméstica à condição análoga à escravidão. (...) Acrescente-se que o Estado Brasileiro, signatário da Convenção nº 29 da OIT, que versa sobre o trabalho forçado ou obrigatório, e da Convenção nº 105 da OIT, que trata da abolição do trabalho forçado e proíbe o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório, comprometeu-se a combater e reprimir, sem qualquer restrição, as práticas de escravidão moderna. (...) Quanto à caracterização do trabalho em condição análoga à de escravidão, vale pontuar, de início, que a própria legislação cuida de tipificar tal ilícito. Deveras, o crime de " Redução à condição análoga à de escravo " está previsto no caput do art. 149 do Código Penal, tendo sido ali estabelecido que incorrerá na prática de tal delito aquele que: "r eduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto ". Dito isso, cabe averiguar se, no caso concreto, a trabalhadora resgatada estava reduzida à condição análoga à de escravo. Na hipótese, o TRT, após exaustiva apreciação das provas, delimitou o seguinte quadro fático, cujo reexame mostra-se inviável nesta instância extraordinária: a partir " dos elementos de prova existentes nos autos, resta patente que a obreira, empregada doméstica residente em imóveis da entidade familiar estava reduzida à condição análoga à de escrava, eis que, sujeita a condições degradantes de trabalho, percebendo salários em muito inferiores ao mínimo, quando os recebia, com limitações e impedimento de uso ao banheiro, recebendo comida e medicamentos de vizinhos, arcando com despesas dos empregadores, referentes à água e à luz e sofrendo descontos salariais para pagamento de rações de animais pertencentes aos empregadores, sofrendo, ainda, restrições à liberdade, à locomoção e acesso à sua pessoa, além de desamparo dos empregadores em momento de acidente " e que " Percebe-se que, a obreira, pessoa humilde, pelo que se infere dos autos, inclusive gravação acostada pelos réus, tinha medo dos empregadores mesmos e, além disso, tinha receio de não receber o que de direito ". Assim, não há dúvida de que a trabalhadora prestou serviço em condição análoga à de escravo, com restrição da liberdade e em situação degradante e aviltante à dignidade humana, privada de salários e das mínimas condições de higiene, saúde e alimentação. Nesta relação, o indivíduo figura como agregado a quem, no início da relação de submissão, é oferecida a ilusão de alcançar melhoria na condição de vida por estar inserido naquele ambiente familiar. Não obstante, na verdade, referidos trabalhadores são submetidos à realidade para a qual foram arregimentados: trabalhar ininterruptas horas, sem direito a salários, descanso remunerado, férias, etc., recebendo, quase sempre, pequenos agrados ou pequenas quantias em dinheiro, apenas para sobrevivência, sofrendo restrição alimentar e todo tipo de humilhação e de violência moral e física. Ressalte-se que esse tipo de exploração criminosa é demasiadamente mais difícil de ser constatada por ocorrer no íntimo de uma residência familiar, longe dos olhos da sociedade e dos órgãos de fiscalização do trabalho, favorecendo a continuidade delitiva por longos anos, atribuindo à pessoa o vergonhoso status de patrimônio familiar, chegando, comumente, a ser transmitido pelas gerações de parentes da família empregadora. O reconhecimento da prescrição no caso dos autos projeta uma anuência a essa violação ao direito fundamental a não ser escravizado - que encontra seu análogo na proibição ao tratamento desumano ou degradante inscrito no artigo 5º, inciso III, da Constituição da República. Além disso, a liberdade do indivíduo é direito fundamental que só pode sofrer restrição por parte do Estado através de um devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CF). Não há autorização constitucional para restrição de liberdade em uma relação privada, o que inclui um vínculo de emprego. (...) (RRAg-1000612-76.2020.5.02.0053, 2ª Turma, Relatora Ministra Liana Chaib, DEJT 27/10/2023). (grifo meu)
A situação acima descrita reflete a realidade de muitas empregadas domésticas no Brasil: quando a trabalhadora é considerada “da família” e não recebe salário, quando ela não tem liberdade para sair de casa, quando está sujeita condições degradantes que ferem seus direitos fundamentais – como receber acomodação sem condições de higiene e conforto – ou quando é submetida, por exemplo, a jornadas de trabalho exaustivas, precisando estar disponível para empregadores ou empregadoras a qualquer hora e sem poder dizer “não”.
Infelizmente, em que pese à adoção de medidas satisfatórias no intuito de erradicar o trabalho análogo à escravidão, principalmente ao ratificar a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, o Brasil não obteve êxito em acabar com a exploração dos serviços domésticos em lares de terceiros.
Em recente campanha para combate ao trabalho doméstico análogo à escravidão, o Ministério Público do Trabalho pautou-se na Convenção 189 da OIT para esclarecer que muitas trabalhadoras ainda estão vivendo em cárcere privados e trabalho análogo à escravidão, além da violência física.
Observe trecho retirado do sítio eletrônico oficial do MPT:
O ato de privar as trabalhadoras domésticas de suas próprias vidas é condenado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Há ainda normas internacionais de proteção à trabalhadora doméstica, como Convenção 189 da OIT – um acordo do qual o Brasil é signatário (desde 2018) e cuja implementação precisa ser reforçada.
“A legislação é clara. A OIT é clara. A Convenção 189 nos garante trabalho digno e decente, com remuneração adequada e tratamento humanitário. Essa luta, infelizmente, em pleno século XXI, ainda está longe de acabar. Muitas trabalhadoras ainda estão vivendo em cárcere privados e trabalho análogo à escravidão, além da violência física. Os empregadores confiam na impunidade e no isolamento que a trabalhadora doméstica vive no local de trabalho.
Em suma, o trabalho doméstico análogo à escravidão é ainda uma realidade no país e acontece em diferentes regiões, envolvendo empregadores e empregadoras de diferentes classes sociais, haja vista que, embora as denúncias sejam relevantes para que o MPT consiga realizar operações de resgate, há muitos casos invisibilizados pelo fato de as pessoas não saberem identificar esse tipo de situação.
Por esse motivo, os programas adotados para combater a exploração dos trabalhadores domésticos se baseiam, essencialmente, no fomento da educação, uma vez que somente o estudo pode propiciar um futuro melhor a estas famílias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com efeito, o serviço doméstico é um dos mais recorrentes quando se trata de condições degradantes de trabalho, haja vista os resquícios da escravidão no Brasil, mormente porque a maioria desses trabalhadores domésticos é formada por mulheres negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda, o que reforça a ideia de um racismo estrutural.
Ressalte-se que esse tipo de exploração criminosa é muito mais difícil de ser constatada por ocorrer no íntimo de uma residência familiar, longe dos olhos da sociedade e dos órgãos de fiscalização do trabalho, favorecendo a continuidade delitiva por longos anos, atribuindo à pessoa o vergonhoso status de patrimônio familiar, chegando, comumente, a ser transmitido pelas gerações de parentes da família empregadora.
Assim, considerando que o trabalho doméstico é uma das atividades para as quais o conceito de trabalho decente deve ter especial importância, atrelado às discriminações cruzadas de gênero e raça, atentar-se para a realidade de escravidão geralmente camuflada é atentar-se também para uma questão mais ampla de igualdade de oportunidades e tratamento no mundo do trabalho doméstico, especialmente para as mulheres.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
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Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp150.htm>. Acesso em 05 nov. 2023
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. – 13ª ed. – São Paulo: LTr, 2014.
DELGADO, Gabriela Neves. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São Paulo, LTr, 2006.
COSTA, Helcio Mendes da. Evolução Histórica do Direito do Trabalho, geral e no Brasil. (2010). Disponível em: site http://www.jurisway.org.br/. Acesso em 07 nov. 2023
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Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista RRAg-1000612-76.2020.5.02.0053. Rel. Relatora Ministra Liana Chaib. 2ª Turma. Julgado em 15/03/2017. Disponível em < https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=521163&anoInt=2022 Acesso em: 05 nov. 2023.
Graduação em Direito pelo Centro Universitário UNA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Mariana Leticia Pereira. A reiteração das jornadas exaustivas de trabalho e o consequente reconhecimento da condição análoga à escravidão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2023, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63876/a-reiterao-das-jornadas-exaustivas-de-trabalho-e-o-consequente-reconhecimento-da-condio-anloga-escravido. Acesso em: 22 nov 2024.
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