RESUMO: O presente Trabalho de Conclusão de Curso aborda a delicada interação entre a efetividade jurídica e os princípios democráticos no contexto da superação legislativa de entendimentos consolidados em Súmulas Vinculantes. Explorando o equilíbrio entre a busca pela eficácia das decisões judiciais e a manutenção da legitimidade democrática, este estudo examina os fundamentos e limites que moldam a tomada de decisões legislativas destinadas a revogar ou modificar tais entendimentos sumulados. Por meio de uma análise crítica e embasada no julgamento do tema 477, em sede de repercussão geral, pelo Supremo Tribunal Federal, este TCC investiga como essa dinâmica complexa impacta o sistema jurídico e político, questionando as implicações para o Estado de Direito e o princípio democrático da separação de poderes.
Palavras-chaves: Separação de poderes. Súmulas Vinculantes. Superação legislativa. Democracia.
1 INTRODUÇÃO
Há alguns anos, principalmente a partir da década de 90, o Brasil vem anunciando uma cultura de valorização de um sistema de precedentes judiciais vinculantes. Trata-se de um sistema adotado pelos países do Common Law, no qual os precedentes, isto é, as decisões firmadas pelos tribunais superiores, possuem um núcleo fundamental que serve como diretriz e causa influência expressiva na atividade jurisdicional das instâncias inferiores durante o julgamento de casos análogos.
Como exemplo desse cenário evolutivo podem ser citadas a Lei nº 8.038/90, que em seu art. 38 permitia ao relator a possibilidade de decidir, de forma unipessoal, os recursos de competência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça com base exclusivamente em Súmula da respectiva Corte; a Lei nº 10.352/01, que dispensava o duplo grau jurisdição obrigatório em decisões contra a Fazenda Pública que estivessem em harmonia com jurisprudência do STF ou com súmula deste ou do tribunal superior competente; a Lei nº 11.232/05, que criou os embargos desconstitutivos da coisa julgada incompatível com a Constituição à luz da jurisprudência do STF; dentre outras.
Também pode ser citada a Emenda Constitucional nº 45 do ano de 2004. Conhecida como Reforma do Judiciário, essa alteração legislativa modificou o art. 102 da Constituição Federal, acrescentando o §2º, com a finalidade de atribuir efeito vinculante à decisão proferida pelo STF em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal e também introduziu no ordenamento jurídico brasileiro os enunciados de súmula vinculante.
Percebe-se, portanto, que as normas positivadas no Novo Diploma Processual Civil, instituído pela Lei 13.105/2015, acabaram por consolidar o que se apresentava como uma tendência na ordem jurídica brasileira: a vinculação aos precedentes jurisprudenciais. O novo código trouxe para o cenário jurídico nacional a necessidade de se analisar alguns conceitos extraídos do Common Law, como meio de aproximar o raciocínio jurídico brasileiro, país de cultura romano-germânica, ao raciocínio empregado nos sistemas dos países de cultura anglo-saxã.
Uma pesquisa coordenada pelo doutor Thomas da Rosa de Bustamante, publicada no ano de 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça, realizou um estudo acerca das decisões do STJ e de oito tribunais nacionais, com o fito de averiguar a força normativa do direito judicial no país e os desafios que o Poder Judiciário precisaria enfrentar para legitimar a aplicação prática do sistema de precedentes no direito brasileiro. Como resultado constatou-se “falta de responsividade” e “ausência de plena motivação” das decisões, tanto no que diz respeito a formação do precedente, como também na posterior aplicação pelos tribunais de instância inferior.
Assim, diante do contexto apresentado e almejando entender com maior profundidade como deve funcionar o respeito aos precedentes, esse trabalho busca analisar inicialmente a importância desse sistema e o porquê de sua implementação no país, para então, posteriormente, ingressar no estudo acerca da teoria do Stare Decisis, adotada pelos países do Common Law, com o objetivo de compreender premissas básicas que devem ser utilizadas pelo magistrado durante a sua atuação para o uso correto dos precedentes, de modo a evitar o desvirtuamento do instituto.
Ato contínuo, será realizado um estudo detalhado acerca das súmulas vinculantes como instrumentos desse sistema e seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase na não vinculação do Poder Legislativo e o fenômeno da reação legislativa. Por fim, será analisado o precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, e a tese jurídica acerca das consequências causadas nas súmulas vinculantes em razão da revogação ou modificação do ato normativo que fundamentou a sua edição.
2 O SISTEMA DE PRECEDENTES VINCULANTES BRASILEIRO
O Código Processual Civil de 2015 (Lei 13.105/15) inaugurou no ordenamento jurídico brasileiro um amplo sistema de precedentes vinculantes, instituindo, de modo amplo, a regra de que juízes e tribunais devem, no momento da tomada de decisão, observar as teses firmadas pelos tribunais superiores.
Esse novo sistema de precedentes judiciais emerge como possível solução em um contexto de intensa massificação do acesso à justiça. Esse fenômeno tem como causa a maior independência e visibilidade conferida pela Constituição Brasileira de 1988 ao Poder Judiciário, que trouxe em seu corpo normativo inovações que têm como proposta ampliar o acesso à tutela jurisdicional do Estado, podendo-se citar como exemplo a criação dos juizados especiais.
Fato é que, diante do indiscutível aumento das demandas apresentadas ao Poder Judiciário, o legislador ordinário percebeu a necessidade de normatizar o uso pragmático dos precedentes judiciais, a fim de que esse sistema possa auxiliar a entrega de uma prestação jurisdicional mais justa, com o devido respeito ao princípio da segurança jurídica, isonomia e eficiência.
Nesse sentido pode-se apresentar trecho do voto do Ministro Luís Roberto Barroso na Reclamação 4335, de relatoria do Min. Gilmar Mendes:
“(...) E eu acho que essa é uma mudança saudável, embora boa parte dos juristas brasileiros seja crítico dessa ascensão dos precedentes, eu acho que ela não só é importante como é uma inevitabilidade, porque o respeito aos precedentes e à expansão do papel dos precedentes atende a três finalidades constitucionais importantes: a primeira é a segurança jurídica. Na medida em que os tribunais inferiores respeitem, de uma maneira geral, as decisões dos tribunais superiores, cria-se um direito mais previsível e, consequentemente, menos instável. E, hoje em dia, há um entendimento que se generaliza de que a norma não é apenas aquele relato abstrato que está no texto. As normas jurídicas são um produto da interação entre o enunciado normativo e a realidade. Portanto, o Direito é, em última análise, o que os tribunais dizem que é. Além disso, essa disseminação do respeito aos precedentes atende o princípio da isonomia, na medida em que evita-se que pessoas em igual situação tenham desfechos diferentes para o seu caso, o que é, em alguma medida, sempre repugnante para o Direito. E, por fim, o respeito aos precedentes valoriza o princípio da eficiência, porque torna a prestação jurisdicional mais fácil, na medida em que o juiz ou os tribunais inferiores possam simplesmente justificar as suas decisões à luz de uma jurisprudência que já se formou”.
O sistema de precedentes vinculantes brasileiro encontra-se normatizado nos arts. 926, 927 e 928 do CPC/2015. O primeiro desses artigos busca uniformizar a jurisprudência dos tribunais, com o propósito de possibilitar a construção de um conjunto de decisões estáveis, visto que, para se falar em uma sistemática de precedentes torna-se indispensável que o próprio tribunal autor da decisão permaneça a ela vinculado por um período razoável de tempo, exceto é claro, nos casos de superação de tais precedentes. Assim dispõe o art. 926 em sua literalidade:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
O art. 927, em seu caput, institui um rol hierárquico de precedentes obrigatórios que deverão ser observados pelos juízes e tribunais no momento da tomada de decisão. Percebe-se que o legislador primou pelo fortalecimento da jurisprudência das Cortes Superiores, tanto Supremo Tribunal Federal como Superior Tribunal de Justiça. No entanto, não é possível afirmar que houve o esquecimento dos Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Militares, uma vez que o texto também faz referência aos precedentes decorrentes da resolução de demandas repetitivas, que podem ser instaurados pelos tribunais inferiores.
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Já em seus parágrafos, o artigo preocupa-se com a fundamentação das decisões judiciais adotadas com fundamento neste artigo (§1º), com a alteração das teses jurídicas adotadas em enunciados de súmula ou em julgamento de casos repetitivos (§2º e §4º), com a possibilidade de modulação dos efeitos decorrentes da alteração de jurisprudência dominante do STF (§3º) e com a publicidade que deve ser conferida aos precedentes (§5º). Por serem temas bastante importantes, indispensável a leitura na íntegra do texto normativo:
§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
Por fim, o art. 928 limita-se a indicar o que deve ser considerado julgamento de casos repetitivos, estabelecendo como tal as decisões proferidas em incidente de resolução de demandas repetitivas e em recursos especial e extraordinário repetitivos.
Nota-se, portanto, que o CPC/2015 situou o direito brasileiro no caminho da construção de uma sistemática de precedentes vinculantes. Ocorre que, os juízes brasileiros, de formação romano-germânica, não possuem muita familiaridade com os institutos e técnicas exigidas nas operações com precedentes. Nesse sistema, a lei é tida como a principal fonte do direito, de modo que, via de regra, as decisões judiciais não produzem efeito vinculante erga omnes, constituindo-se apenas como fonte mediata do direito, sem influenciar diretamente, portanto, o julgamento de casos futuros.
Diante desse cenário, surge a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre a consolidação desse novo sistema no país, de modo a se indagar: a quem se dirige esse sistema e quais as suas exceções? Estaria o Poder Legislativo vinculado a um precedente judicial? Quais as consequências práticas oriundas da alteração do ato normativo que fundamentou um precedente vinculante?
3 A TEORIA DO STARES DECISIS
No Brasil, um dos problemas para a disseminação da cultura dos precedentes é a própria atuação dos tribunais. O volume dos casos julgados e a quantidade de decisões monocráticas tomadas acabam por multiplicar as divergências e a variação de jurisprudência se torna notável, enfraquecendo o papel dos precedentes. São bastante comuns os casos em que um tribunal edita uma súmula pacificando determinado entendimento e, após alguns meses ou anos, muda seu posicionamento sem preocupar-se em justificar o porquê da superação daquele precedente.
Como dito anteriormente, a ideia de prestigiamento das decisões jurisdicionais é da essência do Common Law, e representa a possibilidade jurídica de que o juízo futuro se declare vinculado a decisão anterior, em face da similaridade dos casos analisados. Trata-se da teoria do Stare Decisis[1], responsável por indicar os limites básicos e os requisitos indispensáveis para formação e aplicação de um precedente vinculante.
Vale ressaltar que a doutrina do Stare Decisis não exige obediência cega às decisões anteriores. Nesse sistema os magistrados conservam seu arbítrio para analisar o precedente e rejeitar o que considerem ser desarrazoado, para só então aplica-lo na medida em que percebem assim estar promovendo a justiça. Caso contrário, os tribunais estariam fadados a seguir o passado unicamente em função de ser decisão passada, ignorando sua função de se beneficiarem da sabedoria do passado.
3.1 Os aspectos positivos e negativos do Stare Decisis
Um dos aspectos positivos que podem ser apresentados após o estudo de um sistema de precedentes vinculantes, sem sombra de dúvidas, é a estabilidade que ele confere ao ordenamento jurídico. Trata-se de uniformidade jurisprudencial, isto é, a adoção de decisões iguais para casos semelhantes entre si. Importante ressaltar que essa estabilidade deve ser aplicada no ordenamento tanto de forma vertical – impondo o respeito das instâncias inferiores às decisões adotadas pelos tribunais superiores – como também de modo horizontal – cabendo a cada juízo e tribunal zelar pela preservação dos seus entendimentos anteriormente adotados, exceto é claro, nos casos em que se tratar de superação de precedente.
Também pode-se citar como aspecto positivo a previsibilidade do direito, decorrente diretamente da vantagem anterior, uma vez que a estabilidade contribui para o fortalecimento da uniformização da jurisdição. Deste modo, esse sistema permite ao jurisdicionado conhecer previamente qual a fundamentação adotada pelo órgão julgador em determinado caso, possibilitando assim que o mesmo apresente razões que diferenciem aquele caso do anteriormente julgado, podendo influenciar verdadeiramente na decisão a ser proferida.
Por fim, há a vantagem da celeridade e a concretização do princípio da duração razoável do processo. O uso dos precedentes contribui para o aperfeiçoamento da decisão, auxiliando o magistrado na fundamentação da sentença ou acórdão. Alcança-se, portanto, o aprimoramento do trabalho decisório do juiz, o fortalecimento institucional do Poder Judiciário e a rápida prestação da atividade jurisdicional.
Na contramão do que foi apresentado anteriormente estão os críticos a adoção do sistema de precedentes vinculantes. Segundo esses doutrinadores, um dos maiores defeitos apresentados por esse sistema é a complexidade para se aplicar um precedente. Isso ocorre porque existem técnicas procedimentais que precisam ser respeitadas, sob pena de desvirtuamento do instituto. Desta forma, em países como o Brasil, país de cultura romano-germânica adepto do Civil Law, a adoção desse sistema demandaria necessariamente muita dedicação e estudo por parte dos julgadores.
Além disso, os críticos também apontam para uma possível violação aos princípios do livre convencimento e da separação dos poderes. No primeiro caso alegam que a tomada de decisão com obediência aos precedentes tornaria as decisões das instâncias inferiores em cópias das decisões consolidadas pelos tribunais superiores. No segundo caso, para alguns estudiosos, em algumas situações o sistema de precedentes acabaria por substituir a atividade do Poder Legislativo, visto que um dos efeitos dos precedentes é a eficácia erga omnes, bem semelhante ao efeito gerado pela legislação ordinária.
3.2 Institutos fundamentais para a operação com precedentes
Segundo essa teoria, a operação com precedentes vinculantes exige que os órgãos julgadores dominem três conceitos básicos: ratio decidendi (ou holding), obiter dictum e distinguishing. O estudo desses institutos torna-se essencial para qualquer magistrado que precise operar com o sistema de precedentes vinculantes, uma vez que sem eles não há como se alcançar a segurança jurídica atrelada a razoável duração do processo.
O primeiro conceito refere-se às “razões para a decisão”, ou seja, ao entendimento jurídico que serviu como base a uma determinada decisão e que será utilizado para vincular casos futuros. Para chegar a esse entendimento, os magistrados poderão fazer uso de dois métodos: o fático-concreto e o abstrato normativo. Aquele buscar extrair uma regra de um conjunto de fatos, considerando todas as suas particularidades, de modo que sua utilização tende a ensejar a elaboração de holdings mais restritivos. Já este último método orienta que a ratio decidendi deve apresentar uma solução para o caso concreto com o fito de abarcar situações similares a analisada, originando assim um precedente mais amplo.
Imperioso destacar que, quanto mais genérica for a ratio decidendi, maior será o número de casos por ela regidos e, por outro lado, maior será o cuidado a ser observado pelos juízes que deverão aplicá-la. Por esse motivo, mesmo nos casos em que o magistrado decida fazer uso do método abstrato normativo, é de fundamental importância a delimitação do conjunto de fatos sobre os quais se erigiu a decisão, como forma de evitar que o precedente se torne abrangente demais e acabe por ser aplicado em situações fáticas que não foram sequer analisadas no momento do julgamento.
Já o segundo conceito, de forma simplória, diz respeito a tudo aquilo que integra a decisão judicial, mas que não é considerado parte determinante na formação do julgado. Conclui-se, portanto, que a formação do precedente considera apenas a ratio decidendi, dispensando-se o obiter dictum, vez que apenas a primeira contém o fundamento jurídico prestigiado na decisão concreta.
O terceiro conceito, por fim, refere-se à “distinção dos casos”, isto é, ao ato de identificar as demandas e, após essa análise, decidir pela não adoção de determinado precedente. Essa prática é levada a efeito nas ocasiões em que os juízes e tribunais, após o estudo do caso concreto, verificam que há distinção entre o alegado precedente e a situação fática apresentada. O distinguishing é, deste modo, uma espécie de exceção a ratio decidendi de um precedente.
O CPC/2015 ressalta a obrigatoriedade na apresentação de fundamentação por parte do julgador no caso de utilização da técnica da distinção. Por esse motivo o art. 489, em seu § 1º considera não fundamentada a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
Importante ressaltar ainda que o uso dessa técnica não ocasiona a revogação ou a superação de precedentes. A diferenciação de casos é uma técnica que pode ser utilizada por qualquer magistrado e visa o mero afastamento de um precedente por se entender que este não se adequa à situação fática analisada. Trata-se, portanto, de um simples caso de não incidência da tese do precedente invocado.
Percebe-se, diante de todos esses conceitos, que o magistrado deve possuir um amplo conhecimento sobre os institutos e técnicas exigidas para o uso correto dos precedentes, sob pena de acabarem por desvirtuar o instituto.
4 AS SÚMULAS VINCULANTES COMO INSTRUMENTO DO SISTEMA DE PRECEDENTES
A Emenda Constitucional nº 45, publicada no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 2004, instituiu a Reforma do Judiciário. Esse ato normativo foi promulgado com o objetivo de dar mais agilidade e eficiência ao sistema judiciário e proporcionou várias mudanças na organização e no funcionamento da Justiça brasileira. Dentre as mudanças trazidas por essa emenda, pode ser citada a possibilidade de edição de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal.
O sistema jurídico brasileiro é conhecido pela sua complexidade e morosidade, o que muitas vezes gera insegurança e dificuldades na aplicação do direito. Nesse contexto, as Súmulas Vinculantes surgem como um instrumento de efetividade e segurança jurídica, buscando uniformizar o entendimento dos tribunais e conferir maior celeridade na resolução de questões repetitivas. Tratam-se de instrumentos constitucionais de uniformização da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, com força normativa e vinculante sobre todos os órgãos do Poder Judiciário e sobre toda a administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
Afirmar que essas súmulas possuem caráter vinculante significa dizer que todos os órgãos do Poder Judiciário e também a administração pública direta e indireta devem seguir o entendimento firmado pelo STF, sob pena de ofensa à autoridade da Corte e possíveis sanções. Essa característica vinculante das súmulas é um dos seus principais diferenciais em relação às súmulas tradicionais, que possuem apenas efeito persuasivo, não sendo de observância obrigatória pelos demais tribunais.
A edição de uma Súmula Vinculante segue um procedimento específico, estabelecido na Constituição Federal de 1988, em seu art. 103-A, e na Lei nº 11.417/2006. Inicialmente, é necessária a provocação de um legitimado, como o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, os Conselhos da República e da Defesa Nacional, ou ainda entidades representativas de classe.
Após a provocação, o STF realiza um amplo debate sobre a matéria, incluindo audiências públicas e análise da jurisprudência consolidada sobre o tema. A aprovação da Súmula Vinculante se dá por maioria absoluta dos ministros da Corte, após deliberação em sessão plenária.
Quando a Súmula Vinculante é aprovada, ela possui eficácia erga omnes e efeito vinculante a partir da sua publicação. Entretanto, para que seja devidamente aplicada, faz-se necessária a publicação do inteiro teor da súmula nos diários oficiais dos tribunais e demais órgãos abrangidos pela vinculação.
Embora as Súmulas Vinculantes sejam um importante instrumento de efetividade e segurança jurídica, é importante ressaltar que elas também possuem limites. A vinculação aos precedentes do STF não pode ser absoluta, uma vez que a rigidez excessiva poderia inviabilizar a adaptação do direito à dinamicidade da sociedade e aos novos contextos jurídicos.
Os limites das Súmulas Vinculantes estão vinculados ao princípio da proporcionalidade, que exige que sua aplicação seja razoável e adequada à situação em julgamento. Dessa forma, é possível que sejam relativizadas em casos excepcionais quando demonstrada a necessidade de sua revisão. Por essa razão, o magistrado pode deixar de seguir enunciado de súmula em, pelo menos, duas situações: overruling (superação do precedente) e distinguishing (distinção fática), conforme previsão no art. 315, § 2.º, VI, do Código de Processo Penal (CPP).
Art. 315, CPP. A decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada:
(...)
§ 2º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
4.1 Benefícios e desafios das súmulas vinculantes
As Súmulas Vinculantes trazem diversos benefícios para o sistema de precedentes judiciais no Brasil. A vinculação ao precedente do STF proporciona uma maior uniformidade na interpretação do direito, evitando decisões conflitantes entre os tribunais e promovendo a estabilidade nas relações jurídicas.
Ademais, as Súmulas Vinculantes agilizam a tramitação de processos, uma vez que os tribunais devem aplicar o entendimento consolidado na súmula, evitando reiteração de julgamentos sobre questões já pacificadas. Como consequência, ao reduzir a quantidade de processos repetitivos, as Súmulas Vinculantes contribuem para desafogar o Poder Judiciário, permitindo que os magistrados se dediquem a casos mais complexos e relevantes.
Esses enunciados jurídicos também proporcionam maior segurança jurídica aos cidadãos e empresas, que podem pautar suas condutas conforme o entendimento consolidado pelo STF, evitando incertezas e conflitos desnecessários.
Por outro lado, apesar dos benefícios apresentados, as Súmulas Vinculantes também enfrentam desafios e têm algumas limitações. A parte crítica da doutrina sustenta que a vinculação obrigatória às Súmulas Vinculantes pode gerar uma certa rigidez no sistema jurídico, dificultando a adaptação do direito a novas situações e demandas sociais em constante evolução. Também há uma ressalva em relação a necessidade de se observar os princípios da proporcionalidade e das singularidades regionais. Isso porque, ao aplicar uma súmula vinculante o magistrado deve considerar as particularidades de cada caso e as diferenças regionais presentes em um país de dimensões continentais como o Brasil.
Outra crítica a esse mecanismo se refere ao dinamismo do direito, que exige a constante revisão e atualização das súmulas vinculantes. É fundamental que a jurisprudência esteja em consonância com os novos desafios e avanços sociais, evitando que súmulas desatualizadas prejudiquem a aplicação justa do direito.
4.2 Súmulas vinculantes e o ativismo judicial: reflexões sobre efetividade e limites democráticos
O ativismo judicial refere-se ao papel ativo dos tribunais na criação e interpretação do direito, ultrapassando a mera aplicação da legislação. No contexto das Súmulas Vinculantes, o ativismo pode ser percebido quando o Supremo Tribunal Federal exerce o poder de vincular todo o Poder Judiciário e a administração pública a um determinado entendimento, mesmo diante da omissão do Legislativo ou da Constituição.
O ativismo judicial é, muitas vezes, visto como um mecanismo necessário para a proteção de direitos fundamentais e para a correção de lacunas e injustiças presentes na legislação. Entretanto, seu excesso pode suscitar questionamentos sobre a legitimidade democrática do Judiciário, visto que se atribui a uma corte não eleita o poder de definir questões de interesse público.
O debate sobre a efetividade das Súmulas Vinculantes muitas vezes se encontra em conflito com a preocupação democrática. A vinculação dos precedentes do STF a todos os órgãos do Poder Judiciário e à administração pública pode levar a uma concentração de poder nas mãos dos ministros da Corte, retirando dos órgãos democraticamente eleitos a capacidade de legislar e decidir sobre certas questões.
Enquanto as Súmulas Vinculantes podem ser necessárias para uniformizar o direito, é essencial que sejam observados limites democráticos. A revisão periódica das súmulas, a participação da sociedade em audiências públicas e o respeito à independência dos Poderes são alguns dos mecanismos que podem garantir uma maior legitimidade ao processo de vinculação dos precedentes.
Um dos desafios enfrentados pelas Súmulas Vinculantes é o equilíbrio entre o papel do legislador e o ativismo judicial. A atribuição de vinculação a precedentes deve ser realizada com parcimônia, especialmente em temas que demandam uma ampla discussão democrática. É importante que o STF respeite o papel do Congresso Nacional na elaboração das leis e esteja disposto a dialogar com o Legislativo para uma construção conjunta do direito.
5 O PODER LEGISLATIVO FACE AO SISTEMA DOS PRECEDENTES VINCULANTES
5.1 Teoria da separação dos poderes no Brasil e o sistema de checks and balances
A teoria da separação de poderes é um princípio fundamental na organização dos sistemas democráticos, incluindo o ordenamento jurídico brasileiro. Essa doutrina, elaborada por pensadores como Montesquieu, visa assegurar a eficiência do governo, a proteção dos direitos individuais e a prevenção do abuso de autoridade. No contexto brasileiro, a separação de poderes é consagrada na Constituição Federal de 1988 e é essencial para a manutenção do equilíbrio e da democracia no país.
A teoria da separação de poderes preconiza que o poder estatal deve ser dividido em três esferas independentes e harmônicas entre si: o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. Cada um desses poderes tem funções específicas e autônomas, o que evita a concentração excessiva de poder em um único órgão e, consequentemente, minimiza os riscos de autoritarismo e violações dos direitos individuais.
O Poder Executivo é responsável pela administração e execução das políticas públicas. O Presidente da República, eleito pelo voto popular, é o chefe do Poder Executivo e exerce funções de liderança, comando das Forças Armadas, promulgação de leis e representação do país. Ministros e secretários auxiliam o presidente na gestão dos diversos setores governamentais.
O Poder Legislativo é composto pelo Congresso Nacional, que é dividido em duas casas: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Sua função principal é a elaboração, discussão e votação de leis, além de fiscalizar o Poder Executivo e representar a vontade do povo. Os legisladores (deputados e senadores) são eleitos pelo voto popular.
O Poder Judiciário é incumbido de interpretar e aplicar as leis, garantindo a justiça e a equidade nas relações sociais. É composto por diversos tribunais em diferentes níveis, incluindo o Supremo Tribunal Federal (STF), que é o órgão máximo de jurisdição no Brasil. Os juízes e ministros do Judiciário são independentes e devem atuar de forma imparcial.
O sistema de Checks and Balances, ou freios e contrapesos, é uma estrutura fundamental dentro dos sistemas democráticos, projetada para evitar o acúmulo excessivo de poder em qualquer ramo do governo e assegurar um equilíbrio de autoridade. Sua origem histórica remonta à filosofia política do século XVIII, com raízes nos trabalhos de pensadores iluministas como John Locke e Montesquieu. Esse sistema desempenhou um papel crucial na evolução das democracias modernas, incluindo o Brasil, onde tem sido uma salvaguarda vital para a manutenção do Estado de Direito e da governança responsável.
Esse sistema teve suas bases estabelecidas por filósofos políticos do Iluminismo, que buscavam superar os abusos de poder e a concentração absoluta de autoridade que caracterizavam muitos governos autoritários da época. John Locke defendeu a separação de poderes para garantir a proteção dos direitos naturais dos indivíduos. No entanto, foi Charles de Montesquieu, em sua obra "O Espírito das Leis", que desenvolveu a ideia de dividir o poder governamental em ramos independentes, cada um com funções específicas, mas interconectados para evitar o despotismo.
O conceito de Checks and Balances refere-se, portanto, a um sistema no qual os poderes do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário) são projetados para limitar e controlar uns aos outros, evitando a dominação e os abusos de um único poder. Cada ramo exerce checks (verificações) sobre os outros para garantir que a autoridade seja usada de forma responsável e em conformidade com a Constituição e as leis.
Trata-se de sistema que constitui uma expressão tangível dos princípios democráticos e de governança responsável. No Brasil, é fundamental para prevenir o abuso de poder, manter a separação de autoridade entre os poderes e proteger os direitos e interesses dos cidadãos. Ao garantir que cada ramo do governo exerça um controle sobre os outros, o sistema contribui para a manutenção do equilíbrio institucional e da integridade democrática, sustentando assim os alicerces do Estado de Direito.
Como exemplo da aplicação desse sistema no ordenamento jurídico brasileiro, pode ser citado a técnica de Controle de Constitucionalidade: o Poder Judiciário, notavelmente o Supremo Tribunal Federal, tem a autoridade de avaliar a constitucionalidade das leis. Se uma lei for considerada inconstitucional, o Judiciário pode invalidá-la, exercendo um controle sobre o poder legislativo.
5.2 A interseção entre o sistema de checks and balances e o fenômeno da reação legislativa
O sistema de Checks and Balances e o fenômeno da reação legislativa são dois elementos interligados que desempenham papeis cruciais na manutenção do equilíbrio de poder em um sistema democrático. Enquanto o primeiro visa a garantir a separação e o controle mútuo entre os poderes do governo, o segundo diz respeito à capacidade do Poder Legislativo de responder de maneira ágil e responsiva às necessidades da sociedade em constante evolução. A relação entre esses dois conceitos é complexa e ilustra a dinâmica entre a estabilidade institucional e a flexibilidade necessária para atender às demandas dos cidadãos.
O sistema de freios e contrapesos é projetado para prevenir a concentração excessiva de poder em qualquer dos poderes do governo - Executivo, Legislativo e Judiciário. Essa divisão de poderes e os mecanismos de controle mútuo garantem que nenhum ramo governe de maneira absoluta e que haja um equilíbrio saudável entre eles. O sistema opera por meio de freios e contrapesos, onde cada poder exerce verificações sobre os outros para evitar abusos e garantir a conformidade com a lei e a Constituição.
A reação legislativa, por sua vez, refere-se à capacidade do Poder Legislativo de responder de forma proativa às mudanças na sociedade e às demandas emergentes por meio da criação, modificação ou revogação de leis. Esse fenômeno ocorre quando o Legislativo percebe a necessidade de atualizar o quadro legal para refletir novos desafios, valores e desenvolvimentos sociais, econômicos e tecnológicos.
O Poder Legislativo também é considerado como verdadeiro intérprete da constituição e, é justamente por essa razão, que os parlamentares podem aprovar uma lei ou uma emenda constitucional com o objetivo de superar uma interpretação anterior ou a fim de provocar uma nova manifestação do STF sobre determinada questão, ainda que a Corte já tenha decidido a matérias em termo de controle concentrado de constitucionalidade. Essa prática é reconhecida como “reação legislativa” ou “superação legislativa da jurisprudência”.
O fenômeno da reação legislativa é uma forma de ativismo congressual, que tem como objetivo principal a tentativa da casa legislativa de reverter situações de autoritarismo judicial ou de comportamento antidialógico por parte do Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de prática que encontra fundamento no próprio princípio da separação dos poderes e também no sistema de freios e contrapesos.
Esse é o posicionamento defendido pelos doutrinadores Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:
“(...) não é salutar atribuir a um único órgão qualquer a prerrogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. (...). É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo – o “direito de errar por último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em lugar da visão tradicional, que concede a última palavra nessa área ao STF.
(...)
As decisões do STF em matéria constitucional são insuscetíveis de invalidação pelas instâncias políticas. Isso, porém, não impede que seja editada uma nova lei, com conteúdo similar àquela que foi declarada inconstitucional. Essa posição pode ser derivada do próprio texto constitucional, que não estendeu ao Poder Legislativo os efeitos vinculantes das decisões proferidas pelo STF no controle de constitucionalidade (art. 102, § 2º, e art. 103-A, da Constituição). Se o fato ocorrer, é muito provável que a nova lei seja também declarada inconstitucional. Mas o resultado pode ser diferente. O STF pode e deve refletir sobre os argumentos adicionais fornecidos pelo Parlamento ou debatidos pela opinião pública para dar suporte ao novo ato normativo, e não ignorá-los, tomando a nova medida legislativa como afronta à sua autoridade. Nesse ínterim, além da possibilidade de alteração de posicionamento de alguns ministros, pode haver também a mudança na composição da Corte, com reflexões no resultado do julgamento. ”
(SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 402-405)
A relação entre o sistema de Checks and Balances e o fenômeno da reação legislativa é intrincada. O sistema de controle mútuo entre os poderes, ao mesmo tempo que limita o potencial de abuso, também pode incentivar o Poder Legislativo a ser mais sensível às demandas da sociedade. A capacidade de promulgar novas leis ou ajustar as existentes para refletir mudanças nas perspectivas sociais e nos desafios contemporâneos é uma expressão concreta da interação entre os poderes.
Quando o Poder Legislativo responde de forma ágil e eficaz a questões emergentes, ele não apenas exerce seu papel de legislar, mas também demonstra a capacidade do sistema democrático de se adaptar. A reação legislativa, nesse sentido, é uma manifestação concreta da flexibilidade inerente à democracia e à governança responsável, ao mesmo tempo em que opera dentro das estruturas de freios e contrapesos que evitam a tirania e o arbítrio.
Conclui-se, assim, que a interseção entre o sistema de Checks and Balances e o fenômeno da reação legislativa é um exemplo eloquente de como os conceitos fundamentais da democracia interagem para manter a estabilidade e a adaptabilidade em um sistema governamental. A capacidade do Poder Legislativo de reagir rapidamente às mudanças sociais e às demandas dos cidadãos é equilibrada pelo sistema de controle mútuo, garantindo que qualquer ação legislativa esteja em conformidade com os princípios democráticos e os limites constitucionais. Em última análise, essa interligação fortalece a governança democrática e a proteção dos direitos individuais.
5.3 Os precedentes judiciais e a não vinculação do poder legislativo: salvaguardas contra a fossilização do direito
No contexto da evolução do sistema jurídico, a aplicação de precedentes vinculantes pelo Poder Judiciário desempenha um papel crucial na criação de um ambiente de consistência e previsibilidade. No entanto, a não vinculação do Poder Legislativo a esses precedentes é uma medida estratégica que visa a preservar a capacidade de adaptação do direito às mudanças sociais e às necessidades emergentes. Essa dicotomia entre os poderes judiciário e legislativo reflete um equilíbrio delicado entre a estabilidade e a flexibilidade, que é essencial para evitar a fossilização do direito.
Como já exposto, os precedentes vinculantes são decisões judiciais que estabelecem uma regra ou princípio jurídico que deve ser seguido pelos tribunais inferiores em casos semelhantes. Esse mecanismo contribui para a uniformidade e a estabilidade do direito, uma vez que as partes podem antecipar como os tribunais decidirão com base em casos anteriores. Isso promove a igualdade perante a lei e ajuda a evitar resultados arbitrários.
No entanto, permitir que o Poder Legislativo não seja vinculado a esses precedentes é crucial para evitar que o direito se torne estático e incapaz de lidar com desafios em constante evolução. O Poder Legislativo representa a vontade do povo e é responsável por criar leis que refletem as mudanças sociais, os avanços tecnológicos e os novos cenários econômicos. Se o Poder Legislativo fosse vinculado a precedentes judiciais, isso poderia limitar sua capacidade de legislar de acordo com as necessidades atuais da sociedade.
A não vinculação do Poder Legislativo aos precedentes judiciais mantém o equilíbrio necessário entre a estabilidade e a flexibilidade do direito. Os tribunais podem criar precedentes que oferecem orientação, mas não limitam a capacidade do Poder Legislativo de inovar e adaptar as leis às mudanças nas circunstâncias e valores sociais. Isso é particularmente importante em sociedades dinâmicas, onde questões emergentes frequentemente exigem a criação de novas leis ou a modificação das existentes.
A fossilização do direito, ou seja, a rigidez excessiva e a incapacidade de responder às mudanças, pode ocorrer se os poderes legislativo e judiciário estivessem vinculados rigidamente a precedentes. Ao não impor a vinculação do Poder Legislativo, é possível garantir que o direito continue a evoluir para atender às necessidades contemporâneas, preservando sua relevância e adaptabilidade ao longo do tempo.
O uso de precedentes vinculantes pelo Poder Judiciário é uma ferramenta valiosa para promover a estabilidade e a previsibilidade no sistema jurídico. No entanto, é essencial manter a não vinculação do Poder Legislativo a esses precedentes como uma forma de evitar a fossilização do direito. Esse equilíbrio delicado entre estabilidade e flexibilidade é fundamental para garantir que o direito possa continuar a servir como uma ferramenta eficaz de justiça, adaptando-se às mudanças e protegendo os valores da sociedade em constante evolução.
6 A LEGITIMIDADE DA SUPERAÇÃO LEGISLATIVA DE ENTEDIMENTO FIRMADO EM SÚMULA VINCULANTE
6.1 Os efeitos jurídicos de uma tese de repercussão geral
O Supremo Tribunal Federal constitui órgão de cúpula do Poder Judiciário, competindo-lhe precipuamente, nos moldes do art. 102 da Constituição Federal, a guarda da Constituição. Dentre as diversas competências expressamente previstas pelo constituinte originário, encontra-se o julgamento do recurso extraordinário. Trata-se de recurso cabível nas seguintes hipóteses, previstas taxativamente no art. 102, inciso III da CF:
Art. 102 – [...]: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição;
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal
Percebe-se, portanto, que cabe ao STF, por meio do recurso extraordinário, decidir questões de natureza constitucional, exercendo assim o controle de constitucionalidade difuso de leis e decisões judiciais. Nessa forma de controle, a declaração de inconstitucionalidade, a princípio, gera efeitos inter partes, isto é, apenas no processo em que foi proferida.
Ocorre que, não havia como desconsiderar o fato de que, em algumas situações, essas decisões passavam a originar uma espécie de “jurisprudência dominante”, que por muitas vezes tornava-se fator de convencimento para os aplicadores do direito (juízes).
A par desse cenário, o instituto da repercussão geral foi inserido na CF/88 pela Emenda Constitucional nº 45, popularmente conhecida como a “Reforma do Judiciário”, com regulamentação dada pelo Código de Processo Civil e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Esse instrumento processual incluiu dentre os requisitos para a admissibilidade dos recursos extraordinários a necessidade de que a questão constitucional objeto da controvérsia apresente relevância jurídica, política, social ou econômica, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.
A finalidade precípua desta ferramenta é possibilitar que a Suprema Corte realize um filtro dentro os recursos extraordinários que lhe são encaminhados, selecionando, de acordo com os critérios acima indicados, apenas um para que seja representativo da controvérsia analisada. A consequência imediata desse “filtro recursal” é a diminuição do número de processos dirigidos ao STF, ensejando, em longo prazo, maior celeridade ao processamento das demandas já existentes.
A grande polêmica reside nos efeitos assumidos pelos julgados da Suprema Corte em sede de recursos extraordinários com o reconhecimento de repercussão geral. Acerca dessa controvérsia, o ministro Gilmar Mendes preconiza, em seu curso de Direito Constitucional, que ao realizar o julgamento de um recurso extraordinário, o Plenário do STF fixa tese jurídica que acaba por antecipar o posicionamento de seus julgados em sede de controle de constitucionalidade incidental. Por esse motivo, preleciona:
Se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamente, a guarda da Constituição Federal, é certo que a interpretação do texto constitucional por ele fixada deve ser acompanhada pelos demais Tribunais e Turmas dos Juizados Especiais, em decorrência do efeito definitivo outorgado à sua decisão. Pouco importa que a decisão do Tribunal de origem tenha sido proferida antes daquela do Supremo Tribunal Federal no leading case, pois, inexistindo o trânsito em julgado e estando a controvérsia constitucional submetida à análise deste Tribunal, não há qualquer óbice para aplicação do entendimento fixado pelo órgão responsável pela guarda da Constituição da República. (MENDES, 2012, p.1528)
Sobre essa questão, o procurador federal Fábio Victor Da Fonte Monnerat, em seu artigo “Efeitos objetivos do julgamento do recurso extraordinário”, publicado na revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu, posiciona-se no mesmo sentindo, defendendo que:
É possível falar-se em efeito erga omnes dado que a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca de repercussão geral de determinada questão constitucional será aplicada a todos aqueles que se encontrarem na mesma situação processual, isto é, que discutam em um determinado recurso extraordinário a mesma questão constitucional.
(...)
Portanto, ainda que a legislação não se valha da expressão ‘efeito vinculante’, o precedente do Supremo Tribunal Federal que resolve a existência da repercussão geral de determinada questão de direito é de obrigatória observância pelos demais órgãos do Poder Judiciário que enfrentem a matéria. (MONNERAT, 2014, p. 233).
O procurador cita ainda o entendimento adotado pelo processualista Luiz Guilherme Marinoni, em seu livro “Precedentes Obrigatórios”, no qual preconiza que:
[...] não há como conciliar a técnica de seleção de casos com a ausência de efeito vinculante, já que isso seria o mesmo que supor que a Suprema Corte se prestaria a selecionar questões constitucionais caracterizadas pela relevância e transcendência e, ainda assim, permitir que estas pudessem ser tratadas de modo diferente pelos diversos juízos inferiores. (MARINONI, 2010, p. 472).
Conclui-se, portanto, que em relação aos efeitos vinculantes de uma tese de repercussão geral, em que pese a ausência de previsão expressa na Constituição Federal ou em legislação infraconstitucional dispondo nesse sentido – tal como se deu com as súmulas vinculantes –, não é possível negar que um resultado muito próximo a esse acaba por ser alcançado na prática forense. Ademais, a ausência de um efeito vinculante configuraria uma afronta às atribuições constitucionais conferidas ao Supremo Tribunal Federal, vez que compete a este, por meio do instituto da repercussão geral, uniformizar a interpretação constitucional no território nacional.
6.2 O tema nº 477 julgado em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal
Trata-se de recurso extraordinário que veiculou o tema nº 477 da repercussão geral, que debatia acerca da necessidade (ou não) de revisão de enunciado de súmula vinculante em virtude da superveniência de lei de conteúdo divergente”. No contexto de uma omissão legislativa sobre o tema, o enunciado sumular foi editado em razão do volume de casos apresentados ao Poder Judiciário e da existência de precedentes dos Tribunais a respeito da possibilidade da perda dos dias remidos em razão da prática de falta grave no curso da execução penal.
Quando da publicação da súmula, firmou-se o entendimento acerca da recepção, pela ordem constitucional, da redação então vigente do art. 127 da Lei de Execuções Penal – LEP (Lei nº 7.210/1984), que assim previa: “O condenado que for punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, começando o novo período a partir da data da infração disciplinar” (Redação anterior à Lei nº 12.433/2011).
Nessa oportunidade, afastou-se a aplicação do limite temporal de 30 (trinta) dias, estabelecido pelo art. 58 da mesma lei para situação diversa, vez que esse dispositivo cuidava do tempo máximo de aplicação de sanções de isolamento, suspensão e restrição de direitos, in verbis: “O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a trinta dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado” (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 2003).
Como resultado, fixou-se o seguinte enunciado em forma de súmula vinculante: “O disposto no artigo 127 da Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) foi recebido pela ordem constitucional vigente, e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58”.
Posteriormente, o Congresso Nacional editou a Lei nº 12.433, no ano de 2011, que modificou a Lei de Execução Penal, passando a dispor a respeito da remição de parte do tempo de execução da pena por estudo ou por trabalho de modo diferente. A referida lei alterou a redação do art. 127 dessa Lei – ao qual a Súmula Vinculante nº 9 já fazia menção –, fixando o limite objetivo de 1/3 (um terço) para a perda dos dias remidos, em caso de falta grave. Veja-se a diferença entre a redação anterior e atual do indicado dispositivo legal, verbis:
Redação da LEP anterior à Lei nº 12.433/2011: “Art. 127. O condenado que for punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, começando o novo período a partir da data da infração disciplinar. ”
(...)
Redação atual: “Art. 127. Em caso de falta grave, o juiz poderá revogar até 1/3 (um terço) do tempo remido, observado o disposto no art. 57, recomeçando a contagem a partir da data da infração disciplinar. ”
A partir de então, emerge a controvérsia que foi discutida no presente tema de repercussão geral, no que diz respeito aos limites e possibilidades da aplicação de Súmula Vinculante, quando há superveniente norma legal que modifique, complemente ou mesmo contrarie seu enunciado.
6.3 As consequências da revogação ou modificação do ato normativo que fundamentou a edição da súmula vinculante
No ordenamento jurídico, a criação de súmulas vinculantes pelo Supremo Tribunal Federal é uma ferramenta valiosa para promover a uniformidade e a previsibilidade das decisões judiciais. No entanto, quando o ato normativo que fundamentou uma súmula é revogado ou alterado, emerge uma discussão crucial sobre a necessidade de se revogar ou cancelar essa súmula. Esse foi dilema enfrentado no Tema de nº 477, de repercussão geral, julgado pelo STF. A questão envolve um delicado equilíbrio entre a estabilidade do direito e a adaptação às mudanças normativas e sociais.
Conforme já abordado anteriormente, as súmulas vinculantes têm o propósito de estabelecer regras que devem ser seguidas por todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública de todos os entes políticos. Elas buscam garantir a uniformidade na aplicação do direito e prevenir decisões discrepantes sobre questões semelhantes. Contudo, as súmulas vinculantes não devem ser imutáveis e inflexíveis, uma vez que o contexto normativo e social pode se alterar ao longo do tempo.
Nada obsta, portanto, que o Congresso Nacional edite uma lei em sentido contrário a uma súmula vinculante. Isso porque, o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não fica vinculado aos efeitos da decisão do STF. Como já apontado anteriormente, essa impossibilidade tem como finalidade evitar a fossilização da Constituição.
O Poder Legislativo também interpreta a Constituição. Apesar do Supremo Tribunal Federal possuir, segundo a CF/88, a missão de proteger a Constituição Federal e dar a última palavra em termos da sua interpretação, isso não significa, contudo, que o legislador não tenha também a capacidade de interpretação do Texto Constitucional.
Pode-se, então, afirmar que a função de última instância decisória e o papel de órgão soberano sobre a interpretação constitucional não foram conferidos constitucionalmente ao Supremo Tribunal Federal de forma isolada e absoluta. Em um ambiente democrático, não se deve atribuir a qualquer órgão, seja do Poder Judiciário, seja do Poder Legislativo, a faculdade de pronunciar a última palavra sobre o sentido da Constituição.
Nesse sentido, pode-se apresentar trecho do voto do Ministro Luiz Fux, no julgamento da ADI 5105 DF, com algumas conclusões da Corte Superior Brasileira sobre o tema:
a) O STF não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário. Em outras palavras, o STF não proíbe que o Poder Legislativo edite leis ou emendas constitucionais em sentido contrário ao que a Corte já decidiu. Não existe uma vedação prévia a tais atos normativos. O legislador pode, por emenda constitucional ou lei ordinária, superar a jurisprudência. Trata-se de uma reação legislativa à decisão da Corte Constitucional com o objetivo de reversão jurisprudencial.
b) No caso de reversão jurisprudencial (reação legislativa) proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas restritas hipóteses de violação aos limites previstos no art. 60, e seus §§, da CF/88. Em suma, se o Congresso editar uma emenda constitucional buscando alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender uma cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas.
c) No caso de reversão jurisprudencial proposta por lei ordinária, a lei que frontalmente colidir com a jurisprudência do STF nasce com presunção relativa de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima.
(...)
A novel legislação que frontalmente colida com a jurisprudência (leis in your face) se submete a um controle de constitucionalidade mais rigoroso. Para ser considerada válida, o Congresso Nacional deverá comprovar que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou a decisão do STF no passado não mais subsistem. O Poder Legislativo promoverá verdadeira hipótese de mutação constitucional pela via legislativa. Vale ressaltar, no entanto, que excetuadas as situações de ofensa evidente ao texto constitucional, o STF deve adotar comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opções políticas do legislador.
STF. Plenário. ADI 5105/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 1º/10/2015 (Info 801).
A interpretação constitucional deve perpassar por um processo de construção dialógica entre os Poderes estatais — Legislativo, Executivo e Judiciário — e os diversos segmentos da sociedade civil organizada. Isso fará com que se promova um avanço e um aperfeiçoamento de soluções democráticas para as questões de interesse público.
A ideia de limitação do poder, inerente aos sistemas de separação de poderes e de freios e contrapesos, trabalha em favor de uma pluralização dos intérpretes, e não de um monopólio, concretizando a ideia de sociedade aberta aos intérpretes da constituição, defendida por Peter Häberle. Segundo o jurista, defensor dessa tese:
“(...) No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado numerus clausus de intérpretes da Constituição. (...) quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por cointerpretá-la.” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta aos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 13).
Na redação do art. 103-A da CF/88, o legislador constituinte não incluiu o Poder Legislativo no rol de órgãos sujeitos aos efeitos vinculantes da súmula vinculante. Isso porque, conforme já explicado, tal vinculação poderia engessar o processo de interpretação constitucional. Diante desse contexto, o Poder Legislativo possui a prerrogativa de superar entendimentos vinculantes firmados pelo STF, mas, a depender do instrumento normativo adotado pelo Congresso Nacional, o caso concreto pode demandar posturas distintas por parte do STF.
O art. 5º da Lei 11.417/2006, que regulamentou o art. 103-A da CF/88, ofereceu solução para as hipóteses em que haja modificação ou revogação do diploma legislativo em que a edição da Súmula Vinculante tenha se fundado, estabelecendo que “revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso”.
O problema, em verdade, reside nas situações em que o legislador, em tese, ultrapassa seu espaço de liberdade e acaba por ferir sensivelmente a própria Constituição. Nessas hipóteses, por exemplo, como decorrência da própria noção dialógica já mencionada, abre-se a prerrogativa ao Judiciário de se debruçar sobre a questão novamente, havendo manifesta dúvida sobre a constitucionalidade da medida legislativa adotada. Como bem aponta Gustavo Gama Vital de Oliveira:
“(...) fato de a CRFB/1988 não estender ao Poder Legislativo o efeito vinculante das decisões proferidas nas ações de controle concentrado e na hipótese da súmula vinculante (art. 102, §1º; 2º; e art. 103-A) não pode conduzir o legislador a utilizar de forma abusiva a prerrogativa de editar leis infraconstitucionais que busquem modificar a interpretação constitucional do STF.” (OLIVEIRA, Gustavo Gama Vital de. Direito Tributário e Diálogo Constitucional. Niterói: Impetus, 2013, p. 138).
Assim, supondo-se que o STF edite uma súmula vinculante baseado na interpretação de determinado ato normativo primário, se o Congresso Nacional revogar essa lei ou alterá-la, diante desse fato, será necessária a revisão ou o mesmo o cancelamento da súmula vinculante que havia sido editada. Esse foi o entendimento firmado pelo STF no tema 477, julgado em sede de repercussão geral:
Em regra, deve-se revisar ou cancelar enunciado de súmula vinculante quando ocorrer a revogação ou a alteração da legislação que lhe serviu de fundamento. Contudo, o STF pode concluir, com base nas circunstâncias do caso concreto, pela desnecessidade de tais medidas. STF. Plenário. RE 1.116.485/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 01/03/2023 (Repercussão Geral – Tema 477) (Info 1084).
O exemplo do Tema 477 ilustra a necessidade de reavaliação das súmulas vinculantes quando o ato normativo que lhes serviu de fundamento é revogado ou alterado. A revogação ou alteração de normas subjacentes pode impactar a base argumentativa das súmulas, tornando-as desatualizadas ou incompatíveis com a nova legislação. Essa situação pode gerar insegurança jurídica e desafios na aplicação da jurisprudência.
Encontrar o equilíbrio entre a estabilidade proporcionada pelas súmulas vinculantes e a necessidade de adaptação às mudanças é fundamental. Quando o fundamento normativo de uma súmula é revogado ou alterado, é pertinente que o Poder Judiciário reavalie sua validade à luz da nova legislação e do contexto jurídico. A manutenção de súmulas vinculantes inconsistentes com as mudanças normativas pode prejudicar a confiança no sistema judiciário e a eficácia da jurisprudência.
O caso do Tema 477 do STF demonstra a importância de se rever súmulas vinculantes quando o ato normativo que as embasa é modificado. A revogação ou alteração normativa pode comprometer a coerência e a aplicabilidade das súmulas, requerendo uma abordagem que mantenha o equilíbrio entre a estabilidade e a adaptação. A jurisprudência deve ser uma ferramenta dinâmica, capaz de evoluir conforme o desenvolvimento normativo e social, assegurando, assim, a justiça, a previsibilidade e a confiança no sistema judiciário.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho teve como objetivo analisar a tese nº 477, julgada em sede de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse diapasão, sob a égide da complexa estrutura de checks and balances firmada pela Constituição de 1988, o ponto central dessa pesquisa é o seguinte: em que medida é legítima a superação legislativa de entendimento firmado em Súmula Vinculante?
O sistema de precedentes vinculantes é uma estrutura essencial para a uniformização da jurisprudência e a estabilidade do direito em sistemas jurídicos. No entanto, a dinâmica complexa do direito e a constante evolução da sociedade muitas vezes requerem flexibilidade para acomodar mudanças emergentes. Nesse contexto, o fenômeno da reação legislativa se destaca como uma exceção ao sistema de precedentes vinculantes, permitindo que o Poder Legislativo responda de maneira ágil às demandas sociais e legisle de forma a adaptar o direito às novas realidades.
Os precedentes vinculantes são criados por tribunais superiores e estabelecem uma orientação obrigatória para casos futuros semelhantes. Esse sistema promove a estabilidade e a previsibilidade, garantindo que decisões judiciais sejam coerentes e uniformes. No entanto, a rigidez excessiva dos precedentes vinculantes pode limitar a capacidade de resposta do sistema jurídico às mudanças na sociedade, na tecnologia e nas normas emergentes.
Nesse contexto, as Súmulas Vinculantes surgem como um instrumento de efetividade e segurança jurídica, buscando uniformizar o entendimento dos tribunais e conferir maior celeridade na resolução de questões repetitivas. Ressalta-se, entretanto, a necessidade de não ocorrer a vinculação do Poder Legislativo a esses precedentes como uma forma de evitar a fossilização do direito. Esse equilíbrio delicado entre estabilidade e flexibilidade é fundamental para garantir que o direito possa continuar a servir como uma ferramenta eficaz de justiça, adaptando-se às mudanças e protegendo os valores da sociedade em constante evolução.
Por essa razão, a reação legislativa ocorre quando o Poder Legislativo responde a decisões judiciais ou a eventos específicos por meio da criação ou modificação de leis. Esse fenômeno permite ao Legislativo agir de forma rápida e adaptável, suprimindo ou complementando precedentes judiciais que possam não ser mais adequados em face de novos cenários. A reação legislativa pode ocorrer em questões controversas ou quando a sociedade expressa a necessidade de regulamentação mais clara ou alterações legais.
A reação legislativa é uma exceção necessária ao sistema de precedentes vinculantes. Ela reconhece que, apesar da importância da estabilidade e da consistência jurídica, é igualmente crucial permitir que o Poder Legislativo ajuste as leis para refletir mudanças sociais, valores mutáveis e desenvolvimentos tecnológicos. A sociedade é dinâmica e as necessidades evoluem com o tempo; portanto, a rigidez dos precedentes pode não ser suficiente para lidar com todas as situações.
O equilíbrio entre precedentes vinculantes e reação legislativa é uma dança delicada entre a estabilidade e a flexibilidade. O sistema jurídico precisa manter uma base sólida de jurisprudência estável, mas também deve estar aberto a ajustes legislativos quando as circunstâncias exigirem. A reação legislativa permite que as leis se adaptem a uma sociedade em constante mudança, ao mesmo tempo em que os precedentes vinculantes estabelecem parâmetros claros para a tomada de decisões judiciais.
O fenômeno da reação legislativa oferece uma válvula de escape crucial para a rigidez do sistema de precedentes vinculantes. Essa exceção reconhece que o direito deve ser adaptável, capaz de acomodar transformações na sociedade e avanços normativos. Mantendo um equilíbrio sensato entre a estabilidade e a flexibilidade, a interação entre os precedentes vinculantes e a reação legislativa assegura que o sistema jurídico seja uma ferramenta dinâmica para alcançar a justiça, ao mesmo tempo que se adapta às complexidades do mundo em constante evolução.
Esse foi o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal do julgamento do Tema 477, em sede de repercussão geral. Ao estabelecer que, como regra, deve-se revisar ou cancelar enunciado de súmula vinculante quando ocorrer a revogação ou a alteração da legislação que lhe serviu de fundamento, a Corte firmou seu posicionamento pela legitimidade do Poder Legislativo de superar um entendimento firmado em sede de precedente vinculante.
De todo o exposto, extrai-se, portanto, a conclusão de que, em um ambiente democrático, é prudente que não se atribua a qualquer órgão, seja do Poder Judiciário, seja do Poder Legislativo, a faculdade de pronunciar, em solução de definitividade, a última palavra sobre o sentido da Constituição, tanto em razão de uma perspectiva eminentemente político-democrática, quanto por uma visão calcada em considerações de ordem, essencialmente, institucional. Dessa maneira, torna-se imperioso ao Judiciário reconhecer que, em razão do princípio da separação dos poderes e do democrático sistema dos checks and balances, os outros atores políticos institucionais possuem um papel igualmente legítimo e relevante na construção dos significados constitucionais.
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo / José Afonso da Silva. 42ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2019.
[1] Stare decisis et non quieta movere – termo completo – significa “mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido” (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente Judicial como Fonte do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004).
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário Internacional UNINTER.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Marisa Bezerra Cortes. A legitimidade da superação legislativa em relação a entendimento firmado em súmula vinculante. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2023, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63998/a-legitimidade-da-superao-legislativa-em-relao-a-entendimento-firmado-em-smula-vinculante. Acesso em: 22 nov 2024.
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