RESUMO: O trabalho visa analisar as repercussões jurídicas acerca da economia do cuidado, com destaque para o reconhecimento da remição de pena no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e para os reflexos do trabalho de cuidado nas ações de direito de família, em especial, nas pensões alimentícias, reconhecida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
Palavras-chave: Economia do cuidado. Trabalho não remunerado. Divisão sexual do trabalho. Remição da pena. Pensão alimentícia.
ABSTRACT: The work aims to analyze the legal repercussions on the care economy, with emphasis on the recognition of sentence remission in the Court of Justice of the State of São Paulo and the consequences of care work in family law actions, especially in alimony.
KEYWORDS: Care economy. Unpaid work. Sexual division of labor. Remission. Alimony.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Economia do cuidado e a divisão sexual do trabalho. 3. Relevância jurídica da economia do cuidado. 4. Conclusão. 5. Referências.
1.INTRODUÇÃO
Segundo Nancy Fraser, a economia do cuidado engloba a disponibilidade de dar à luz e criar filhos, cuidados de amigos e familiares, manter lares e comunidades mais amplas e sustentar conexões. Historicamente, trata-se de trabalho de reprodução social associado às mulheres e sem remuneração, mas que repercute em toda a estrutura social e viabiliza o fomento à cultura, à economia e a organização política. (PATERNOSTRO BUENO DA SILVA, 2018).
Trata-se de trabalho que engloba o trabalho doméstico, como o cuidado do lar, mas é mais amplo, porque também envolve a gestão das demandas da família, em especial, os cuidados de crianças, adolescentes e pessoas idosas.
Assim, a divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres no tocante à economia do cuidado vem sendo debatida como tese jurídica a fim de remir a pena de mulheres presas e também para analisar a proporcionalidade da pensão alimentícia.
A operacionalização da economia do cuidado visa cumprir com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, previsto na Resolução n. 492/2023 do CNJ e o princípio da dignidade humana, da não discriminação e da igualdade entre homens e mulheres, conforme previsão dos arts. 1º, III, 3º, IV e 5º, I, da Constituição Federal de 1988.
Em âmbito internacional, há respaldo na Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), na Convenção de Belém do Pará e na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
Também é de suma importância o debate constante nas Recomendações nº 23 e 33 do Comitê da CEDAW, na Agenda 2030 e na solicitação de Opinião Consultiva à Corte IDH pela Argentina sobre a abrangência do direito ao cuidado.
Assim, há reconhecimento da tese em importantes decisões dos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo e do Paraná e há um amplo escopo jurídico para ampliar e enriquecer o debate sobre a aplicação da economia do cuidado em âmbito jurídico.
2. ECONOMIA DO CUIDADO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Segundo o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, previsto na Resolução n. 492/2023 do CNJ, o menor valor atribuído ao trabalho do cuidado vem da associação ao que é culturalmente “feminino”, fruto de uma relação de poder entre gêneros, calcadas em hierarquias estruturais.
Há um importante recorte de raça e classe sobre a temática, pois mulheres brancas muitas vezes delegam o trabalho do cuidado a mulheres geralmente negras e pobres. Porém, de todo modo, remunerado ou não, é um trabalho desvalorizado e invisibilizado.
Historicamente, na sociedade capitalista, atribuiu-se aos homens o trabalho produtivo, que se dá na esfera pública, é remunerado, tem reconhecido valor social e por meio do qual se obtém renda suficiente para corresponder ao papel do gênero masculino de provedor. Paralelamente, atribuiu-se e naturalizou-se o ideário patriarcal de ser a mulher a responsável, única ou prioritariamente, pelo trabalho reprodutivo, ou de cuidado (remunerado e não remunerado), isto é, o trabalho de manutenção da vida e de reprodução da sociedade. O trabalho de cuidado tem dupla dimensão. Na esfera do espaço privado doméstico, pode ser realizado de forma gratuita ou remunerada, neste último caso, por profissionais como empregadas domésticas, babás, cuidadoras e diaristas. Também o trabalho de cuidado se realiza na esfera externa ao ambiente privado, por meio de profissionais de saúde, limpeza, assistência social, educação e alimentação. Encontra-se aqui uma marcada diferença entre mulheres de diferentes raças e classes no Brasil: muitas vezes mulheres brancas, de classes mais altas, têm a possibilidade de transferir o trabalho doméstico para outras mulheres – que muitas vezes atuam na informalidade ou recebendo salários baixos. (CNJ, 2021).
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2022, as mulheres destinaram 9,6 horas a mais por semana do que os homens à economia do cuidado, mesmo quando os dois têm trabalhos remunerados.
Para Nancy Fraser, o trabalho remunerado e considerado produtivo, em um viés capitalista, não poderia existir sem o trabalho doméstico, a criação de filhos, a educação escolar, o cuidado afetivo e demais atividades associadas às mulheres no exercício do cuidado não remunerado.
3. RELEVÂNCIA JURÍDICA DA ECONOMIA DO CUIDADO
A 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná deu provimento ao recurso de Agravo de Instrumento nº 0013506-22.2023.8.16.0000, em 29 de setembro de 2023 e aumentou o valor de alimentos provisórios, considerando a proporcionalidade dos alimentos e o trabalho doméstico e de cuidado diário e não remunerado exercido pela mulher.
A decisão levou em consideração o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ e o princípio constitucional da parentalidade responsável (art. 226, §7º, da Constituição Federal). Também considerou a sobrecarga da mulher nos cuidados com os filhos em idade infantil e nas atividades domésticas, o que obsta oportunidades de trabalho e de acesso à cultura, descanso e lazer.
Trata-se de importante decisão que operacionalizou a economia do cuidado e a divisão sexual do trabalho para concretizar a igualdade entre homens e mulheres e que pode servir de exemplo para os mais diversos ramos do direito, em especial, nas demandas de direito de família.
Outra importante decisão foi a exarada pela 12ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no Agravo Em Execução 00000513-77.2024.8.26.0502. Na oportunidade, o TJSP concedeu remição de pena pelo trabalho do cuidado exercido por mulher presa, em razão da amamentação de seu filho, com aplicação do art. 126, parágrafo 1º, inciso II, da Lei 7.210/1984.
O TJSP entendeu que a remição, no caso, visa tutelar, ao mesmo tempo, direito da mãe e da criança, com destaque para a Lei 13.257/2006, que dispõe sobre a política para o melhor interesse das crianças nos primeiros seis anos de vida e para o art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988, que garantiu às presidiárias condições para permanecerem com seus filhos durante o período de amamentação.
Ora, se há então uma economia do cuidado é porque, na sua base, certamente subsiste um trabalho do cuidado. Afinal, não se forma economia alguma sem um trabalho de alguém que sustente essa economia. Ou, ainda, não existe economia sem o trabalho conjunto de muitas pessoas que façam e construam essa dada economia. (TJSP, 2024).
Para ampliar o debate, entre as normativas pertinentes, cabe ressaltar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, previsto na Resolução n. 492/2023 do CNJ e o princípio da dignidade humana, da não discriminação e da igualdade entre homens e mulheres, conforme previsão dos arts. 1º, III, 3º, IV e 5º, I, da Constituição Federal de 1988.
Já em âmbito internacional, o tema encontra respaldo, de forma mais ampla, nos arts. 2º, b-g, 3º, 5º, a e b e 11.1.d da Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), arts. 1º e 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e nos arts. 8º, c e g da Convenção de Belém do Pará, pois endossam a eliminação das desigualdades entre homens e mulheres.
A Recomendação nº 23 do Comitê da CEDAW traz importantes reflexões sobre o trabalho doméstico, como a adoção de um quadro regulamentar legislativo para proteger direitos dos trabalhadores domésticos, em particular, mulheres afro-descendentes e a adoção de medidas adequadas para assegurar a igualdade efetiva para mulheres trabalhadoras domésticas.
A Recomendação nº 23 do Comitê da CEDAW, por sua vez, reflete sobre a necessidade de consideração das atividades domésticas e de cuidados não remuneradas, nas avaliações de danos, a fim de determinar a compensação apropriada pelo dano, em todos os procedimentos civis, criminais, administrativos ou de outro tipo.
Na Agenda 2030, o Objetivo 5.4 prevê a necessidade de reconhecimento e valorização do trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais.
No tocante à competência consultiva da Corte Interamericana, merece destaque a solicitação da Argentina à Corte, objetivando que seja determinado o alcance do cuidado como direito humano e as respectivas obrigações estatais.
4. CONCLUSÃO
Observa-se que há um amplo arcabouço jurídico nacional, internacional e incipiente, mas relevante jurisprudência sobre a temática, que deve ser instrumentalizada pelos operadores do sistema de justiça para garantir equidade de gênero e a emancipação da mulher na sociedade.
A operacionalização da economia do cuidado pelo sistema de justiça visa uma construção de uma sociedade livre, justa e igualitária de maneira real e efetiva, com a erradicação da desigualdade de gênero.
O presente artigo buscou, portanto, refletir sobre o êxito da tese junto aos Tribunais de Justiça do Estado de São Paulo e do Paraná e resgatar aparato jurídico para endossar a tese, que encontra amplo respaldo na normativa nacional e internacional.
5. REFERÊNCIAS
CNJ (2021). Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2024.
CNJ (2021). Estabelece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Judiciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original144414202303206418713e177b3.pdf. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
Tribunal do Paraná valorou o trabalho invisível da mulher na fixação da pensão alimentícia para os filhos. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/tribunal-do-parana-valorou-o-trabalho-invisivel-da-mulher-na-fixacao-da-pensao-alimenticia-para-os-filhos/2103513480. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
Paternostro Bueno da Silva, E. (2018). Repensando a redistribuição: Nancy Fraser e a Economia Política. Civitas: Revista De Ciências Sociais, 18(3), 563–579. Disponível em: https://doi.org/10.15448/1984-7289.2018.3.29834. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
TJSP (2024). 12ª Câmara Criminal do TJ-SP. Agravo Em Execução 00000513-77.2024.8.26.0502, Rel. Min. Sérgio Mazina Martins, julgado em: 22 de abril de 2024. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/PrimeiraInfancia/Jurisprudencias/0000513-77.2024.8.26.0502.pdf. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
BRASIL (1988). Constituição Federal da República, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
BRASIL (2015). Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
CEDAW (2012). Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Recomendação Geral n. 23 Observações Finais do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Pdf/Comesp/Convencoes/ConvencaoONUSessao51.pdf. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
CEDAW (2015). Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres. Recomendação Geral n. 33 sobre o acesso das mulheres à justiça. Disponível em: https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-CEDAW.pdf Acesso em: 05 de setembro de 2024.
ONU (2015). Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/5. Acesso em: 05 de setembro de 2024.
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graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Advogada .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Lívia Batista Sales. Repercussões jurídicas da economia do cuidado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 set 2024, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66414/repercusses-jurdicas-da-economia-do-cuidado. Acesso em: 26 dez 2024.
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