O controle de convencionalidade foi trazido ao Brasil pela publicação da tese de doutoramento de Valério Mazzuoli, apresentada na UFRGS em 2008. Em dezembro do mesmo ano, o STF julgou o RE 466.343/SP, contrariando a referida tese ao atribuir status supralegal e infraconstitucional aos tratados de direitos humanos. Ao tempo do julgamento já vigia a EC 45/2004, que incluiu o §3º ao art. 5º da CF.
O caso em comento versava sobre um recurso de um banco que almejava manter a prisão civil de depositário infiel em contratos de alienação fiduciária. O STF entendeu que essa previsão do Código Civil e de leis especiais afrontava a Convenção Americana de Direitos Humanos. De quebra, também proibiu a prisão do depositário infiel em casos de execuções judiciais, permitindo-a apenas em caso de inadimplemento de prestação alimentícia.
Neste precedente, a corte buscou fortalecer suas atribuições, constando no voto condutor do Min. Gilmar Mendes a necessidade de o STF reforçar sua competência para exercer o controle da regularidade formal e do conteúdo material dos diplomas internacionais em face da Constituição Federal, dado o permanente risco de “normatizações camufladas” (dos direitos humanos) em nível internacional. O voto também citou o embate entre as correntes monista de Kelsen (Teoria Geral do Direito e do Estado) e dualista de Karl Heinrich Triepel (As relações entre o Direito Interno e o Direito Internacional), mas o considerou de pouca utilidade para o sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Essa busca por realçar a competência da corte foi a pedra de toque que levou ao atual quadro da pirâmide normativa no direito pátrio. Apesar de o julgamento do RE 466.343 ser considerado paradigmático na incorporação do controle de convencionalidade no Brasil, tratou-se, em verdade, de controle de supralegalidade. De fato, na visão de Mazzuoli, todos os tratados de direitos humanos em vigor no Brasil teriam status de norma constitucional, posição que foi refutada pelo STF, que assim considera apenas os tratados internalizados pelo rito das emendas constitucionais previsto no art. 5º, §3º, da CF. Atualmente, compõem este bloco quatro tratados: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, seu protocolo facultativo, a Convenção de Marraqueche para obras em libras e a Convenção Interamericana contra o Racismo.
A partir deste julgado da Suprema Corte, amadureceu a ideia do controle difuso de convencionalidade, que se estenderia a todos os juízes e tribunais do país. Para Mazzuoli, todos os tratados de direitos humanos em vigor no país poderiam ser objeto tanto do controle de convencionalidade difuso quanto concentrado. Mas prevaleceu o entendimento de que apenas os quatro tratados acima podem ser objeto de controle de convencionalidade concentrado, por terem status constitucional. Este controle pode ser manejado pelas ações de controle de constitucionalidade, como ADI, ADC e ADPF. A doutrina diverge quanto ao cabimento do controle de convencionalidade concentrado em ADO, apesar de ser hipoteticamente viável.
Diante deste cenário, é possível inferir que o controle de convencionalidade realizado no RE 466.343 foi difuso, tendo como parâmetro de controle a Convenção Americana de Direitos Humanos, com status supralegal. A bem da verdade, o controle exercido foi de supralegalidade, já que na visão do STF o controle de convencionalidade se limita aos tratados com status constitucional, cuja primeira incorporação se deu apenas no ano seguinte ao julgamento.
O controle difuso de supralegalidade equivale à derrogação do dispositivo da lei interna, por meio do critério hierárquico, com efeitos inter partes. Já no controle concentrado de convencionalidade, nomeado pela corte de “constitucionalidade e convencionalidade”, há uma declaração abstrata com efeitos vinculantes erga omnes. Neste último caso, a Convenção revoga a lei interna, tal como uma emenda constitucional o faria.
Apesar de terem transcorrido vários anos desde a consagração do controle de supralegalidade/convencionalidade no âmbito do STF, com extensão à modalidade difusa pelos demais juízes e tribunais do país, o fato é que referido controle já nasceu morto, tido por muitos como um instituto superado.
De fato, diversos levantamentos mostraram uma cultura jurisdicional contrária à utilização dos tratados internacionais mais essenciais de direitos humanos. Ainda em 2004, antes da EC 45, o estudo “Direitos Humanos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: concepção, aplicação e formação” já havia constatado que mais de 70% dos juízes do Estado do Rio de Janeiro não utilizavam a convenção da ONU contra a tortur.
Contudo, quinze anos após o julgamento do RE 466.343, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução 123/2022. Em seus considerando, a norma afirma que a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que os órgãos judiciais internos do Estados devem proceder ao controle difuso de convencionalidade. O art. 1º, inciso I, da referida resolução também estipula a observância das convenções de direitos humanos em vigor no Brasil e da jurisprudência da CIDH, destacando ao final a necessidade de os juízes e tribunais procederem ao controle de convencionalidade das leis internas. Em fevereiro do ano seguinte, foi a vez do CNMP aprovar a Recomendação 96/2023, constando no art. 3°, I, a promoção do controle de convencionalidade, respeitada a independência funcional. Como novidade, a recomendação incluiu os provimentos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Por fim, em março de 2024 foi firmado o acordo de cooperação técnica n° 93/2024 entre o CNMP e o CNJ buscando sedimentar no Judiciário e Ministério Público a prática do controle de convencionalidade difuso, leia-se controle de supralegalidade.
É fato que o controle de convencionalidade se arrasta há anos sem nenhuma efetividade. As quatro convenções com status constitucional pouco efeito tiveram no ordenamento interno. A própria disposição incluída pela EC 45/2004 no art. 5º, §3º, da CF não trouxe nenhum progresso mensurável no direito pátrio em mais de duas décadas de vigência. A disposição mais antiga, esculpida no art. 5º, §2º, da CF, em vigor desde 1988, já fundamentava o controle de convencionalidade difuso, tendo como parâmetro os tratados internacionais, com aplicação apenas pontual em casos isolados. Contudo, dada a tentativa recente de sobrevida ao instituto, impende definirmos suas principais características.
O controle de convencionalidade é a verificação de conformidade de atos internos (comissivos ou omissivos) em face de normas internacionais. Pode ter efeito negativo, ao invalidar normas e decisões nacionais contrárias às normas internacionais, chamado “controle destrutivo ou saneador de convencionalidade”; ou efeito positivo, para interpretar normas nacionais de forma a harmonizá-las às internacionais, chamado “controle construtivo de convencionalidade”.
Como visto, esse controle pode ser exercido nas formas difusa ou concentrada. Segundo Mazzuoli, todos os tratados de direitos humanos possuem status constitucional, por força do art. 5º, § 2º, da CF. Contudo, o STF limitou o status constitucional aos tratados de direitos humanos incorporados segundo o rito do §3º. Logo, para o Supremo Tribunal Federal, o controle de convencionalidade concentrado é de sua exclusiva competência, tendo como paradigma apenas os tratados com status constitucional.
Noutro giro, o controle de convencionalidade difuso pode ser exercido por qualquer juiz ou tribunal, e tem como paradigmas tanto os tratados de direitos humanos com status supralegal quanto os tratados com status constitucional. O controle de convencionalidade não se aplica aos tratados com status de lei ordinária.
São espécies do controle de convencionalidade, segundo André de Carvalho Ramos, o controle de convencionalidade de matriz internacional e o controle de convencionalidade de matriz nacional. O primeiro é realizado por órgãos internacionais, compostos por juízes independentes e criados por tratados internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso o Estado seja réu em processos internacionais de direitos humanos, o controle será compulsório, pois deverá dar cumprimento à decisão, o que vincula os órgãos do Poder Judiciário.
O controle de convencionalidade de matriz nacional, por sua vez, é a análise de compatibilidade das normas internas em relação às normas internacionais realizada por juízes internos. Pode ser realizado pelas autoridades administrativas, pelos membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e pelo Poder Legislativo, na sua modalidade não jurisdicional.
O parâmetro do controle de convencionalidade é um tratado internacional. No controle de matriz internacional, o objeto é toda norma interna, inclusive as oriundas do Poder Constituinte Originário, enquanto que, no de matriz nacional, são excluídas as normas constitucionais originárias, uma vez que a validade destas não poderá ser fiscalizada nem mesmo pelo Supremo Tribunal Federal, segundo precedente na ADI 815. Como exemplo, o STF entendeu que a norma constitucional originária que torna inelegíveis os analfabetos, prevista no art. 14, §4º, da CF não é sindicável em controle de constitucionalidade, por impossibilidade jurídica do pedido.
Referida norma também é infensa ao controle de convencionalidade interno, seja concentrado ou difuso. Já no âmbito do controle na CIDH, a norma pode ser declarada inconvencional, já que a constituição do país é tida como mero fato.
Por sua vez, o art. 14, §§ 12 e 13, da CF são normas constitucionais derivadas, incluídas pela EC 111/2021, podendo ser objeto do controle de convencionalidade interno, tendo como paradigma tratados com status constitucional. De outro giro, o art. 23, item 2, parte final, da Convenção Americana de Direitos Humanos, com status supralegal, dispõe que a limitação aos direitos políticos pode advir de condenação por juiz competente, exclusivamente em processo penal. Assim, a Lei Complementar nº 135/2010 pode ser objeto de controle de convencionalidade difuso, já que veda candidaturas de condenados por órgão jurisdicional colegiado em processos de natureza cível, como improbidade administrativa.
Em suma, para o controle de convencionalidade nacional, a hierarquia do tratado-parâmetro de direitos humanos depende do direito interno, que pode atribuir caráter supralegal ou constitucional. Para o controle internacional, o tratado de direitos humanos sempre terá hierarquia superior ao ordenamento nacional, a abranger também as normas constitucionais originárias.
No que diz respeito à interpretação, deve ser evitado o controle de convencionalidade nacional – jurisdicional ou não – que não dialogue com a interpretação internacionalista dos direitos humanos, o que importa negação à universalidade dos direitos humanos e desrespeito ao comando dos tratados celebrados, em especial, quanto às interpretações fornecidas pelos órgãos internacionais cuja jurisdição o Brasil reconheceu.
Essa necessidade de compatibilização entre as duas espécies de controle de convencionalidade corresponde ao “diálogo das cortes”, que deve ser realizado internamente para evitar violações aos direitos humanos por interpretação nacional inadequada de tratados. São parâmetros a serem considerados para esse diálogo: a menção à existência de dispositivos (convencionais ou extraconvencionais) vinculantes ao Brasil sobre o tema; menção à existência de caso internacional contra o Brasil sobre o objeto da lide e suas consequências reconhecidas pelo Tribunal; menção à jurisprudência anterior sobre o objeto da lide de órgãos internacionais de direitos humanos aptos a emitir decisões vinculantes ao Brasil; e o peso dado aos dispositivos de direitos humanos e à jurisprudência internacional.
Caso esse diálogo inexista ou seja insuficiente, aplica-se a “teoria do duplo controle de direitos humanos”, que reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade nacional (pelo STF e demais órgãos do poder judiciário) e do controle de convencionalidade internacional (órgãos de direitos humanos no plano internacional). Assim, qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois controles, configurando dupla garantia aos direitos humanos no Brasil.
O controle de convencionalidade foi especialmente debatido no que diz respeito à conformidade do art. 331 do CP (crime de desacato) com a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu art. 13. Assentou-se na 3ª Seção do STJ e na 2ª Turma do STF que o crime de desacato é compatível com a CADH, uma vez que, dentre outros argumentos, a liberdade de expressão não é um direito absoluto e o desacato não tolhe o direito à livre manifestação, que deve ser exercida nos limites de marcos civilizatórios bem definidos, com a punição dos excessos.
Traçado o panorama acima, resta saber se a lacônica Resolução 123/2022 do CNJ irá impulsionar o controle de convencionalidade, em especial no âmbito difuso. Isso porque no âmbito concentrado esse controle já é atrelado umbilicalmente ao controle de constitucionalidade.
Contudo, esse impulso esbarra na independência e sobrecarga dos juízes e tribunais. De fato, o exame de compatibilidade vertical do direito interno com os tratados de direitos humanos de estatura supralegal importa uma análise acurada de dezenas de convenções regionais e onusianas, que albergam centenas de direitos protegidos.
Para um rápido vislumbre, o Secretário-Geral da ONU é depositário de cerca de 560 tratados internacionais, muitos dos quais tratam de direitos humanos. Tanto que a organização selecionou nove deles, mais nove protocolos facultativos, para servirem de núcleo do sistema internacional de proteção aos direitos humanos. Sem contar as convenções regionais, celebradas no âmbito da OEA.
Um exame dessa magnitude em milhões de processos que aportam anualmente no judiciário irá demandar um esforço hercúleo, em especial se for incluída a interpretação dada às convenções pelos órgãos internacionais e regionais.
Em conclusão, entendemos que a exortação contida na precitada resolução em nada afetará o estado de letargia em que se encontra o controle difuso de convencionalidade, caracterizado como um instituto em vias de superação, dada a sua persistente ineficácia prática. O mesmo caminho irá trilhar a recomendação e o acordo de cooperação técnica que se seguiram, já que desprovidos de metas e cronogramas de atuação. Apenas com a adoção de uma nova resolução, em complemento à anterior, instituindo metas uniformes para todo o judiciário, com a seleção de parâmetros contendo os direitos mais essenciais, será possível revigorar uma cultura internacionalista na atividade judicante.
Oficial de Justiça do TRT 7° Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, LEONARDO RODRIGUES ARRUDA. O Controle Difuso de Convencionalidade: a Tentativa de Sobrevida de um Instituto Natimorto. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2025, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67863/o-controle-difuso-de-convencionalidade-a-tentativa-de-sobrevida-de-um-instituto-natimorto. Acesso em: 22 fev 2025.
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