Junho de 2007
Não tenho uma medida certa. Na maioria das vezes, faço tudo a olho. Se você quiser, entretanto, anote aí:
“Uma pitada de sal, algumas colheres de açúcar, essência de baunilha, três cravos-da-índia, leite, ovos e farinha de trigo a granel. Misture tudo em uma tigela grande até a massa ficar uniforme”.
Não, não, pensando bem, convém parar por aqui, porque não é nada disso que eu quero dizer. A massa do bolo desandou! O tema é outro, embora ligado a fazer bolo.
Você perguntou de onde vem a minha força e, por mais que eu me sinta tentado a dizer o contrário, o melhor, nessa hora, é usar de franqueza e esclarecer, de uma vez por todas, que há coisas na vida para as quais não existe molde ou receita a seguir. Já que, entretanto, você, curioso como é, realmente quer saber, vou dizer. Só que, antes de tudo, eu também preciso esclarecer que alguns procedimentos adotados na nossa vida pessoal surtem efeitos para uns, mas não resultam em muita coisa para outros.
Não pense que estou escondendo o ouro, porque eu não faço segredo algum de onde vem a minha força. Ao contrário. Quem me conhece bem sabe perfeitamente que muito me valho dela e tem conhecimento ainda de que ela me tem sido útil por demais, ao longo da jornada. O que lhe afirmo é que há coisas que dependem da maneira de ser de cada um e, se analisarmos mais detalhadamente o assunto, veremos que dependem sobretudo do “material” do qual a nossa alma é moldada.
A força pessoal, aquela fortaleza que carrega a bateria do âmago do nosso ser, manifesta-se de um jeito em cada criatura. Assim, a receita que serve para mim pode não funcionar para você. Essa força poderosa e invisível, sem dúvida, conduz a vontade e o agir da nossa vida. Não só isso: ela trilha o nosso destino, alimenta a nossa alma, dá colorido e som digital aos nossos sonhos, direciona os nossos passos, levanta-nos depois dos tropeços e nos faz seguir adiante, mesmo quando tudo dá errado e ninguém nos oferece um tico de consideração e, menos ainda, um mísero voto de confiança. O poder pessoal que nos governa, que nos resgata do abismo e do fundo do poço, é algo absolutamente individual e quase inexplicável. Mesmo assim, eu vou tentar explicá-lo.
Ele é a nossa segunda pele, quase como se fosse uma roupa cortada e costurada por um alfaiate eficiente, sob medida para o nosso manequim. De tão bem-feita, gruda na pele, não pesa e a gente nem sente. Como você sabe, há roupas que para uns ficam bem, caem como uma luva, e, para outros, no entanto, apertam, prendem os movimentos, sufocam e causam um tremendo desconforto. Não batem com o nosso verdadeiro número. Com esse tipo de vestimenta não compensa gastar e, se abrir o bolso para adquiri-la, estará jogando dinheiro fora. Em geral, ela acaba não combinando com o seu estilo, com o resto do guarda-roupa. Enfim, ela não tem a sua cara, de modo que o mais indicado é não andar por aí com esse figurino, por mais na moda que ele esteja.
Variável, a nossa força interior invisível pode se manifestar tanto na persistência quanto nos arroubos da existência, no simples, nas coisas banais, só dependendo da natureza e do temperamento de cada um.
Não sou pintor nem artista, mas posso ilustrar um pouco a nossa conversa com dois exemplos antes de falar diretamente a respeito do que me fortalece. E, nesse quesito, nada me parece mais inspirador do que a persistência, especialmente quando se escolhe um caminho a seguir, um obstáculo a ultrapassar, uma “guerra” a vencer. Vamos ao primeiro caso.
O francês Paul Cézanne[1] persistiu na escolha feita. Queria como destino a carreira artística. Nas boas escolas que freqüentou, foi um aluno brilhante – obtinha notas altas em quase todas as matérias, menos em desenho. Mesmo assim, a força que o movia era uma só: sonhava em estudar pintura, montar o seu próprio ateliê e pintar muitos quadros. Seguiu o seu caminho. Submeteu-se a provas para ingressar na Escola de Belas Artes da capital francesa e levou bomba duas vezes. Não desistiu nem mudou os seus planos. Passou a freqüentar a Academia Suíça, escola de arte de Paris, que fazia oposição à tradicional Escola de Belas Artes. E tudo isso só aconteceu depois que ele venceu a imposição do pai, que o obrigou a ingressar num curso de Direito, porque desejava que ele fosse advogado. Artista feito, amargou uma série de desdéns. Para começar, suas obras foram rejeitadas, ano após ano, pelo Salão Oficial de Paris e, como se não bastasse, os críticos não o deixavam em paz: zombaram da sua arte e fizeram orquestração para derrubá-lo. A tal ponto chegou a sanha invejosa que recomendaram a todos que se interessavam pelas artes que os seus quadros não fossem vistos por mulheres grávidas, sob pena de terem filhos doentes. Motivo de chacota, até mesmo os seus amigos mais íntimos o consideravam um pintor medíocre, um fracassado. Menos ele, que acreditava mais do que ninguém no valor da sua obra e apostava em seu talento e em cada uma das suas pinceladas.
“Eu sou um marco”, dizia, convicto, Paul Cézanne, mais louco do que Batman e mais atrevido do que vento em noite de tempestade, tornando-se um dos nomes mais consagrados das artes em todo o mundo, largamente reconhecido como o pai da Arte Moderna. Depois dele, muitos artistas surgiram e, entre eles, ninguém mais ninguém menos que Salvador Dalí[2].
O estilo do mestre era diferente. Com os seus bigodes arrogantes e arrebitados, o pintor catalão – um dos artistas mais polêmicos do seu tempo, conhecido pelo seu trabalho surrealista –, sem modéstia ou cerimônia, mais doido do que MacGyver, dizia para quem quisesse ouvir:
“Sou um monstro de inteligência”.
Excêntrico, exibicionista, frasista e marqueteiro de mão cheia, alardeava muito mais do que isso até chegar às últimas conseqüências:
“As duas coisas mais felizes que podem acontecer a um pintor contemporâneo são: primeiro, ser espanhol, e, segundo, chamar-se Dalí. Ambas me aconteceram. Todas as manhãs, eu experimento uma delicada alegria, a de ser Salvador Dalí, e me pergunto, em êxtase, que coisas maravilhosas esse Salvador Dalí vai realizar hoje?”.
Aprecio essas duas vidas, embora já esteja arrependido da revelação, pois vão dizer que ouso me comparar a Cézanne e Dalí. Não se preocupem, pois conheço o meu tamanho.
No meu humilde caso e à primeira vista, a minha força interior é mais modesta do que parece e muito fácil de ser decifrada. Antes de tudo, a que eu carrego, aquela que mora em mim, que não se perdeu no tempo – assim eu sinto. E olhe que os anos se passaram! De qualquer modo, ainda hoje, faça sol ou chuva, todas as madrugadas, quando acordo, renovo os sonhos para a minha existência não perder o perfume. Esse é o meu ritual há décadas. Espreguiço-me, finco os pés no chão, olho para frente, para o alto e abraço o mundo. Vou à janela e vejo o mundo vazio, enquanto começo a trabalhar. Dou vistas d’olhos para trás, vislumbro os sonhos que já foram concretizados, contento-me, e, no minuto seguinte, lá vou eu, incansável na minha luta, levando o bastão dos que ainda não se realizaram.
Corro no meu passo, sem atropelar ninguém, sem mentir, sem enganar, sem trair ninguém, sem inveja, em busca do que me pertence, porque uma vida sem projetos não é nada. A procura faz com que eu me sinta mais vivo a cada dia. Já enfrentei muitos anos, mas a minha força preserva o seu frescor juvenil: tem cheiro de mato, capim, petúnias, criança nova, jasmim, orquídeas, cravinas e bouquets de gérberas. Em mim, ela tem um quê de poesia, que exala serenatas e noites de luar sem que eu seja poeta. Sou cantor caseiro, orquidófilo meio louco, mágico para os meus netos nas horas de folga e jardineiro e criador de flamingos aos sábados, domingos e feriados. E tenho horas para contar anedotas, estudar Inglês, plantar flores no bosque de Arealva e cuidar dos macacos bugios das margens do Rio Tietê.
Desde os tempos mais remotos, guardo o segredo dessa minha força interior e de tudo que me move em um frasco de plástico, de leite de rosas ou de suco de laranja, encontrado em qualquer esquina. Não o escondo embaixo da cama nem em cofres de bancos ou antigos baús de madeira. Sou caipira lá do interior, meio bicho-do-mato, tímido e, às vezes, mais louco do que o avô Batman. Minha força ganha corpo e se refaz em contato com a terra, com a amizade das orquídeas e o respeito dos flamingos, com o canto dos passarinhos, com o brilho dos olhos das pessoas que me rodeiam, com suas alegrias e seus “ais” de tristeza.
Nem sempre acordo calmo, porque a vida não é serena todos os dias. Por essa razão, há dias nos quais me levanto louquinho como menino que perdeu a primeira namorada. Não obstante, ouso modificar o que pode ser alterado para tornar melhor a minha jornada. Embora a minha alma comece a labuta diária maltratada e empoeirada, sei que, em seu fundo, escondem-se belas relíquias nunca abandonadas. Nem posso!
A minha força está no permanente, no passageiro e na eternidade, os quais, no final das contas, misturam-se. Ela se encontra nas minhas lembranças, no meu passado, nas coisas que eu vivi. É fruto das palavras dos moleques amigos do menino Damásio, que ainda hoje ecoam nos meus velhos ouvidos, soltas nas ruas da minha infância, iluminando os meus fins de tarde.
Minha força, que tantos quiseram enfraquecer, está no eco longínquo das “guerras” das quais participei, nas batalhas que travei, nas lutas que ganhei, nas que perdi. Ela se mostra em coisas simples, como o perfume de uma orquídea, na graça de um filhote de flamingo, no canto dos pássaros, na beleza de uma primavera florida e no que me acontece e faço acontecer.
A minha força interior é palpável, de carne e osso, faz splash e tem gosto de chiclete quando eu sinto no meu rosto o beijo gostoso, ingênuo e desinteresseiro dos meus netos, que esticam os seus pezinhos para me alcançar.
A minha força vem das batidas do meu coração, essa cidade secreta, de muros baixos e janelas altas e abertas, que não escondem os campos nem as paisagens adornadas que eu construí em volta de mim mesmo; do menino bobinho que sou e sempre serei, moleque de oito anos de idade, que acredita nas pessoas que lhe querem tirar o doce e nunca desconfia que elas, como são humanas, são invejosas e maldosas.
Ah, você pergunta de onde vem essa força?
Ela nasce da escuridão das madrugadas de estudo; do nascer do Sol, quando ainda se está planejando a vida; do silêncio e da prece feita todos os domingos diante do Deus em quem eu acredito.
Vem das vidas passadas.
Das almas dos familiares que já se foram.
Dos amigos sinceros que conquistei.
Dos espíritos das pessoas que me amaram. Do tio Rico; do Damasino; do Oswaldo Caçador; do Toninho da Tote; do primo Rico; do Sílvio Marques Júnior; da Maria Inês Leite de Toledo; da Dindinha.
Vem das pescarias em rios calmos na companhia do meu pai e amigos; das florestas que desvendei; dos mares nos quais não naveguei; do senso de luta e de responsabilidade que a minha mãe queria que eu tivesse.
Ela tem como fontes a voz calma do meu pai me alertando dos perigos da vida e o abraço apertado da minha avó Lili, fazendo “festa” quando, todo mês de julho, via-me chegar no trem da Sorocabana.
Essa vontade de viver e fazer viver nasceu dos amores que não tive; do respeito que não recebi; das canções que não cantei; dos amigos que perdi; dos dias sombrios e das noites em claro; da solidão das festas de fim de ano; da Branca de Neve e dos 6 anões bem-humorados; da perda do meu amor; das fugas às perseguições; das traições perdoadas e superadas; dos ódios que não provoquei; dos ex-alunos aos quais ensinei; do choro de agradecimento dos pais dos filhos que ajudei. Dos meus 7 netos, que sempre adorei.
Nasceu da fé divina de vencer o mal e da certeza humana de que tudo vai dar certo, quando todos ao meu redor temem o dia seguinte.
Minha força interior, expressão de proteção divina, só é grandiosa porque reflete tudo isso, a soma do que sou e vivi: nada difere; nela, o mundo se encaixa e se completa. Ela vem de Deus.
Advogado em São Paulo. Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS. Membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (CONJUR) da Federação da Indústria de São Paulo. Membro da delegação do Instituto Inter-Regional de Criminologia das Nações Unidas (UNICRI) no 12.º Período de Sessões da Comissão das Nações Unidas de Prevenção ao Crime e Justiça Penal, Viena, Áustria (13-22.5.2003). Autor de várias obras jurídicas. Home page: www.damasio.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Damásio E. de. De onde vem esta força? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2008, 08:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/107/de-onde-vem-esta-forca. Acesso em: 22 nov 2024.
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