AUTOCOLOCAÇÃO SOB PERIGO
A autocolocação sob perigo existe nas ocasiões em que alguém efetua fatos que estabelecem uma situação de perigo para si próprio ou se expõe a um perigo já ocorrente. A autocolocação não afeta a imputabilidade do resultado, senão a conduta de terceiro como comportamento tipicamente proibido. Os casos de autocolocação sob perigo e a responsabilidade da vítima pelas conseqüências são apenas o reverso, já que a conseqüência da ausência de tipicidade a determinadas condutas de terceiros devido à limitação da proteção típica que se produz, tendo em vista a conduta subseqüente ou simultânea do ofendido e não à sua vez, a razão da impunidade de terceiro.
A autocolocação da vítima em perigo pode existir posteriormente a uma conduta do partícipe ou simultaneamente a esta.
De qualquer forma, há de se diferenciar a autocolocação em perigo e o consentimento alheio ao perigo (consentimento do ofendido). Existirá autocolocação sob risco se alguém efetua condutas criadoras de um perigo a si mesmo ou se expõe a um perigo já existente. Doutra banda, haverá consentimento do risco pelo ofendido caso alguém se exponha conscientemente ao perigo criado por parte de outrem, sendo este quem tem o domínio fático do evento causador do perigo, mas ficando a vítima por vontade própria sob este perigo. De qualquer forma, a diferenciação entre autocolocação em perigo e consentimento somente se faz pertinente em casos onde o Direito Positivo dá limites à possibilidade do consentimento, como se sucede em bens jurídicos que a sociedade, por via da lei, assim considera.[1] Somente haverá possibilidade de tipicidade na conduta de terceiro se o comportamento realizado por aquele se realize contra ou sem a vontade da vítima, pois estas hipóteses excluem a tipicidade.
A participação do ofendido pode ter favorecido o partícipe a uma ação perigosa e lesiva ou a ela tê-lo induzido. Ou o partícipe pode ter possibilitado uma conduta autoperigosa em razão da entrega de coisas ou motivado a vítima mediante sua atuação a uma conduta por si só perigosa. Exemplo: a vítima, sabedora das péssimas condições de uma determinada embarcação, toma-a alugada de outrem para atravessar um curso d’água, sendo que, no trajeto, o barco faz água, resultando na morte do ofendido (sem embargo, nessa situação, há certa divergência doutrinária).[2] Comum também o passageiro dum automóvel que não usava cinto de segurança e, em razão de colisão, vem a se ferir. O motorista não deve ser responsabilizado por não exigir ou zelar, de forma ampla, a utilização daquele equipamento (trata-se de cuidado objetivo).
Questão de ampla repercussão e complexo desenvolvimento doutrinário pode ser considerada em face da AIDS. “Um exemplo que serve para por claramente de manifesto a problemática à que se alude aqui, constitui o chamado caso Kempten recentemente resolvido pelo Tribunal Superior da Baviera. Esta sentença do BayObLg (sentença de 15/09/89) afirma que, em princípio, o fato de que um portador da AIDS conhecedor de sua enfermidade mantenha relações sexuais com outra pessoa sem utilizar meios de proteção pode ser punível como lesões perigosas Se não resulta na infecção do outro parceiro, será punível pela forma tentada. Sem embargo, no caso concreto, o acusado não havia realizado o tipo de lesões em grau de tentativa porque apenas havia participado num autocolocação em perigo (querida e autoresponsável) de outrem. Segundo a jurisprudência do Tribunal Supremo alemão, o que participa em semelhante autocolocação em perigo, participa num sucesso que não constitui um fato no sentido dos §§ 25, 26 e 27 I STGB (artigos do Código Penal alemão referentes à autoria, indução e cumplicidade).”[3] De fato, haverá autocolocação sob perigo sempre que a vítima, consciente ou inconsciente, participe, com sua própria conduta, na realização do resultado juridicamente protegido.[4]
A IMPUTAÇÃO OBJETIVA E O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Dentre algumas situações de risco permitido, às vezes, há a atuação em conjunto de duas ou mais pessoas no fato e em sua resolução. Não é lícito se afirmar que todas as pessoas atuam corretamente, porque determinadas situações levam-nas a cometer erros. Contudo, as outras que se comportam adequadamente, esperam que as demais também assim o façam. A sociedade, como um todo, tem em mente que as pessoas ajam consoante os comportamentos sociais adquiridos, não sendo tais, comportamentos desaprovados. Como ensina JUAREZ TAVARES, “salvo em hipóteses de ação conjunta e vinculadora, ninguém em princípio, deve responder por ações defeituosas de terceiros, mas sim, até mesmo pode confiar em que atendam todos os outros aos respectivos deveres de cuidado.” [5]
Por isso, a responsabilidade penal de um indivíduo somente existe por seu único comportamento, nunca pelo dos demais.
Toda a sociedade é composta por situações de riscos permitidos, que fazem parte do modelo normal dos meios de vida, sem os quais essa sociedade não poderia desenvolver suas atividades. Nesse rol de atividades, estão, por exemplo, a circulação de veículos, a navegação aérea, os contatos pessoais, o compartilhamento do trabalho e muitas outras situações envolvendo mais de uma pessoa na elaboração dos fatos. “Recordemos que este princípio, de criação jurisprudencial, tinha como finalidade originária- posteriormente se foram desenhando seus contornos- o trazer dos limites do dever objetivo de cuidado do risco permitido.” [6] Assim, p. ex:, uma pessoa que causa lesão culposa em outra pode esperar que esta não venha a morrer porque não teve o cuidado devido quando do atendimento hospitalar. Espera-se, de quem quer que seja, que o atendimento seja de acordo com a diligência médica da melhor forma possível. Por isso mesmo, ainda diz MARGARITA M. ESCAMILLA que “se o médico chefe tivesse que supervisionar a correção das atuações de todos seus colaboradores, ou cada membro da equipe poderá confiar que o resto realize corretamente sua função, a não ser que existam dados concretos que façam supor o contrário.” [7] Portanto, se o auxílio necessário para cometer um delito chega de forma sucessiva de autoria, apenas respondem os sujeitos que realizem um comportamento fora do rol normal do comportamento exigido.[8]
[1] BEATRIZ DE LA GANDARA VALLEJO, Consentimiento, Bien Jurídico e Imputación Objetiva, Colex, Madrid, 1995.
[2] Pela imputação objetiva inclina-se YESID R. ALVARADO, Imputación Objetiva, Temis, Bogotá, 1994. Já CLAUS ROXIN exclui a conduta. Derecho Penal, P. General, I, Civitas, Madrid, 1997. DAMÁSIO DE JESUS também se ocupa do evento, adotando a punibilidade. Imputação Objetiva, Saraiva, 2000.
[3]BEATRIZ DE LA GANDARA VALLEJO, Consentimiento, Bien Jurídico e Imputación Objetiva, Colex, Madrid, 1995.
[4] W. FRISH, Tipo Penal e Imputación Objetiva, Colex, Madrid, 1995.
[5] Direito Penal da negligência, RT, São Paulo, 1995.
[6] MARGARITA M. ESCAMILLA, La imputación objetiva del resultado, Edersa, Madrid, 1992.
[8] La imputación objetiva en Derecho penal, Civitas, Madrid, 1999.
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