Sumário: 1. O Brasil pego de calça curta – 2. Justificativa para um novo Código Comercial – 3. Bons exemplos da perfeição de nosso Código Comercial – 4. Novidade legislativa – 5. Os casos anteriores – 6. Causas possíveis da nova disposição – 7. Solução proposta
1. O Brasil pego de caça curta
O Brasil foi surpreendido em junho de 2011 com a bombástica notícia de que fora apresentado no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.572/2011, referente à criação de um novo Código Comercial. Imediatamente o Ministro da Justiça empreende consulta pública para debater o projeto; várias manifestações de juristas de peso no campo do Direito Empresarial publicam artigos enaltecendo o novo Código Comercial e espinafrando o direito brasileiro emergente do Código Civil de 2002. No decorrer de 2011 foram realizados por todo o Brasil seminários para exposição e debates sobre o novo Código Comercial. Os meios de comunicação divulgam amplo noticiário, opinando até que o Código Comercial deveria sair no ano de 2012, graças aos esforços do Ministro da Justiça.
Colhido de surpresa, o Brasil assistiu atônito às imprecações contra o Código Civil e o direito por ele instituído, sem tempo de analisar os fundamentos apresentados para justificar a substituição de um novo código para o qual lutou por mais de meio século. E o viu triunfar em 2002, quando finalmente surgiu nosso atual Código Civil, discutido no Congresso Nacional durante 27 anos. No final de 2011, porém, sentiram-se as reações em defesa de nosso direito, que estava seguramente se aperfeiçoando e solidificando.
2. Justificativa para novo Código Comercial
Uma das alegações básicas da superação e impropriedade de nosso Código Civil foi a proibição da sociedade entre marido e mulher, constante do artigo 977, que iremos transcrever para comentar em seguida.
Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou da separação obrigatória.
Chamamos a atenção para a clara redação desse artigo e veremos que ele não proíbe a sociedade entre marido e mulher, mas permite. É o que diz a lei: “Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade entre si”. Facultar é por acaso proibir? Pegamos o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa editado pelo MEC e lá encontramos os significados de facultar:
Conceder, facilitar, por à disposição, proporcionar, prestar, oferecer, possibilitar, autorizar, permitir.
Vejamos os exemplos dados pelo Dicionário Didático:
- O diploma de medicina faculta exercer a profissão de médico.
- O segurança facultou a nossa entrada.
A maioria dos casamentos segue a regra normal e costumeira, que é com regime de comunhão parcial. Só em casos especiais aparece com regime de comunhão universal ou de separação obrigatória, e quando surge essa possibilidade é necessária uma série de exigências que desanimariam os nubentes. Nessas condições, é possível a sociedade empresária entre marido e mulher na quase totalidade dos casais. Todavia, se incomoda tanto essa disposição legal, porque não propuseram suprimir a segunda parte do artigo 977? Será porque julgaram mais fácil substituir um código por outro ao invés de emendar um artigo?
Torna-se, portanto, pueril justificar a substituição de um código por outro, calcado em um artigo mal interpretado. O artigo 977 prevê realmente uma exceção, e a declina claramente: “Desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens ou da separação obrigatória.” Essa disposição é considerada uma aberração jurídica e por sua causa justifica-se o banimento de um código com mais de 2.000 artigos, discutido no Congresso Nacional por 27 anos, elaborado por uma comissão de notáveis juristas, debatido pela comunidade jurídica. Deve ser substituído por outro código feito e apresentado na calada da noite, apresentado às escondidas, embora com amparo oficial, e sem passar pelo crivo das organizações jurídicas, sofrendo pressões pela aprovação.
A vedação da sociedade entre marido e mulher, prevista pelo nosso código, sofreu ataques homéricos quanto à proibição e tem sido malsinada, a ponto de ser considerada como aberração. Realmente, julgamos, a princípio, pelo menos desnecessário esse artigo. Não sabemos que razões levaram a comissão elaboradora do projeto do Código Civil adotado, pois não houve explicação por parte dos elaboradores. O autor deste artigo se pronunciou em artigo publicado há anos atrás pela Internet, julgando esquisita e desnecessária essa disposição.
Todavia, as discussões agora levantadas revelam que essa disposição tem certa lógica e se torna necessária e conveniente para se evitar fraudes. Não é totalmente irrelevante e muito menos uma aberração, como agora se afirma. É interessante notar que poucos notaram esse pormenor, e só agora levantam imprecações contra ele para justificar a adoção de novo Código Comercial, adoção que julgamos desnecessária, intempestiva e inconveniente.
3. Bons exemplos da perfeição de nosso Código Comercial
Vamos citar alguns exemplos que justificam e recomendam o artigo 977 de nosso código, e não será fictício, mas fato que realmente ocorreu em São Paulo há alguns anos. Um advogado fez o inventário do de cujus e depois se casou com sua viúva, de 67 anos. Naturalmente, foi casamento com separação total de bens por força da lei. Tempos depois a viúva foi assassinada. Como era casado no regime de separação obrigatória de bens, o advogado nada receberia da herança de sua esposa. Entretanto, ambos tinham constituído uma sociedade com responsabilidade solidária, e esta fez muitas dívidas. Desta forma o advogado tornou-se dono do patrimônio da viúva.
Essa fraude foi noticiada com estardalhaço pela imprensa, provocando grande celeuma e medidas judiciais. Não terá sido esse fato, ocorrido no tempo em que o projeto do Código Civil esta sendo elaborado, que tenha determinado o artigo 977? Se essa farsa ocorresse agora, na vigência do Código Civil de 2002, esse advogado não teria êxito e nem teria formado a sociedade com sua esposa, ex-viúva.
Houve mais um caso: esse mesmo advogado tinha dado outro golpe semelhante. Casou-se com uma viúva em regime de comunhão universal de bens. Tempos depois a viúva foi assassinada e o advogado tornou-se dono da herança de sua esposa porque tinha constituído com ela uma sociedade em nome coletivo. A sociedade tornou-se dona do patrimônio da viúva e o sócio remanescente dono da sociedade, tendo incluído sua amante como sócia. Vê-se, pois, que a disposição adotada pelo artigo 977 não é tão inócua como parece.
Infelizmente, todos os membros da comissão elaboradora do Código civil estão mortos e não poderiam esclarecer o porquê deste artigo. Enquanto eles estavam vivos ninguém os questionou sobre a inclusão do artigo 977. Por que só agora esse dispositivo legal está sofrendo tão violento anátema? Ao nosso modo de ver é devido á falta de argumentos para justificar esse novo Código Comercial sem pés nem cabeça. Todavia vamos comentar esse artigo de nosso Código Civil que está dando tanto pano para manga, num movimento que julgamos injustificável.
4. Novidade legal
Sempre enaltecemos a excelência de nosso novo Código Civil, o mais moderno e perfeito entre os códigos conhecidos e fez do direito brasileiro, antes dele um dos mais atrasados do mundo, hoje um dos mais adiantados. Nosso Código prima por várias características, entre as quais a clareza, a modernidade, a praticidade. Uma questão surpreende, porém pela estranheza: é a que consta do art. 977.
Diz um provérbio jurídico que proibir o abuso é consagrar o uso, e, baseados nele podemos concluir que é possível legalmente a existência de uma sociedade formada por marido e mulher, desde que eles sejam casados em um dos três outros regimes de bens não vedados pelo art. 977, vale dizer, no regime de comunhão parcial, que é o comum, no regime de participação final nos aquestos, ou no de separação de bens não obrigatório, mas estipulado pelos cônjuges. Até aí, a situação está clara, mesmo porque a maioria dos casamentos é realizada no regime de separação parcial, o que não tornará tão freqüente a aplicação do art. 977 em situação anormal.
5. Os casos anteriores
Surgem, porém, algumas dúvidas: como ficam as sociedades já constituídas antes do atual Código Civil? Terão de dissolver-se? Amoldar-se à nova regulamentação? Continuam como estão? As opiniões se dividem, mas se nota que muitos preferem omitir-se, preferindo aguardar o pronunciamento de nossos tribunais. Preferimos, entretanto, dar nossa opinião, embora permanecendo à espera da jurisprudência. Para nós, as sociedades antigas podem permanecer como estão, por ter constituído sua formação um ato jurídico perfeito e acabado, que já penetrou no mundo jurídico, provocando inúmeros direitos, com repercussão em muitas outras pessoas.
Vamos justificar nossa teoria, baseando-nos primeiro em nossa Magna Carta, pelo que consta do inciso XXXVI do art. 5º, que transcrevemos:
“A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”
Ora, a sociedade registrada na Junta Comercial ou no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, constitui um ato jurídico perfeito, uma vez que está registrada no órgão público competente. Além disso, algumas delas operam já muitos anos tranqüilamente; ainda que, por absurdo, não tenha sido um ato jurídico perfeito, aperfeiçoou-se pelo transcurso do tempo. Afora a perfeição dos atos, quantos direitos foram adquiridos pela sociedade, por seus sócios e por terceiros! Não poderiam todos eles ser prejudicados por uma lei posterior que voltasse no tempo para atingi-los. E há mais: é possível que uma dessas sociedades tenha provocado decisões judiciais com trânsito em julgado, e não poderiam ser anuladas.
Continuemos nossas digressões a este respeito, apegando-nos ao próprio Código Civil, pelo que diz o seu artigo 2.035:
A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas seus efeitos produzidos após a vigência desde Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Portanto, o novo Código Civil aceita a sociedade entre marido e mulher constituída antes dele, não a obrigando a modificar-se. Diz apenas que as novas relações jurídicas dessa sociedade passam a ser regidas por ele, o que ninguém até agora colocou em dúvida. Vamos seguir adiante, invocando outros dispositivos legais. Podemos dizer que se aceitarmos a tese de se aplicar o art. 977, obrigando a sociedade a modificar seu estatuto ou seus sócios a mudar o regime de bens no seu casamento, estaríamos aceitando a retroatividade da lei, que o direito dos principais países condena. Somos de opinião que o Brasil não a olha com simpatia, apesar da obscuridade da lei, pelo que se vê no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil:
A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Diz a LICC que a lei terá efeito imediato e geral, o que nos leva a crer que se ela tivesse efeito retroativo deveria dizer expressamente. Dizemos que a forma é obscura porque não diz que veda a retroatividade, mas abre discussão a este respeito. O Código Civil da Itália a proíbe taxativamente e o da França, Espanha e Portugal igualmente. Como nosso direito tem grande similaridade com o desses países, devemos seguir o mesmo critério.
6. Causas possíveis da nova disposição
Surge agora nova discussão: Qual o motivo dessa proibição, que não havia no código anterior, como não há no código de vários outros países. Vários motivos foram já levantados, com base em estatísticas de muitas demandas judiciais causadas por sociedades desse tipo, principalmente quando o casal se separa. Acredita-se que esses casos tenham influído na adoção dessa medida.
Invocam-se razões doutrinárias para essa proibição. No caso do casal com regime de comunhão universal, eles possuem um patrimônio comum, que não pode ser separado, a não ser que a sociedade conjugal se desfaça. Se eles constituírem uma sociedade, esta não teria sócios, mas um sócio único: o casal. Seria uma sociedade unipessoal, isto é, uma ficção. Por isso, vários problemas jurídicos podem ser criados; aliás já foram criados. Bens da sociedade podem ser penhorados e um dos cônjuges entra com embargos, querendo defender a sua meação. Digamos ainda que o casal invista o resultado de seu patrimônio no capital da sociedade; o marido faz muitas dívidas e provoca penhora de bens e leilão destes, sem o conhecimento da mulher. Será uma forma de o marido desfazer-se dos bens do casal, ludibriando a empresa.
O caso de casamento no regime de separação obrigatória, a situação é inversa. Não há nem pode haver patrimônio comum do casal. Se eles constituírem sociedade, formarão patrimônio comum, o que será doutrinariamente impossível e legalmente duvidoso. Da mesma forma que no outro caso, este poderá dar margem a fraudes. O marido dissipará os bens da sociedade, sem que a mulher fique sabendo.
Realmente, as explicações têm fundamento jurídico, mas a lei está baseada em presunções. A sociedade entre marido e mulher pode efetivamente ensejar fraudes, mas não quer dizer que elas devam fatalmente ocorrer. Há milhares de sociedades desse tipo e são poucas as fraudes debatidas na justiça. Há também fraudes em sociedades de casais nos outros regimes de bens, como também com sócios que não sejam marido e mulher. Então as sociedades não deveriam existir! Se a lei for proibir todos os negócios jurídicos que possam resultar em fraudes, a maioria dos contratos deve ser revista. Cada caso é um caso. Se houver uma fraude, deve ela ser atacada individualmente, julgada “in concreto” e anulada se ela for constatada. O que não se justifica é que uma lei “a priori” proíba um negócio jurídico só porque possa ser burlado.
7. Solução proposta
É nosso parecer o de que essa questão deva ser regulamentada por lei especial ou por um decreto que complete o disposto no art. 977 do Código Civil, dada á complexidade da questão. Poder-se-ia manter essa proibição, apontando-se as medidas tomadas no caso de prática de fraudes, receitando-se assim o “remedium juris” para a transgressão das leis e mantendo a eficácia delas. O que achamos inconcebível, porém, é que esta questão seja levantada para justificar a adoção de novo Código Comercial, às escondidas, relegando um código que representa um patrimônio jurídico da nação, elaborado por uma plêiade de notáveis juristas, debatido e aprovado pelo Congresso Nacional e pela coletividade jurídica, em vigor há dez anos e já tendo provado sua eficiência.
Bacharel, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo - Advogado e professor de direito - Autor das obras de Direito Internacional: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO e DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO, publicados pela EDITORA ÍCONE. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROQUE, Sebastião José. Sociedade entre marido e mulher é fator irrelevante para exigir novo Código Comercial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 fev 2012, 09:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1130/sociedade-entre-marido-e-mulher-e-fator-irrelevante-para-exigir-novo-codigo-comercial. Acesso em: 22 nov 2024.
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