Sumário: 1. Desprezo por professores – 2. O ensino das ciências jurídicas – 3. O ensino do Direito Empresarial – 4. O Ministério da Educação colabora para o descalabro
1. Desprezo por professores
O ensino no Brasil, em sentido geral, decai a olhos vistos há muitos anos. Há meio século quem tivesse os quatro anos de ginásio podia ser considerado um doutor, em relação aos dias atuais. Hoje um graduado em curso superior é pouco mais do que um analfabeto. Vejamos, porém, a situação do ensino do direito, para o qual há um século havia duas faculdades: de São Paulo e de Recife; hoje há mais de mil, despejando advogados despreparados num mercado de trabalho altamente saturado.
Falemos primeiro na situação dos professores. Em alguns países europeus, como na Alemanha, o professor de direito não pode se dedicar a outra atividade, nem mesmo de advogado: é obrigado a dedicar-se exclusivamente ao magistério. Como justificativa, há a versão de que um professor de direito ganha mais do que o rendimento médio do advogado. No Brasil os professores eram bem remunerados, mas foram em sua maioria marginalizados do magistério. O nível de ensino está intimamente relacionado com a capacidade cultural e profissional dos mestres de direito e sempre constituiu pressuposto da perfeição do ensino do direito. Quase todos tinham pós-graduação e especialização no exterior.
Neste ano de 2012, na maioria das faculdades de direito os professores são rapazes e moças recém-formados na própria faculdade e começam como estagiários gratuitos. Ao se formarem, são efetivados como professores de ínfimo salário; alguns só recebem ajuda de custo, para o lanche e condução. A arte do magistério exige alma, entusiasmo, amor e dedicação, fatores que surgem normalmente do grau de motivação para o exercício dessas funções. Uma faculdade de São Paulo uma vez demitiu 40 professores com um telegrama nesses termos: resolvemos dispensar seus serviços; queira no dia 7 de janeiro, às 15 horas, comparecer ao seu sindicato para o acerto de contas. A maioria desses professores era constituída de advogados de peso, juízes, desembargadores, alguns com mais de dez anos de casa.
Não interpretam as instituições de ensino superior a verdadeira posição do professor como trabalhador intelectual, devido ao desprezo que lhe votam e a desconsideração de sua pessoa e de seu trabalho. Todos os que convivem com trabalhadores intelectuais, como é o caso do professor, observam a característica primordial deles, que é a vaidade: sua intocável virtude é a vaidade; certa vez um professor afirmou que se sentia vaidoso de sua vaidade. Os mais velhos, após anos de dedicação, sentem-se como párias ao ver que lhes são aplicadas as mesmas regras da obsolescência material, e a forma fria e grosseira com que são tratados. Não só os professores, mas os próprios diretores das faculdades. Uma vez o diretor de uma faculdade foi convidado para uma reunião na Reitoria, situada em outro local. Ao chegar lá foi procurar o Reitor e lhe pediram para passar no Departamento do Pessoal; o Reitor não o recebeu. Ao chegar ao Departamento do Pessoal, uma funcionária pediu para que ele assinasse seu aviso de demissão. Esse fato causou na “vítima” um verdadeiro trauma, do qual ele sempre falava. Certa vez o Reitor de uma faculdade reuniu os professores e apresentou o novo diretor dela; nada falou sobre o diretor dispensado, que ocupara o cargo por vinte anos. Tais fatos ficam marcados como uma bofetada na face de um profissional que se entrega a uma missão sagrada, às vezes um verdadeiro sacerdócio.
O desprezo à figura do professor é patente nas novelas de televisão e no noticiário da imprensa. Quase sempre que aparece na TV essa personagem é normalmente apresentada como um velho ranzinza, caduco, senil ou esclerosado, quando não um gay; é geralmente uma ridícula caricatura. Frequentemente a imprensa noticia o comportamento inadequado de uma professora como algoz de seus alunos ou autora de alguma arbitrariedade. Existem milhões de professores em todo o Brasil, que levam a educação e a cultura aos mais longínquos rincões, como a selva amazônica, sem desfrutar de recursos didáticos e pedagógicos, lecionando em escolas de taipa e ganhando salário ínfimo, às vezes montada num cavalo. Ninguém lhes dá atenção e passam elas em branca nuvem e seu trabalho se perde no esquecimento. Ai delas, porém, se cometerem algum deslize: será escândalo nacional.
Exemplo sugestivo da desfaçatez com que as autoridades e a própria sociedade crucificam os educadores e a própria educação e cultura é o evento da Escola de Base, uma famosa escola de São Paulo, com mais de 30 anos. Um delegado de polícia convoca os órgãos da imprensa apregoando que aquela escola era alvo de investigações devido às denúncias de pais e mães de alunos por ensinar práticas sexuais, inclusive com sexo explícito. A imprensa em peso, rádios, jornais, TV, revistas, apregoava o fato de forma sensacionalista, com juristas, psicólogos, sociólogos e outros prestando declarações. O delegado, pedra angular do escândalo, diariamente dava entrevistas prometendo prender e condenar os responsáveis pela escola, dando até o teor das penas. Durante três meses durou o bombardeio, até cansar o público, que não aguentava mais. Um casal, dono da escolha tiveram sua casa invadida pela polícia, por ordem desse delegado, e foi conduzido algemado, com amplo aparato policial, com dezenas de policiais armados até de metralhadora e roupas de combate e várias viaturas, sempre documentado por repórteres, fotógrafos e outros profissionais da imprensa.
Ao final, mais nada se falou. Constatou-se que não houve inquérito policial, nem processo judicial; as mães que prestaram declarações com um saco de papel na cabeça não foram identificadas. Nem se confirmaram os crimes anunciados. O casal de professores foi internado num hospital psiquiátrico em estado de choque; a escola foi fechada, mas tudo não passou de balão de ensaio. O delegado teve sua fotografia estampada nos jornais dezenas de vezes, prestou dezenas de declarações e desapareceu. Eis o resultado de quem se aventura às funções educacionais.
2. O ensino das ciências jurídicas
O nível de ensino na maioria das faculdades de direito é do nível mais baixo possível, dizendo alguns que nem nível tem: está no porão. Os professores são despreparados e a organização sofrível. Um grupo educacional tinha um colégio dedicado ao curso de 1º grau, mas foi fechado. Para aproveitar os professores, a faculdade de direito absorveu-os, sem que esses fossem advogados, ou tivessem formação em direito. Foram criadas várias matérias para aproveitar o corpo docente do curso secundário; para o professor de português foi criada a cadeira de comunicação jurídica; para a professora de educação moral e cívica foi criada a cátedra de antropologia do homem contemporâneo; o professor de história e geografia ficou com a cadeira de sociologia jurídica, e assim por diante.
A ordem superior e aprovar o máximo possível de alunos, sendo rara alguma reprovação. Com professores desmotivados, mal pagos e tratados com desprezo, os alunos são normalmente descontentes, e até revoltados, tratando o professor da mesma forma com que eles são olhados. Raras escolas apresentam quadro estável de mestres, renovando-o constantemente. Os jornais de São Paulo noticiaram protesto do Sindicato contra a demissão de mais da metade do corpo docente de uma faculdade de direito, a maioria os mais antigos.
O curso de direito passou a ser um tipo de preparatório para o exame da ordem e para os concursos públicos, ensinando mais como preencher as bolinhas da folha de resposta dos concursos. Há pouquíssimos materiais de ensino, quase que reduzidos a Xerox de livros: o professor explica determinado capítulo do livro e deixa na Xerox uma cópia para ser reproduzida. É um tipo de cultura fragmentada; o estudo deve ser como um livro: tem um introito, um programa, um objetivo, um encerramento e um retorno de controle de tudo o que foi feito. Por exemplo: estudar um capítulo do Direito Empresarial por uma Xerox não é estudar a matéria de Direito Empresarial. Depois vem outro ponto e assim por diante. Nessas condições, o Direito Empresarial é estudado por alguns pontos isolados, dissociados do conjunto de aspectos que compõem um ramo do direito.
3. O ensino do Direito Empresarial
Grande parte da antipatia e desprezo pelo Direito Empresarial e pelo seu estudo decorre do péssimo ensino nas faculdades de direito. Começa pela ausência de professores especializados; na sua maioria são improvisados, como por exemplo, um professor de Direito do Trabalho quebra um galho ao assumir a cátedra de Direito Empresarial, pelo menos por um semestre, até encontrar a oportunidade da volta à matéria de sua especialidade. Não é fácil encontrar um professor de Direito Empresarial autêntico, especialista. Sem identificação com a matéria, sem motivação para o trabalho, este professor tem que enfrentar um alunado hostil à sua matéria e a ele.
Para se avaliar a falta de entusiasmo dessa matéria, basta examinar os exames de seleção para os cursos de pós-graduação na Universidade de São Paulo. A área de Direito Público recebe um vasto contingente de 300 candidatos às oito vagas; as áreas de Penal e Civil uns 200; a área de Direito Empresarial 4 ou 5 e estes geralmente desistem no meio do caminho, saindo um pós-graduando em cada 5 anos. Várias universidades anunciam pela imprensa a abertura de inscrições para cursos de pós-graduação e não se nota a cátedra de Direito Empresarial; quando for anunciado será somente para citação, pois se alguém se apresentar será logo dispensado.
Nunca houve movimento esclarecer para esse fenômeno e para sua discriminação. O que ocorre realmente é que é um ramo difícil, vasto e complexo, bem mais do que o Direito Civil e o Direito Penal. Se não forem bem orientados os graduandos e pós-graduando encontrarão dificuldades que poderão desanimá-los. Para que se tenha ideia da complexidade e da abrangência do Direito Empresarial, bastaria citar os subramos em que ele se divide, cada um bastante complexo e profundo: Contratual Mercantil, Societário, Falimentar, Bancário, Mercado de Capitais, Marítimo, Aeronáutico, Cambiário, Comércio Exterior, Propriedade Industrial. A esses dez ramos ainda se adicionam parcialmente o Direito do Consumidor e certos ramos que estão surgindo, como Direito Turístico. Seguindo a lei do menor esforço, é natural que os acadêmicos optem pelo caminho mais fácil.
Além do mais havia, anteriormente ao Código Civil de 2002, a organização legislativa e doutrinária do Direito Empresarial desarrazoada, conflitante, superada e hermética. Todavia, em 2002 nosso Direito Empresarial encontrou seu verdadeiro status. Foi uma vitória consagradora. No ardor da vitória, o Direito Empresarial, o mais importante, complexo e sólido ramo do direito moderno, sofreu grave derrota. A carga horária tradicional de três anos (seis semestres), foi considerada excessiva e desnecessária por órgãos pouco identificados do MEC. Algumas faculdades reduziram então seus programas de Direito Empresarial para quatro semestres e algumas para três. Outras chegaram ao despautério de estabelecer carga horária para apenas um ano (dois semestres). Como poderia esta matéria, tão vasta, difícil e complexa, ser ensinada em um ano e não mais? Há o caso concreto de uma faculdade que estabeleceu apenas um ano a ser desenvolvido no segundo ano do curso. Depois passou para o quinto ano, pois só então irá preocupar-se com essa matéria e admitir seu professor.
É um dos motivos porque a nossa pobre bibliografia emperrou e ficou relegada a obras antigas, estreitando-se o campo para novas produções. Esvaiu-se o Direito Empresarial nos meios acadêmicos, exatamente no momento em que a empresa é erigida como o centro de produção de riquezas, em que se assenta a economia de um país. Não será mais possível estudar os numerosos contratos empresariais, que se desenvolvem, tornando-se híbridos, como se fosse mistura de vários outros contratos; nem os novos contratos, surgidos nos últimos anos, como o leasing, o factoring, o franchising, o crédito documentário, os contratos de transferência de tecnologia, os contratos bancários e tantos outros.
A nova Lei de Patentes, junto com vários tratados internacionais sobre a propriedade industrial, alguns transformados em leis brasileiras, como poderiam ser estudados em duas ou três aulas? E ainda mais, novos ramos do Direito Empresarial, como o Bancário, o do Mercado de Capitais, o Aeronáutico, o do Turismo, que nunca tiveram guarida em cursos de direito, como poderiam entrar em cogitações para a entrada nos programas de estudo nas faculdades?
Sem nos deixar abater pelo desânimo, procuramos dar noções introdutórias desta importante matéria, procurando entusiasmar os acadêmicos de direito e facilitar a assimilação dela por todos os que a ela se dedicam. Dizem alguns espíritos superficiais, que dolorosamente influenciam o ensino, que o Direito Empresarial é cansativo, árido, difícil, complexo e mal humorado. Em alguns aspectos até concordamos com essas afirmações. Difícil e complexo realmente ele é e não poderia deixar de ser o ramo do direito que se ocupa de toda a economia do país e das intrincadas operações que envolvem vultosas responsabilidades econômicas.
É realmente muito mais fácil, simples e empolgante tirar maconheiro da cadeia, briga de marido e mulher, invasão de favelas, tanto que ocupam até o noticiário da imprensa. Analisar um contrato de financiamento, com centenas de cláusulas, garantias de variados tipos, implicações de diversas pessoas, responsabilidades múltiplas, exceções das próprias cláusulas, envolvimento de vultosas importâncias, é realmente cansativo e impróprio para espíritos afoitos e superficiais.
Não tenhamos, entretanto, ilusões: o Direito Empresarial é difícil, mas empolgante; complexo, mas apaixonante. É o direito puro e colocado em alto nível; é para pessoas de espírito empreendedor, que pensam alto e seriamente; não é direito mal humorado, mas sério. Este livro irá demonstrar os tesouros ocultos e a maravilhosa realidade do Direito Empresarial.
Em 2011 sofremos nova derrota, embora ainda não concretizada. O Ministro da Justiça, não se sabe por quais motivos, envia para o Congresso Nacional o Projeto de Lei 1.572 para a adoção de novo Código Comercial. O ministério da Justiça financia ampla campanha em prol desse famigerado projeto, que poderá lançar a confusão total na legislação brasileira. Felizmente, houve algumas reações contrárias a esse despautério e acreditamos que tão absurda ideia não prosperará.
4. O Ministério da Educação colabora para o descalabro
Para completar o descalabro do ensino universitário, o Governo Federal aboliu repentinamente as vantagens de que eram dotados os estabelecimentos de ensino superior e criou várias taxas e impostos para eles, levando muitos à situação de insolvência. Para compensar os prejuízos causados o MEC-Ministério de Educação de Cultura criou o PROUNI, oferecendo às faculdades a isenção de tributos, desde que elas concedessem bolsa de estudos a estudantes pobres, encaminhados pelo PROUNI. Os candidatos eram encaminhados às faculdades, geralmente pelos partidos políticos da base governista. O resultado foi didaticamente desastroso, reduzindo ainda mais o ensino do direito, já por si deteriorado.
As instruções metodológicas do Ministério da Educação para o curso de direito são cada vez retrógradas. A Lei de Diretrizes e Bases, no artigo 5 2, exige que um terço do Corpo Docente seja formado por doutores. Entretanto, poucas escolas obedecem à lei; algumas tem alguns doutores, mas lhe é atribuída uma única turma; às vezes existem doutores registrados, mas sem aulas; o registro é apenas para constar a presença de um doutor. Doutor em Direito Empresarial quase não existe. As instruções do MEC são para tolerar essas falhas.
Em 2011 um grande passo em direção à anarquia e à mediocridade foi dado pelo MEC, ao expedir a Nota Técnica do INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. O primeiro passo desse documento foi o de eliminar a obrigatoriedade de ter pós-graduação e diretor da Faculdade de Direito. Nessas condições, o diretor da Faculdade de Direito não precisa ser mestre ou doutor. Apesar dessa exigência legal, já se conhecia aberrações como uma faculdade de direito cujo diretor era um dentista e anteriormente fora um professor de educação física. Essas irregularidades são fruto da prioridade da oligarquia, em que o dono de uma faculdade de direito coloca como diretor seu filho, sobrinho e alguma pessoa de sua intimidade sem atentar para a aptidão de seu afilhado para a delicada missão.
Outro despautério é a previsão da existência de docentes apenas graduados. Eis um golpe profundo na especialização, nos cursos de pós-graduação e nas tentativas de aprimoramento dos educadores. É uma regressão ao autodidatismo e à formação indisciplinada de cultura. O Brasil precisa de professores de direito e precisa então formá-los. Para isso foram criados os cursos de pós-graduação, que deveriam ser desenvolvidos, aprovados e aperfeiçoados. Formar mestres não pode ser tarefa empírica nem pela lei dos ensaios e erros, baseado na máxima: joga na água; se for bom sai nadando, se não for se afoga; ou então: vai fazendo; conforme for errando vai corrigindo até chegar à perfeição.
Seria excelente ideia a de se criar cursos de direito à distância, como preconiza a referida Nota Técnica em questão, se o Brasil fosse um país de ensino organizado e eficiente e se houvesse conscientização de aprendizado. Entretanto, nosso país tem desempenho sofrível em cursos presenciais, com acompanhamento de orientadores, que desempenho poderia apresentar um curso feito de forma voluntária e à distância, vendo um mestre artista e sem esclarecer dúvidas?
Bacharel, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo - Advogado e professor de direito - Autor das obras de Direito Internacional: DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO e DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO, publicados pela EDITORA ÍCONE. E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROQUE, Sebastião José. O ensino do direito no Brasil está bem ruim; do direito empresarial pior Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1152/o-ensino-do-direito-no-brasil-esta-bem-ruim-do-direito-empresarial-pior. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Leonardo Sarmento
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Carlos Eduardo Rios do Amaral
Precisa estar logado para fazer comentários.