No domingo de 30.5.2005 a imprensa noticiou o repentino falecimento do Professor Guido Fernando da Silva Soares, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi um choque para seus alunos e ex-alunos, e todos os que com ele conviveram. Também para a arbitragem foi de significativa tristeza. Há muitos anos, quando não se cogitava nem e se falava da Lei da Arbitragem, a Lei 9.307/96, que deu nova regulamentação à arbitragem, o Professor Guido Fernando da Silva Soares conseguiu criar na USP a cadeira de arbitragem, para os cursos de graduação e pós-graduação. Foi iniciativa pioneira e só agora algumas faculdades estão seguindo esse exemplo e de forma bem tímida.
O caro professor era titular da cadeira de Direito Internacional da FADUSP, professor nos cursos de graduação e pós-graduação. Exerceu profunda influência sobre seus alunos, incluindo seus ensinamentos a respeito da arbitragem. O autor deste artigo, embebido dos ensinamentos do insigne mestre, saiu da Faculdade com entusiasmo e dedicação à arbitragem, e com a disposição de divulgá-la e lutar pela sua instituição no Brasil. Muitos outros alunos deixaram os bancos escolares com o mesmo entusiasmo e hoje estão nas fileiras dos operadores da arbitragem. Lembro-me, por exemplo, do hoje professor da USP, Carlos Alberto Carmona, da minha turma, que dedicou vários artigos sobre a arbitragem, como na Revista Forense, de grande circulação naquela época. Transformando-se em professor de Direito Processual Civil, o ex-aluno de Guido incluiu a arbitragem no seu programa de ensino, como tópico principal.
Vamos fazer um hiato em nossas considerações, para falar de um fato ocorrido na vida de Guido, que ele pedia para silenciar, mas não pode ser esquecido, sob pena de encobrir não só a verdade, mas a nobreza de caráter, a grandeza de alma, a lhaneza de trato com que lidava com todos os que o cercavam. Ele era dominado, antes de tudo, pelos nobres sentimentos humanos. Entre muitas atribuições na área do Direito Internacional, Guido era diplomata e serviu muitos anos no Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Por vários anos atuou na embaixada do Brasil na União Soviética.
Enquanto servia na embaixada de Moscou, alguns fatos ocorreram no Brasil, que iriam abalar profundamente sua carreira diplomática, e que Guido nem poderia imaginar. Ativistas políticos da esquerda, principalmente comunistas, seqüestraram um embaixador estrangeiro no Brasil e, para libertá-lo, exigiam que o Governo Militar, soltasse vários líderes comunistas da prisão. O Governo Militar entendeu-se com a embaixada da União Soviética e aqueles prisioneiros, umas trinta pessoas foram enviados proscritos a Moscou.
A maioria dos proscritos era constituída de cariocas, nortistas e nordestinos, ou seja, gente habituada ao clima tropical. Foram enviados à União soviética, alguns de bermuda ou calção e sem camisa, transportados num avião da FAB e jogados em Moscou, a uma temperatura de 15 graus abaixo de zero. O Governo Soviético ignorou-os totalmente, só lhes permitindo ficar no país. Dedicaram-se à mendicância, pedindo esmolas pela rua. Catavam comida nas latas de lixo e dormiam debaixo das árvores e das pontes. Não conheciam o idioma do país em que se encontravam nem qualquer outro.
Ante situação angustiante em que se achavam, alguns se dirigiram à embaixada brasileira, sendo atendidos por Guido, que se compadeceu deles. Deu-lhes roupas e cobertores, não da embaixada, mas de sua casa e comprava comida para eles com seu salário. Não importava se fossem subversivos e banidos, mas eram seres humanos necessitados e famintos. Eram, ademais, cidadãos brasileiros, e era vexatório para o Brasil que seus cidadãos exercessem a mendicância em outro país. Para alguém de espírito elevado e de sentimentos nobres como Guido, não era suportável ver seres humanos passarem fome e dormirem ao relento sem apiedar-se.
Seu gesto magnânimo teve repercussão no Brasil e o autor desses atos de benemerência foi preso e reconduzido ao Brasil para ser processado por alta traição. Os franceses tem um sugestivo provérbio: À quelque chose malheur est bon = para alguma coisa a desgraça serve. E o direito saiu ganhando: o Brasil perdeu um grande diplomata, mas ganhou de volta um grande jurista. E o dedicado mestre voltou à cátedra de Direito Internacional da FADUSP, de onde nunca deveria ter saído. Sua matéria era o Direito Internacional e a própria arbitragem era examinada na área internacional, uma vez que ela inexistia no Brasil. A época a que estamos nos referindo era no lustro de 1975-1980, ou seja, bem antes da Lei 9.307, de 1996. E a arbitragem desabrochava no Brasil graças a essa lei e à fundação da Associação Brasileira de Arbitragem-ABAR.
O grande engajamento de Guido na Arbitragem se deu, porém, por um fato fortuito. Ele substituiu o cônsul brasileiro em Genebra, na Suíça, na época em que surgiu um conflito de interesses que haveria de abalar a arbitragem, conhecido como o caso ARAMCO, envolvendo a maior empresa petrolífera do mundo, a Saudi Arabian Oil Company-ARAMCO, o maior país produtor de petróleo do mundo, a Arábia Saudita, e Aristóteles Onassis, o maior transportador de petróleo do mundo. O valor da causa envolvia valores inimagináveis. Esse conflito iria provocar agitação ímpar nos meios jurídicos, mas econômicos e políticos.
As partes se entenderam e firmaram compromisso arbitral, decidindo submeter as divergências entre elas a um tribunal arbitral. Cada uma das partes indicou um professor de direito internacional da Universidade do Cairo e ambos escolheram como presidente do tribunal um professor da Universidade de Genebra. A realização da arbitragem se deu em Genebra, onde eventualmente Guido se encontrava servindo, tendo sido escolhido como secretário da operação arbitral. Essa operação foi descrita em apostila publicada pela FADUSP, que foi traduzida para vários idiomas e circulou pelo mundo. O fato deu enorme impulso à arbitragem no mundo inteiro e Guido foi autorizado e dar divulgação do evento.
Felizmente, ainda no Governo Militar, o Brasil reconheceu a forma injusta e intolerante com que agiu com esse emitente jurista. Pouco a pouco foi sendo reabilitado e ganhou apoio oficial, sendo indicado pelo Governo brasileiro como seu representante em vários eventos, principalmente internacionais. Foi guindado ao quadro de árbitros da Corte Permanente de Arbitragem, principal órgão arbitral de direito público, situado em Haia. Integrou ainda a Corte Arbitral da OMC – Organização Mundial do Comércio e da WIPO – World Intellectual PropertyOrganization, os mais pujantes organismos de Direito Internacional Público.
Também no plano interno seu valor foi reconhecido, ao ser convidado para participar de cortes arbitrais de muitas instituições brasileiras, grande parte delas integradas ou dirigidas por seus ex-alunos. No momento em que a arbitragem está sendo refugada, combatida e desprezada, exatamente pela sua eficácia e pela força que ela representa, é sempre lembrada a expressão comumente citada pelo preclaro educador na década de 1970-1980: cedo ou tarde a arbitragem penetrará no Brasil e aqui imperará, pois o progresso não caminha para trás.
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