Contratar com pessoas jurídicas de direito público, na prática, pode consubstanciar-se em bom ou mau negócio, dependendo de diversos fatores que fogem da análise proposta pelo presente artigo. O fato é que, por vezes, as pessoas jurídicas de direito público não honram seus pagamentos na data aprazada, causando, com isso, diversos transtornos orçamentários para os particulares que confiaram e contrataram com tais entes públicos, aceitando se submeterem a um regime jurídico-administrativo que afasta, em diversos pontos, a aplicação do regime privado e geral das obrigações e contratos.
Alguns empresários, diante da impontualidade da Administração Pública, vêm sacando (emitindo) duplicatas contra a respectiva pessoa jurídica de direito público com a qual contrataram o fornecimento de mercadorias ou prestação de serviços. Dessa forma, tais empresários buscam, indevidamente, se valer do regime jurídico das duplicatas para cobrarem um crédito que têm, pelo menos em tese, contra alguma pessoa jurídica de direito público.
Pois bem, a duplicata é um título de crédito genuinamente brasileiro, emitido (sacado) pelo próprio credor com base nos dados constantes de fatura oriunda de contrato de compra e venda de mercadorias ou de prestação de serviços, desde que tais negociações tenham sido realizadas entre empresários e, portanto, perfaçam contrato do tipo empresarial ou mercantil.
Atualmente, a emissão, circulação e cobrança das duplicatas é matéria tratada pela Lei 5.474/68, também conhecida por “Lei das Duplicatas”. No que tange à emissão de duplicata relativa à compra e venda mercantil, o caput do art. 1º c/c o caput do art. 2º da referida lei dispõem, in verbis:
Art. 1º Em todo o contrato de compra e venda mercantil entre partes domiciliadas no território brasileiro, com prazo não inferior a 30 (trinta) dias, contado da data da entrega ou despacho das mercadorias, o vendedor extrairá a respectiva fatura para apresentação ao comprador.
Art. 2º No ato da emissão da fatura, dela poderá ser extraída uma duplicata para circulação como efeito comercial, não sendo admitida qualquer outra espécie de título de crédito para documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador.
Da leitura dos dispositivos legais supra-transcritos, infere-se que somente é admitida a emissão de duplicatas quando se tratar de compra e venda mercantil, isto é, compra e venda em que figurem empresários em ambos os pólos da relação contratual firmada. Ou seja: deve haver “empresário vendendo” e “empresário comprando” para que se configure o contrato de compra e venda mercantil. Nesse sentido, mister transcrever os ensinamentos de Fábio Ulhoa Coelho, ipsis litteris:
“A compra e venda é mercantil, no direito brasileiro, quando celebrada entre dois empresários. Quando vigia o Código Comercial de 1850, a mercantilidade deste contrato dependia do atendimento de três requisitos: subjetivo, objetivo e finalístico. O primeiro, pertinente às qualidades dos contratantes, determinava que fosse empresário o comprador ou o vendedor. O segundo restringia aos bens móveis ou semoventes o objeto do contrato. O último requisito da mercantilidade da compra e venda dizia respeito aos objetivos do negócio, que deveriam ser os de inserir o bem adquirido na cadeia de escoamento de mercadorias. Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a caracterização da compra e venda mercantil passa a depender apenas da condição de empresário dos dois contratantes. Toda compra e venda em que o comprador e vendedor são empresários chama-se mercantil e é estudada pelo direito comercial. A qualidade da coisa objeto do contrato (sempre uma mercadoria) e a finalidade da operação (circulação de mercadorias) são decorrências deste requisito subjetivo.” (2007: 54-55)
Sendo assim, não há que se falar em emissão de duplicata por empresário visando materializar eventual crédito advindo de venda realizada a quaisquer das pessoas jurídicas de direito público. Repita-se: só há compra e venda mercantil quando tal ajuste for celebrado entre empresários.
A contrario sensu, se em um dos pólos do contrato de compra e venda há a presença de um não-empresário, descaracterizada estará a compra e venda mercantil e, consequentemente, será inadmissível a emissão de duplicata, nos termos do caput do art. 1º c/c o caput do art. 2º, ambos da Lei 5.474/68.
Pois bem, em se tratando de contrato administrativo, há algumas características que lhes são peculiares, conforme bem sintetizado por Maria Sylvia Zanella di Pietro (2002: 249): (a) presença da Administração Pública como Poder Público; (b) finalidade pública; (c) obediência à forma prescrita em lei; (d) procedimento legal; (e) natureza de contrato de adesão; (f) natureza intuitu personae; (g) presença de cláusulas exorbitantes; (g) mutabilidade.
Nos termos do art. 54 da Lei 8.666/93, aos contratos administrativos, somente eventualmente é que haverá de se aplicar os preceitos da teoria geral dos contratos e do direito privado (incluindo aqui o Direito Comercial/Empresarial), mas sempre em caráter supletivo, senão veja-se:
Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.
E mais: por ser um contrato administrativo, o ajuste celebrado entre um empresário e qualquer pessoa jurídica de direito público é denominado de contrato de fornecimento (e não de “compra e venda”), consoante preceitos contidos na Lei 8.666/93. Sobre o tema, José dos Santos Carvalho Filho (2004: 166) é bem elucidativo, in verbis:
“[os contratos de fornecimento] são aqueles que se destinam à aquisição de bens móveis necessários à consecução dos serviços administrativos. A Administração, para atingir seus fins, precisa a todo momento adquirir bens da mais variada espécie, e isso pela simples razão de que múltiplas e diversificadas são as suas atividades. De fato, e apenas para exemplificar, é necessário adquirir medicamentos, instrumentos cirúrgicos e hospitalares, equipamentos, etc, se o objetivo é a assistência médica; material escolar, carteiras, etc., se o Estado visa à atividade de educação, e assim também para as demais atividades.
Cuida-se, na verdade, de contrato de compra e venda, tal como existente no campo do direito privado e por este regido em algumas de suas regras básicas, com a ressalva, é óbvio, da incidência normativa própria dos contratos administrativos.”
Nesse sentido, atestando a diferença entre o “contrato de fornecimento” e a “compra e venda mercantil”, há um brilhante acórdão do e. Tribunal Regional Federal da 4ª Região declarando a impossibilidade de emissão de duplicatas para serem pagas pela Fazenda Pública em decorrência da execução de contrato de fornecimento, senão veja-se:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL CONTRA FAZENDA PÚBLICA. CABIMENTO. DUPLICATA. INEXISTÊNCIA DE TÍTULO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. REMESSA OFICIAL.
Não há remessa oficial de sentença que rejeita embargos à execução opostos pela Fazenda Pública. Precedentes do Pleno. Pacificou-se a jurisprudência quanto à possibilidade de execução por título executivo extrajudicial contra a Fazenda Pública. Precedentes do STJ. Não é possível a emissão de duplicata de venda mercantil contra a Fazenda Pública porque a Administração deve obedecer aos princípios do Direito Administrativo, notadamente o prévio procedimento no qual fica justificada a modalidade de licitação – ou sua dispensa, se for o caso – e a competente fonte orçamentária.
(TRF da Quarta Região. Terceira Turma, Apelação Cível 200004010338135/RS, Rel. Sérgio Renato Tejada Garcia, DJU de 09/08/2000)
Mutatis mutandis, o que se argumentou até aqui, mormente no que tange ao regime especial do contrato administrativo, também é aplicável quando se tratar de duplicata emitida com base em contrato de prestação de serviços, nos termos do art. 20 da Lei 5.474/68, in verbis:
Art. 20. As empresas, individuais ou coletivas, fundações ou sociedades civis, que se dediquem à prestação de serviços, poderão, também, na forma desta lei, emitir fatura e duplicata.
§ 1º A fatura deverá discriminar a natureza dos serviços prestados.
§ 2º A soma a pagar em dinheiro corresponderá ao preço dos serviços prestados.
§ 3º Aplicam-se à fatura e à duplicata ou triplicata de prestação de serviços, com as adaptações cabíveis, as disposições referentes à fatura e à duplicata ou triplicata de venda mercantil, constituindo documento hábil, para transcrição do instrumento de protesto, qualquer documento que comprove a efetiva prestação, dos serviços e o vínculo contratual que a autorizou.
Com efeito, ainda que o art. 20 da Lei 5.474/68 não se restrinja a admitir a emissão de duplicata somente por empresário (seja o empresário individual ou a sociedade empresária), pois que permite que também o façam as fundações e as sociedades simples (antigas sociedades civis) que se dediquem à prestação de serviços, o fato é que tais contratos de prestação de serviço serão considerados contratos administrativos e, portanto, regidos pelas regras especiais do regime jurídico-administrativo.
Pois bem, como se só não bastasse, chama-se atenção para o fato de que se se admitisse a emissão (saque) de duplicata por um empresário contra pessoa jurídica de direito público, ter-se-ia a inusitada situação teratológica de um credor particular (empresário) emitindo um título de crédito em seu próprio benefício (duplicata), para ser honrado por uma pessoa jurídica de direito público, sem que haja prévia autorização legal para tanto.
Ora, é mais que sabido que a duplicata tem uma particularidade que a diferencia da maioria dos títulos de crédito, qual seja, o fato de que quem a emite é o próprio credor-beneficiário (e não o devedor). Nesse sentido, confiram-se os ensinamentos de Gladston Mamede, in verbis:
“A duplicata é um título que é emitido pelo credor, declarando existir, a seu favor, um crédito de determinado valor em moeda corrente, fruto – obrigatoriamente – de um negócio empresarial subjacente de compra e venda de mercadorias ou de prestação de serviços, cujo pagamento é devido em determinada data (termo). É um título causal, vale dizer, um título cuja emissão está diretamente ligada a um negócio empresarial que lhe é subjacente e necessário.” (2006: 302)
Daí que, é totalmente absurdo aplicar, analogicamente, o regime legal das duplicatas ao Poder Público, pois este estaria se vinculando a credores-particulares de acordo com a exclusiva vontade unilateral destes.
Ante o princípio basilar da supremacia do interesse público sobre o particular, somente seria admissível aplicar o regime das duplicatas ao Poder Público, caso houvesse lei prevendo, expressamente, tal possibilidade.
De mais a mais, a impossibilidade jurídica de emissão de duplicatas contra as pessoas jurídicas de direito público é mais evidente, ainda, quando se realiza uma interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico pátrio.
Com efeito, tanto não podem os empresários emitir (sacar) duplicatas contra as pessoas jurídicas de direito público que, recentemente, foi preciso que a Lei Complementar 123/06 (Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) criasse um título de crédito específico para ser emitido pelo credor-empresário contra as pessoas jurídicas de direito público – trata-se da chamada cédula de crédito microempresarial.
Contudo, somente pode emitir a referida cédula de crédito microempresarial o credor regularmente enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte e, ademais, desde que exista empenho em seu nome, já devidamente liquidado e com 30 dias de atraso no pagamento, senão veja-se a redação do art. 46 da Lei Complementar 123/06:
Art. 46. A microempresa e a empresa de pequeno porte titular de direitos creditórios decorrentes de empenhos liquidados por órgãos e entidades da União, Estados, Distrito Federal e Município não pagos em até 30 (trinta) dias contados da data de liquidação poderão emitir cédula de crédito microempresarial.
Parágrafo único. A cédula de crédito microempresarial é título de crédito regido, subsidiariamente, pela legislação prevista para as cédulas de crédito comercial, tendo como lastro o empenho do poder público, cabendo ao Poder Executivo sua regulamentação no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da publicação desta Lei Complementar.
Ademais, destaque-se que parágrafo único do transcrito art. 46 da Lei Complementar 123/06 ressalva que somente poderão as microempresas e empresas de pequeno porte emitir cédulas de crédito microempresarial após o Poder Executivo regulamentar a matéria – o que deveria ser realizado no prazo de 180 (dias) da publicação da referida lei complementar, mas não o foi até a presente data.
Sobre o tema, Irene Patrícia Nohara chama atenção para a ineficácia prática do art. 46 da Lei Complementar 123/06 enquanto não regulamentado pelo Poder Executivo, nos seguintes termos:
“Essa regra, contudo, não tem aplicabilidade imediata, pois cabe ao Poder Executivo a sua regulamentação. De qualquer forma, a cédula de crédito microempresarial é título de crédito regido subsidiariamente pela legislação prevista para as cédulas de crédito comercial. Trata-se, portanto, de título executivo extrajudicial, assim, seu sacador ou quem com ele tenha negociado o papel, mediante o endosso, poderá mover contra o Estado execução de título extrajudicial, sem a necessidade de ingressar com ação de conhecimento, que se presta à obtenção de título judicial. Trata-se de alternativa legítima na medida em que a Súmula nº 279 do STJ determina que ‘é cabível execução por título extrajudicial contra a Fazenda Pública.’
[...]
Em suma, a autorização de saque da cédula de crédito microempresarial constitui relevante esforço para que, persistindo a inadimplência do Poder Público, se torne mais célere o acesso ao crédito correspondente. Resta, porém, aguardar como o Poder Público regulamentará o macanismo para que, diante das restrições decorrentes da matéria de execução contra a Fazenda, a cédula de crédito microempresarial torne-se atraente e, consequentemente, seja garantida a sua circulação.” (MAMEDE; MACHADO SEGUNDO; NOHARA; MARTINS, 2007: 300-301)
Em outras palavras, atualmente, não é admissível (ainda) a emissão da cédula de crédito microempresarial contra pessoas jurídicas de direito público. Não obstante, analisando o art. 46 da Lei Complementar 123/06, podemos inferir, teleologicamente, que se fosse possível a emissão de duplicatas contra pessoas jurídicas de direito público, com certeza, não haveria necessidade de se criar o referido título de crédito denominado “cédula de crédito microempresarial”.
Daí que, ante a impossibilidade de emissão de duplicatas contra o Poder Público, o legislador infra-constitucional, visando conferir tratamento favorecido, diferenciado e simplificado às microempresas e empresas de pequeno porte, autorizou que tais empresários emitissem (sacassem), como credores, título de crédito a ser honrado pelo Poder Público, qual seja, a cédula de crédito microempresarial prevista no art. 46 da Lei Complementar 123/06.
Destarte, dúvidas não há quanto à impossibilidade jurídica de emissão de duplicatas contra as pessoas jurídicas de direito público, devendo o Poder Judiciário reprimir exemplarmente a prática daqueles que, para cobrar seus eventuais créditos em face do Poder Público, resolvem forçar, analogicamente, a aplicação do regime de duplicatas a relações jurídico-administrativas.
REFERÊNCIAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v.1.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006. v. 3.
MAMEDE, Gladston; MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito; NOHARA, Irene Patrícia; MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários ao Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. São Paulo: Atlas, 2007;
Mestre em Direito Agrário e Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Especialista em Direito Processual pelo Axioma Jurídico. Professor da Especialização em Direito Empresarial do Instituto Goiano de Direito Empresarial (IGDE). Palestrante da Escola Superior de Advocacia da OAB-GO. Procurador do Estado de Goiás. Advogado em Goiânia. [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PINHEIRO, Frederico Garcia. Da emissão de duplicata contra o poder público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2008, 08:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/122/da-emissao-de-duplicata-contra-o-poder-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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