O boleto bancário e sua natureza jurídica
O boleto bancário, instrumento amplamente utilizado nos dias atuais, é reputado como meio facilitador de pagamento a ser feito do devedor para o credor, trazendo celeridade muito superior nas relações mercantis em comparação às duplicatas.
Saliente-se que o boleto bancário apresenta requisitos de identificação que torna único o pagamento efetuado, direcionado a adimplir a obrigação perante o credor. Requisitos estes como as palhetas pretas com variação milimétrica e a numeração estabelecida na parte superior, bem como a indicação específica do valor, data de vencimento e o cedente.
Normativamente, o Banco Central do Brasil através do Manual de Normas e Instruções do Banco Central (MNI), Título 2, Capítulo 13, Seção 3, indica a finalidade e o conceito do boleto bancário, chamado de bloqueto de cobrança:
“O Bloqueto de Cobrança deve ser utilizado para fins de registro de dívidas em cobranças nas instituições financeiras, relacionadas com operações de compra e venda ou de prestação de serviços, inclusive daquelas atinentes a efeitos de cobrança, tais como duplicatas, notas promissórias, bilhetes ou notas de seguros, de forma a permitir o pagamento da dívida-objeto em instituição financeira distinta da cobradora.”
A respeito da natureza jurídica do bloqueto de cobrança (boleto bancário), este considera-se como documento representativo de dívida, formalizado por uma cártula (documento que pode ter quantas vias forem necessárias) em que consta itens específicos e indispensáveis regulamentados pelo Banco Central do Brasil.
Princípios cambiários gerais
O conceito de título de crédito consagrado por Cesare Vivante: "Título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito, literal e autônomo, nele mencionado". Este conceito foi incorporado ao Código Civil de 2002 situado no artigo 887, que adicionou a necessidade da presença dos requisitos legais para a caracterização como título de crédito.
Esta famosa conceituação traz consigo princípios basilares do direito cambiário, quais sejam, a autonomia, literalidade e cartularidade. Ademais, inclua-se o princípio da legalidade/tipicidade.
A autonomia, conforme Wille Duarte Costa, bifurca-se em autonomia do direito e autonomia das obrigações, em que o primeiro corresponderia à autonomia do direito do atual possuidor com os possuidores anteriores, tendo como corolário o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais – em que o devedor não poderá opor defesas pessoais contra terceiros de boa-fé que não fazem parte da mesma relação jurídica – ao passo que o segundo diz respeito à autonomia das obrigações existentes na cártula, sendo que a obrigação nula não afeta as demais (COSTA, 2008, p.73).
Ressalte-se que o princípio da abstração é visto como consequência lógica do princípio da autonomia, sendo que, em regra os títulos de créditos são não causais, ou seja, independe da relação originária entre o emitente e o possuidor como terceiro de boa-fé do título, isto é, a obrigação de pagamento do título independe do negócio originário. A exceção é a duplicata, vinculada à relação jurídica de fornecimento de mercadoria ou prestação de serviços.
Quanto à cartularidade, este princípio corresponde à materialização do título de crédito em papel, que garante a certeza de quem seja efetivamente o credor da obrigação. A posse do título – não sendo aceito cópia autenticada – é requisito imprescindível ao exercício do direito incorporado ao título de crédito, seja para propor ação cognitiva (referente a título prescrito) ou executiva.
Acerca do princípio da literalidade explicita que para ser inserida no mundo cambiário, a obrigação deverá estar inserida no título de crédito expressamente, ou seja, inexiste obrigação cambiária sem a menção expressa na cártula objeto de relação jurídica.
Outrossim, é de se mencionar o princípio da legalidade/tipicidade, em que a cártula deve estar previsto na lei para ser reputado como título de crédito, com a chamada “cláusula cambiária”, ou seja, constar no corpo da cártula a nomenclatura do título de crédito correspondente.
Análise confrontação entre o boleto bancário e os princípios cambiários
No que toca à adequação dos princípios cambiários aos boletos bancários, cabe aqui uma confrontação entre ambos, a fim de aferir eventuais semelhanças e incompatibilidades quanto às peculiaridades dos bloquetos de cobrança e os títulos de crédito.
A respeito da cartularidade aplicada ao boleto bancário, ressalte-se que este poderá ou não ser consubstanciado em papel, sendo que as particularidades inerentes ao boleto bancário não necessitam de constar em meio físico para sua existência jurídica, podendo ser pago por meio eletrônico pelo código de barras através de leitor óptico ou da numeração que consta na parte superior do bloqueto de cobrança.
Por outro viés, o princípio da literalidade é inerente ao boleto bancário, conforme Vinícius Paulo Mesquita:
“[...] o Boleto Bancário é um documento literal eis que somente o que nele está lançado poderá ser tido como contratado, ou seja, somente o que consta do Boleto poderá obrigar o devedor ou o próprio credor. Assim não poderá o devedor efetuar o pagamento após o prazo alegando dilação do vencimento nem o credor cobrar o documento antes de seu termo sustentando o vencimento antecipado da dívida sem que qualquer das hipóteses conste do documento de dívida.”
Com referência ao princípio da autonomia, atrelado ao instituto do endosso, próprio do direito cambiário, apreende-se que o bloqueto de cobrança (boleto bancário) não é passível de endosso, e, por conseguinte, não poderá ser transmitido a terceiros.
Dessa feita, o boleto bancário carece de autonomia, sendo eminentemente causal, vinculado a uma relação jurídica transcendente à representação do bloqueto de cobrança.
O princípio da legalidade/tipicidade que exige previsão legal para a existência de título de crédito, também não apresenta consonância com relação aos boletos bancários, pois estes foram instituídos por Carta Circular do Banco Central do Brasil, ou seja, mero ato normativo desprovido da natureza de lei em sentido estrito.
Ademais, saliente-se que o boleto bancário não poderá ser reputado como título atípico – conforme aberta a possibilidade pelo Código Civil Brasileiro – em razão da inexistência de qualquer assinatura indicada no documento.
Portanto, nenhum dos princípios cambiários apresentam adequação ao boleto bancário, não havendo qualquer semelhança entre a natureza jurídica dos títulos de crédito e dos bloquetos de cobrança.
Protesto por indicação de boleto bancário
O protesto de boleto bancário, prática usual nos dias atuais, é realizado por meio da indicação dos dados identificadores constantes de duplicata ou letra de câmbio retida pelo devedor. No entanto, a Lei dos Protestos (Lei 9.492/97) no artigo 21, § 3º, indica que necessariamente deverá existir a segunda via do título de crédito para proceder ao protesto por indicação.
Desse modo, o protesto de boleto bancário poderá ser considerado como indevido, não havendo título de crédito correlacionado ao documento. Nesse sentido o Tribunal de Justiça de Minas Gerais se manifestou recentemente:
“EMENTA: AÇÃO CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO - DUPLICATA - PROTESTO POR INDICAÇÃO - POSSIBILIDADE DESDE QUE HAJA A RETENÇÃO INJUSTIFICADA DO TÍTULO PELO SACADO - NÃO DEMONSTRAÇÃO - PROTESTO INDEVIDO - SENTENÇA MANTIDA. - A jurisprudência pátria somente tem aceitado o protesto por indicação, com base nos boletos bancários emitidos a partir da nota fiscal, caso seja a duplicata remetida ao sacado e este, sem justificativa, retém o título. (grifos nossos). V.v. EMENTA: AÇÃO PRINCIPAL E CAUTELAR- SENTENÇA ÚNICA - PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. Segundo o princípio da unirrecorribilidade, também denominado "unicidade", cada decisão jurisdicional desafia um só recurso com a mesma finalidade. (Desembargadora Revisora - vencida) – Apelação Cível nº 1.0024.07.386530-5/001. Relator: Desembargador Wanderlei Paiva. Data de Julgamento: 05/09/2012. Data de Publicação: 17/09/2012)
Destarte, a realização de protesto por meio de boleto bancário é conduta temerária, podendo ocasionar dano moral decorrente do protesto indevido, por não encontrar amparo legal e respaldo jurisprudencial para a caracterização de prova de inadimplência e o descumprimento de obrigação.
Notas Conclusivas
Como explanado acima, o bloqueto de cobrança, ou como é popularmente conhecido, o boleto bancário não apresenta as características inerentes aos títulos de créditos, corroborados estes por princípios cambiários que traduzem a repercussão jurídica das relações autônomas decorrentes dos títulos de crédito.
Impende mencionar que, em razão do boleto bancário não ser título de crédito e, por conseguinte, título executivo, será necessário a utilização de procedimento monitório, nos termos do artigo 1.102-A do Código de Processo Civil, servindo a nota fiscal e o boleto bancário como prova escrita a pleitear reparação por instrumento processual de cognição sumária.
Nessa medida, o boleto bancário cumpre sua função atribuindo agilidade ao adimplemento de obrigações quanto às relações jurídicas, no entanto, carece de força cambiária inerente apenas aos títulos de crédito.
Referências
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. II. Lúmen Júris. 12ª edição. Rio de Janeiro, 2006.
COSTA. Wille Duarte. Títulos de Crédito. 3ª ed. rev. atual. ampl., Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
MESQUITA, Vinícius Paulo. Legalidade do Protesto de Boleto Bancário. Universo Jurídico, Juiz de Fora, ano XI, 18 de set. de 2006.Disponivel em: <http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/2665/legalidade_do_protesto_de_boleto_bancario >. Acesso em: 19 out 2012.
LOPES, Rodrigo Forlani. PERINO, Fernando do Amaral. Emissão de duplicatas, boletos bancários e suas consequências. Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI117412,31047-Emissao+de+duplicatas+boletos+bancarios+e+suas+consequencias> Acesso em: 17 out 2012.
VIVANTE. Cesare. Instituições de Direito Comercial. LZN editora. 3ª edição. Tradução de Rocardo Rodrigues Gama. Campinas. 2003.
Advogado Especialista e Consultor Jurídico.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Marco Túlio Rios. O boleto bancário e os princípios cambiários: análise e confrontações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2012, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1343/o-boleto-bancario-e-os-principios-cambiarios-analise-e-confrontacoes. Acesso em: 26 nov 2024.
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