1. Dolo e motivo de honra
O motivo de honra no crime de exposição de recém-nascido - elemento subjetivo do tipo - tem sido associado pela doutrina, a título de implicação lógica, ao dolo direto. É o que se lê, dentre outros, em Álvaro Mayrink da Costa, p. 198; Damásio E. de Jesus, p. 150; e Celso Delmanto, p. 256. O agente precisaria, para ocultar desonra própria, querer diretamente a exposição ou abandono. E mais: sem assumir, com a conduta, o risco de matar. Se é verdade que o legislador "considerou o ato de abandono como delito autônomo de perigo", também é verdade, como lembra Juarez Tavares, que não descartou "a hipótese de que esse mesmo ato já constitua por si mesmo início de execução do homicídio ou das lesões corporais, dependendo do dolo do sujeito"( p. 95).
Surge porém uma dificuldade: o que fazer com a exposição ou abandono de recém-nascido praticado com dolo eventual? O enquadramento no delito anterior (CP, art. 133), que é mais grave, constituiria um disparate, uma vez que o dolo eventual se situa num patamar de menor censurabilidade ética. Sendo assim, numa primeira tentativa de solução técnico-jurídica, ou se reconhece a ausência de crime, por imprevisão do sistema (lex specialis) ou se busca o socorro do art. 132. Semelhantemente, é o que se passa com a morte culposa no infanticídio. Admitida a prevalência da regra especial - o infanticídio só existe na forma dolosa - então não haveria crime. Outra seria a solução caso se entendesse que o homicídio culposo exerce função supletiva (interpretação lógico-sistemática).
Pessoalmente, contudo, não vejo incompatibilidade lógica entre motivação (fim) e dolo eventual. Ambos se situam em planos distintos da subjetividade. Em defesa do art. 134, lembra Nélson Hungria a importância do critério político inerente à punição preconizada: "A concessão do privilegium, na espécie, é um estímulo para que o agente não vá até a ocisão do recém-nascido, isto é, até a prática de um malefício mais grave. Se nele o instinto de piedade não é suficientemente forte para movê-lo ao sacrifício da própria honra, que prefira, então, entre os dois males, o menor, porque a pena lhe será grandemente atenuada"( p. 437).
Aí está: o agente poderia extrapolar o dolo direto de perigo e agir com dolo eventual de homicídio. Neste caso, em que persiste a motivo de honra, mas inexiste dolo direto em relação à morte, deve ser afastada a figura do homicídio doloso, tentado ou consumado? Haveria um "espaço vazio" a demandar a impunidade?
A resposta é imediata: permanece o delito de homicídio; não há espaço vazio algum. Afinal de contas, é visível o caráter preterdoloso da morte prevista no art. 134, § 2°. E não cabe desclassificação para lesão corporal seguida de morte, expressamente proibida (art. 129, § 3°, in fine). Logo, se o motivo de honra convive com o dolo eventual de homicídio, igualmente se mostra compatível com o dolo eventual de abandono ou exposição de recém-nascido.
Para agir, aliás, com o fim (motivo) de esconder uma desonra, nem ao menos se precisa praticar delito. A mãe pode, às escondidas, sem perigo para o filho, depositá-lo em uma instituição de caridade. E também existe crime meramente culposo relacionado com motivo nobre, altruístico. O motorista que dirige atabalhoadamente, mas para salvar a vida ou saúde de outrem, a quem está socorrendo, comete homicídio culposo ao matar um pedestre (CTB, art. 302). Não é difícil notar a separação entre o motivo (fim) da conduta, a preservação da vida ou da saúde, e o seu resultado: a morte culposa de uma terceira pessoa.
Veja-se também a hipótese de quem desfere tiros de revólver contra a testemunha ocular de um crime. Pergunta-se: desaparece a forma qualificada (art. 121, § 2°, V) se fica demonstrado exclusivamente o dolo eventual de homicídio? Não, não desaparece, e isso mais uma vez comprova que o fim (motivo) da conduta não se confunde com o dolo. O indivíduo que, "para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime"(art. 121, § 2°, V), atira contra o corpo da vítima com dolo alternativo de lesão corporal ou homicídio (dolo eventual) não pode ser beneficiado com o reconhecimento do homicídio simples, em havendo morte. Se a própria lesão corporal já garantiria a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime, por que a morte, conseqüência prevista e previamente acatada, perderia sua vinculação teleológica ao dolo e conduta do homicida?
Em suma, diante das interpretações possíveis: art. 133; art. 132; ausência de crime; e persistência do próprio art. 134, prefiro esta última, que reputo mais razoável e consentânea com o sistema do Código. Este não distingue entre dolo direto e dolo eventual (art. 18, I); dolo e motivo não se confundem; e a missão do intérprete é a de apontar, no objeto em exame, a solução que mais se aproxime da estrutura normativa desse mesmo objeto, de sua razão de ser. O cerne do delito (art. 134) não está no dolo direto, mas no motivo de honra. O motivo de honra, aliás, conforme aludi em outro texto (p. 29), facilita a compreensão de que o tipo exige afastamento físico entre sujeito ativo e recém-nascido. Sendo assim, no exame do próximo item, interessa de perto o abandono após e, não, durante o parto.
2. Formas qualificadas. Estado puerperal.
Com a vigência da nova Parte Geral (Lei 7.209/84) já não cabe discutir a natureza dos resultados que qualificam o crime do art. 134. Tanto a lesão corporal de natureza grave (§ 1°) quanto a morte do recém-nascido (§ 2°) têm caráter preterdoloso (art. 19). Quer dizer, de uma conduta exclusivamente de perigo (dolo de perigo) resulta lesão corporal de natureza grave (detenção, de 1 a 3 anos) ou morte (detenção, de 2 a 6 anos).
Impossível, neste último caso, a menor confusão com o delito do art. 123, apesar da identidade das penas. No infanticídio, a mãe, durante o parto ou logo após, agindo sob a influência do estado puerperal, mata dolosamente o próprio filho (dolo direto ou dolo eventual). Há dolo de dano e resultado de dano. Na hipótese do art. 134, § 2°, não se descarta nem se exige, numa primeira leitura, a influência do estado puerperal, sendo sempre imprescindível que o dolo da puérpera se limite ao resultado de perigo inerente ao abandono ou exposição do recém-nascido. Trata-se, pois, é bom insistir, de crime preterdoloso: dolo de perigo (abandono ou exposição) e culpa quanto ao resultado (morte).
É preciso, porém, aprofundar o exame da matéria. O infanticídio (art. 123), traduzindo norma especial, descarta a punibilidade do "homicídio" culposo e, por extensão, das formas simples e qualificadas dos crimes de perigo. Basta que se atente para o fato de que se mãe, durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal, atua com dolo de lesões corporais e, por culpa, provoca a morte do filho - CP, art. 129, § 3° - não poderia ser condenada ao dobro (!) das penas de um delito por natureza mais grave, o próprio infanticídio! E com mudança, para pior, da qualidade das penas: de detenção para reclusão!
A mulher sob a influência do estado puerperal, segundo Victor Eduardo Rios Gonçalves, "definitivamente não pode ter sua conduta comparada à do homem médio, já que a perturbação psíquica por que passa retira dela a capacidade de agir com as cautelas comuns nos seres humanos" (p. 41). É esta, pelo menos, a premissa da lei.
Assim, por desatenção do legislador - ou propositadamente? - o fato palpável é que não há crime de abandono, ou qualquer outro delito de perigo, se a mãe procede sob a influência do estado puerperal, durante o parto ou logo após.
Note-se ainda que a punição por infanticídio exige o dolo de matar. Nada obstante, as penas se mostram suaves. Logo, na essência do tipo, a própria mãe seria um tanto surpreendida pela repentina eclosão de uma vontade até então oculta, ou inconsciente.
Ora, quem mata o filho que acabou de nascer, na grande maioria das vezes, já o faz de cabeça pensada, na seqüência de um plano que se urdiu e acalentou com antecedência, durante a gestação. A dolosa ocisão do neonato não seria então infanticídio, mas homicídio.
Da mesma forma, um abandono previamente programado, fora da súbita influência do estado puerperal, se encaixa à perfeição nos dispositivos legais: arts. 133 ou 134. Além disso, o "logo após" do art. 123 não corresponde matematicamente ao tempo relacionado com a idéia de "recém-nascido". Esgotado esse "logo após", não há que se fugir da regra geral do Código (arts. 133 ou 134), mesmo que permaneça o tão famoso quão desacreditado "estado puerperal".
Em síntese: não agindo a mãe sob a influência do estado puerperal, pratica o delito de abandono (art. 133 ou art. 134) em sua forma simples ou qualificada, hipótese que ocorre igualmente, apesar do estado puerperal, se o afastamento do filho se passa fora do lapso de tempo inerente ao "logo após". Não comete, no entanto, delito algum se existe relação de causa e efeito (influência) entre o estado puerperal e o abandono (ou qualquer conduta perigosa: dolo de perigo) praticado durante o parto ou logo após.
Referências bibliográficas
CALDEIRA BASTOS, João José. "Delito de abandono de incapaz: anotações teórico- dogmáticas e crítico-metodológicas", Revista Álter Ágora nº 5. Florianópolis: UFSC, Fundação José Arthur Boiteux, fevereiro de 1999.
DELMANTO, Celso. Código penal comentado, 2a ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1988.
GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Dos crimes contra a pessoa, 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, V, 4a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1948.
JESUS, Damásio E. Direito penal, II, 13a ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Direito penal: parte especial, II. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Rio de Janeiro: Instituto Latino-Americano de Cooperação Penal, 1996.
Professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BASTOS, João José Caldeiras. Crime de exposição ou abandono de recém-nascido: dolo e estado puerperal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 dez 2008, 10:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/141/crime-de-exposicao-ou-abandono-de-recem-nascido-dolo-e-estado-puerperal. Acesso em: 22 nov 2024.
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