Em setembro de 2004, o ensino jurídico deparou-se com uma nova norma jurídica que veio a substituir a Portaria 1886 de dezembro de 1994, a Resolução no. 9 do Conselho Nacional de Educação – MEC.
A Portaria do MEC no. 1.886 de 1994 tratava de regulamentar o ensino jurídico no Brasil, estabelecendo as normas mínimas para funcionamento dos cursos jurídicos.
Dentre essas normas, podemos destacar o art. 11 que ao tratar das atividades de estágio supervisionado assim se manifestava:
“Art. 11 as atividades do estágio supervisionado serão exclusivamente práticas, incluindo redação de peças processuais e profissionais, rotinas processuais, assistência e atuação em audiências e sessões, visitas a órgãos judiciários, prestação de serviços jurídicos e técnicas de negociações coletivas, arbitragens e conciliação, sob o controle, orientação e avaliação do núcleo de prática jurídica.” (grifo nosso).
A Portaria do MEC no. 1.252 de 2001 apresentou as diretrizes curriculares a que se refere a Portaria do MEC no. 1.886 de 1994, e dentre as diretrizes apresentadas nos deparamos com a do Estágio de Prática Jurídica, assim determinando que:
“As atividades simuladas e reais do estágio de prática jurídica, supervisionadas pelo curso, são obrigatórias e devem ser diversificadas, para treinamento das atividades profissionais de advocacia, Ministério Público, magistratura e demais profissões jurídicas, bem como para atendimento ao público. (...)
Essas atividades, simuladas e reais devem ser exclusivamente práticas, sem utilização de aulas expositivas, compreendendo, entre outras, redação de atos jurídicos e profissionais, peças e rotinas processuais, assistência e atuação em audiências e sessões, visitas relatadas a órgãos judiciários, análise de autos findos, prestação de serviços jurídicos, treinamento de negociação, arbitragem e conciliação, resolução de questões de deontologia e legislação profissional. As atividades de prática jurídica podem ser complementadas mediante convênios, que possibilitem a formação dos alunos na prestação de serviços jurídicos”. (grifo nosso).
A Resolução no. 9 do MEC de 2004 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de graduação em direito fez-se silente diante dos mecanismos extrajudiciais de solução de conflito, deixando assim, os cursos de direito sem a obrigatoriedade de trabalhar essa importante área jurídica e da cidadania. Assim veio a prejudicar o ensino jurídico retirando dos cursos a obrigatoriedade de ofertar aos seus alunos formas de solução extra-judicial, criando um retrocesso dentro do nosso universo jurídico.
Se sob a égide da Portaria 1.886 de 1994, os bacharéis formados sob essa concepção de ensino jurídico, são esses que estão fazendo o exame da OAB e estão sendo reprovados, no patamar superior a setenta por cento, imagine então, quando nos deparamos com uma diretriz curricular que se apresenta como um retrocesso para o ensino jurídico. Que diminuiu drasticamente a obrigatoriedade de proporcionar ao corpo discente uma quantidade de conhecimento bem maior.
Falar que o ensino jurídico no Brasil está a desejar já constitui um senso comum, mas como podemos modificar essa visão, se ao invés de construirmos normas jurídicas mais rígidas, obrigando às instituições de ensino superior a ofertar cursos jurídicos de melhor qualidade, o próprio MEC, que é órgão fiscalizador e regulamentador, que deveria proteger o cidadão comum, ao invés de fazer isso, cria uma estrutura que permite que esses cursos jurídicos venham a ser mais imperfeitos ainda.
Não adiante culpar os alunos, que não possuem uma formação de ensino médio adequada, ou aos professores que não estão preparados para “lecionar no ambiente jurídico”, ou às instituições que só visam “lucro”, ou à OAB que só faz provas “difíceis”. Cada um dos integrantes nesse processo de ensino-aprendizagem, já possui a sua cota de responsabilidade, mas precisamos verificar ainda que quando colocamos diretrizes curriculares que não contemplam todo o universo jurídico, estamos subestimando a necessidade da sociedade e os anseios do alunado. Inclusive, estamos negando a possibilidade de que os ideais de cidadania estejam refletidos nos cursos jurídicos o que é uma ofensa tanto legal, quanto moral.
Dentre os vários mecanismos existentes de solução de conflitos, em 1996, fomos brindados com a publicação da Lei de Arbitragem, Lei no. 9.307 de 1996, passando assim a ser possível a solução de conflitos que versem de direitos patrimoniais disponíveis através de sentença arbitral. Essa norma jurídica reflete a Arbitragem como sendo uma forma de exercício da cidadania, já que conforme o entendimento de Tânia L. Muniz, temos que:
“a participação do cidadão no poder é a base da democracia e se configura pela tomada de posição concreta na gestão de negócios da cidade; o que se consagra através de modalidades, procedimentos e técnicas diferentes utilizadas por ele (cidadão) afim de regulamentar os seus negócios conforme seu próprio entendimento, desde, é claro que não contrarie a ordem pública. (...) a cidadania vem empregada não no sentido restrito do exercício de direitos políticos, mas como participação do indivíduo na sociedade estatal, cujos designos devem estar de acordo com a vontade de seus integrantes, buscando o bem comum. A competência de dizer o direito subtraindo tal atividade do Judiciário, tanto quanto a faculdade de dispor da via arbitral, é um crédito e reconhecimento que se dá ao cidadão, ao qual, no exercício desse papel, desempenha a função de ordenador da vida social, ajudando a traçar os designos da sociedade, e o faz pela utilização e exercício de sua liberdade – que é a expressão maior da democracia”[1] Ou ainda, como nos coloca Couture: O povo é o juiz dos juízes[2].
Nas palavras de Rozane da Rosa Cachapuz verificamos que:
“.... pode-se concluir que a cidadania – direito de liberdade garantido ao indivíduo de participação na sociedade através da autonomia da vontade dá-lhe total liberdade de optar a forma de resolver seus conflitos de interesses, seja pela Arbitragem, conciliação, mediação, transação ou seja pela judiciário.”[3]
Ao não se manifestar a cerca dos mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, a Resolução do MEC, não está em consonância com o artigo 3º. da Constituição Federal que traça quais são os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, já que omitindo-se diante de tão importante mecanismo, está deixando de construir, ou dificultando a construção de, uma sociedade livre, justa e solidária, pois, não permite que venhamos a conhecer uma forma mais célere, mais econômica de solucionar os conflitos, também essa norma, não ajuda a garantir o desenvolvimento nacional, na medida em que não divulga que existe um caminho a percorrer em que as formalidades são reduzidas e o sigilo é inerente ao procedimento e ainda não nos auxilia a reduzir as desigualdades sociais e regionais na medida em que ao não divulgar que as partes possuem maior autonomia para pactuar, inclusive podendo o árbitro decidir por eqüidade, ampliando assim o poder de julgar do árbitro para analisar as questões pontuais apresentadas.
Além de não estar em sintonia com a Constituição Federal, percebemos ainda que a norma jurídica ora atacada, também não está em consonância com os princípios éticos das carreiras jurídicas, que apresenta os mandamentos basilares que todos os profissionais das carreiras jurídicas devem seguir, quais sejam:
a) princípio da cidadania: “segundo o qual se deve conferir a maior proteção possível aos mandamentos constitucionais que cercam e protegem o cidadão brasileiro”[4].
b) Princípio da efetividade: “segundo o qual se deve conferir a maior eficácia possível aos atos profissionais praticados, no sentido de que surtam os efeitos desejado”[5]
c) Princípio da Informação e da Solidariedade: “para que haja clareza, publicidade e cordialidade nas relações entre os profissionais de direito e, inclusive, outros profissionais”.[6]
Ofende-se ao princípio da cidadania já que não determina a preparação adequada desse profissional, omitindo-lhe essa possibilidade de conhecimento; ofende ao princípio da efetividade, por que se desconhece aquele caminho, então não se pode fazer a escolha sobre ele, logo, não irá desempenhar a sua função de forma eficaz e; ofende-se o princípio da informação e da solidariedade, já que esses profissionais não saberão orientar e informar devidamente acerca desses mecanismos extrajudiciais de solução de litígio.
Como se não bastasse tamanha incoerência, o próprio MEC determina que em outros cursos, como por exemplo, no curso de administração, tenha como obrigatório em sua grade curricular a disciplina de negociação, que é uma das formas de solução de conflitos extrajudicial.
Diante do exposto pode-se deduzir que o profissional que se espera formar, mediante a Resolução no. 9 do MEC, seja aquele extremamente combativo que volta-se sempre para o Poder Judiciário, e não aquele que sabe que são várias as possibilidade de solução de conflito, e que através do Poder Judiciário nos deparamos com apenas uma delas.
E para que não haja defasagem no conhecimento dos alunos as instituições de ensino, colocam a arbitragem ora sob a égide do Direito Civil – contratos, ora sob a égide do Processo Civil, ou Teoria Geral do Processo, sendo a carga horária dedicada a esse tópico extremamente reduzida.
Cumpre ressaltar que algumas instituições de ensino superior, percebendo a importância de se tratar da arbitragem, bem como as demais formas extrajudiciais de solução de conflito, já fazem constar em sua matriz uma disciplina específica para desenvolver esse tema, algumas de forma mais tímida oferecendo como disciplina optativa enquanto que outras oferecem já no tronco obrigatório.
[1] MUNIZ, Tânia L. Arbitragem no Brasil e a lei no. 9.307/96. Dissertação de Mestrado apresentada na PUC São Paulo. 1997, s/p.
[2] COUTURE, Eduardo J. Fundamentos del derecho procesal civil, p. 34.
[3] CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Arbitragem São Paulo: Editora de Direito, 2000, p. 40.
[4] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética jurídica. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 419.
[5] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética jurídica. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 419.
[6] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética jurídica. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, p. 419.
Advogada. Mestre em Direito pela UFPE. Professora na Graduação e na Pós-graduação de disciplinas tais como: Teoria Geral do Processo, Direito Processual, Introdução ao Estudo do Direito, dentre outras. Ex-Diretora do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RENATA MALTA VILAS-BôAS, . O Retrocesso da Resolução No. 9 do MEC de 2004: A não-obrigatoriedade de ensinar os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2008, 23:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/150/o-retrocesso-da-resolucao-no-9-do-mec-de-2004-a-nao-obrigatoriedade-de-ensinar-os-mecanismos-extrajudiciais-de-solucao-de-conflitos. Acesso em: 22 nov 2024.
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