O caso tratado nas matérias que cito ao final do texto é interessante: em uma, “Delegado Thiago vira Laura e pode assumir defesa da mulher”, e, em outra, “Delegado troca de sexo e pode assumir Defesa da Mulher”.
Quero abordá-lo sob o aspecto do serviço público. O aspecto da mudança de sexo é tema, a meu modo de ver, para a medicina, e não é objeto de minha abordagem. Também não é objeto deste artigo qualquer implicação religiosa sobre o tema. Estou aqui para falar de serviço público e também da forma de assunção de cargos e funções, como por exemplo chefias e cargos comissionados e, também, eletivos.
Um homem que se submeteu à operação de mudança de sexo, passando de Delegado Thiago para Delegada Laura, pode assumir o comando de uma Delegacia de Mulheres?
Minha resposta: eu só quero saber se essa pessoa é competente e honesta. Sua raça, cor, sexo, mudança de sexo, orientação sexual, altura, peso, origem socioeconômica, posição política, religião... não interessam. Isso tudo é muito interessante, mas não é requisito, nem positivo nem negativo, para o exercício de cargo público. Estamos numa democracia e numa sociedade que busca o respeito à diversidade.
Talvez o preconceito possa até surgir contra quem fez a operação em questão, mas provavelmente é outro: um homem não poder ser o delegado da DEAM (mesmo que tenha mudado de sexo), ou seja, pode ser outro tipo de discriminação. Como se o gênero definisse quem defende ou viola os direitos da mulher. Em igual sentido, a Secretaria de Defesa dos Negros "ter" que ser ocupada sempre por negros me parece equivocado. Já ouvi, no movimento negro (onde, branco, milito) que apenas negros deveriam ter cargos de direção lá. O nome disso? Racismo.
Como Martin Luther King Jr., pastor da Igreja Batista e negro, sonho com o dia em que as pessoas serão julgadas não pela cor dos olhos ou da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Ter mais mulheres nas DEAM e mais negros no movimento negro, ok, é natural, mas fixar limites para homens e não negros é preconceito invertido, mera reprodução em escala menor da visão deturpada, racista ou sexista, que a sociedade tem. Mudar o mundo não é mudar o sentido da mão do preconceito, mas sim acabar com ele.
Vale citar a Constituição:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A sabedoria chinesa, na voz de Deng Xiaoping, dirigente do Partido Comunista da China, já havia dito: “Não interessa se o gato é branco ou preto, o que importa é que ele mate o rato”. Eu não quero saber se é Thiago ou Laura, branco ou preto, ateu ou teísta, rico ou pobre... Eu quero saber se irá cumprir seus deveres e ser exemplo do modelo de servidor público pelo qual o Brasil anseia desesperadamente. Pessoas honestas, competentes, motivadas, dispostas a fazer o que precisa ser feito e a honrar e servir ao titular do poder, o povo.
Martinho Lutero, líder religioso, disse com propriedade: “Prefiro ser governado por um turco sábio do que por um cristão tolo.” Ao se referir aos turcos, falava da religião predominante destes, o islamismo. Ele disse uma grande verdade: para governar, é melhor escolhermos alguém sábio, honesto, competente, bem-intencionado... do que simplificar para uma escolha direcionada por preconceito (melhor diria, “burritizar”, pois tal simplificação é burra, ao contrário da maioria das simplificações, como ensinaram Leonardo da Vinci e Steve Jobs. A simplificação aqui deve ser outra: escolha a pessoa mais qualificada para o cargo).
Em tempos de eleição vale lembrar isso, e sempre que falarmos de política e de serviço público. Escolher alguém para cargo público, eletivo ou não, por força de seu partido, parentesco, religião, cor da pele ou o que for... é péssimo. Devemos escolher as pessoas, para os cargos e funções públicas, pela competência. Isso inclui não fazer dos cargos e funções comissionadas prêmios para políticos e cabos eleitorais, nem do TCU e outros tribunais um mero lugar para aposentadoria honrosa de aliados políticos.
Vale repisar aqui que sou a favor das cotas sociais e raciais nas universidades, estágios e bolsas, ou seja, para que a pessoa submetida à desigualdade possa vir a competir melhor. Mas na hora de escolher o cargo, que vença (ou seja, que seja escolhido), aquele que irá desempenhar melhor a honrosa e necessária missão de ser servidor público.
Sobre o tema, já que falo sobre ele, reforço que a 4ª Vara Federal de Niterói, onde sou juiz titular, é a mais produtiva entre suas congêneres, segundo relatório da Corregedoria do TRF2. Somos premiados por inovação e produtividade e meus funcionários são instrutores em vários lugares. Isto é assim porque temos uma equipe motivada, competente, honesta e que quer fazer diferença e, em linguagem popular, “honrar as calças que veste”.
Da mesma forma, embora gentilmente chamado de “guru dos concursos”, sempre digo que meu compromisso maior não é com o concurso, mas com o serviço público. Sempre recomendo que a pessoa que quer fazer concurso venha não pelas prerrogativas, mas pela missão. Sempre anuncio cinco passos para revolucionar o serviço público, e eles estão resumidos em <http://www.revolucao.info>.
Vale dizer mais: temos que criar caminhos para que a iniciativa privada seja tão pouco discriminatória quanto o concurso público. No Brasil de hoje, vemos poucas mulheres, negros e pardos em funções diretivas. As Fashion Week brasileiras têm mais louros que as da Escandinávia, nem parece que estamos no Brasil! No mercado de trabalho, as mulheres ganham menos que os homens nas mesmas funções. Em suma, temos muito a caminhar. Mas caminhemos!
Também anoto que na Editora Impetus, da qual componho o Conselho Editorial, há oito gerências e nelas há três mulheres negras, três mulheres brancas e dois homens, um negro e um branco. A gerente geral também é uma mulher. Talvez uma das razões do sucesso seja que de oito chefes, seis são mulheres. Temos alguma política afirmativa? Nenhuma, senão apenas esta: não discriminamos ninguém. Há lá funcionários cristãos, ateus, há heterossexuais e homossexuais... Enfim, temos um belo retrato da rica diversidade. E, sem prejuízo disso, é uma empresa que segue modelos bíblicos. Entre tais padrões bíblicos, realço uns poucos, já abordados na obra “As 25 leis bíblicas do sucesso”, de autoria minha e de Rubens Teixeira. A Bíblia diz que as oportunidades devem ser para todos e que a sabedoria é o caminho para o sucesso. E como ensina Jesus Cristo, devemos amar a todos e fazer aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem. Por isso, na Editora Impetus, uma empresa fundada na fé e na Bíblia, não discriminamos, e buscamos os mais competentes, sem querer saber, por exemplo, se são Thiagos ou Lauras.
Rubens Teixeira, meu coautor na obra citada é, por sinal, atual exercente de cargo comissionado. Mas vale dizer: é ex-capitão do Exército (AMAN), funcionário concursado do BACEN, mestre em Energia Nuclear (IME) e doutor em Economia (UFF). Ou seja, não tenho problemas com comissionados, desde que sejam, como Rubens é, honestos e competentes, escolhidos pela capacidade.
Já escrevi muito para um articulista. Finalizo.
Sempre quero ser um “embaixador” do serviço público – missão que desejo cumprir tanto quanto ser um bom servidor. Por isso trouxe o assunto. Quem quiser discutir esse fato público, objeto deste artigo, que repare: há duas questões diferentes em seu seio. A primeira é uma questão médica, a segunda, uma questão político-administrativa. Naquele campo onde milito, como mestre em Direito (Estado e Cidadania), pós-graduado em políticas públicas, juiz federal há mais de 20 anos e professor de Direito Constitucional e Administrativo... não quero saber se é Thiago ou Laura, mas se cumpre com competência, dedicação e honestidade os deveres do cargo.
Quem cumpre bem seus deveres, espero que esteja sempre bem e que seja valorizado. Quem não cumpre, que seja corrigido e até demitido. Espero que sempre o voto no político e mudança de colocação na carreira pública de todo e qualquer servidor sejam motivados pelo que tal pessoa faz no exercício de sua atividade. Apenas isso. O servidor deve ser julgado pelo quanto age pelo e para o povo, apenas isso. E independe, para isso, ser Thiago ou Laura.
OUTROS ASSUNTOS DE INTERESSE PARA O DIREITO ADMINISTRATIVO
Repisando que o fato suscita debates os mais variados, médicos, psicológicos, sociais, institucionais, religiosos etc., continuo fazendo a leitura a que me propus: Direito Administrativo. Neste espaço, ou seja, o que interessa ao serviço público, é preciso avaliar qual a reação social ao acontecimento, por isso, a credibilidade da instituição, seja a policial de modo específico, seja o serviço público de modo geral, é tema relevante e inclui definir se a reação é legítima ou não.
Um dos problemas a se levar em conta é o seguinte. Por um lado, a vida sexual dos servidores é problema deles, aliás, a vida sexual de qualquer um é assunto de foro íntimo, que não deveria interessar a ninguém. No entanto, todos sabemos que há ofícios em que a conduta pessoal reflete na credibilidade da instituição. Todos conhecem que se exige de militares, por exemplo, o respeito ao pundonor militar, e que magistrados e membros do Ministério Público devem manter vida pessoal ilibada. A rigor, espera-se isso de todos, e aumenta a exigência quanto maior o grau hierárquico ou a detenção de representação do poder estatal. No âmbito profissional, contudo, quando causa escândalo e expõe ao ridículo uma instituição que deveria infundir respeito, deixa de ser um problema pessoal. Há situações privadas semelhantes, como, por exemplo, a do ministro religioso que adota comportamentos incompatíveis com suas crenças, desacreditando o que fala. Em suma, tanto em relações públicas quanto em privadas espera-se coerência e respeito a alguns valores ou preceitos.
Por outro lado, não se pode exagerar nisso. Um exemplo é a diferença de tratamento que norte-americanos e franceses dão aos deslizes matrimoniais de seus presidentes. Este é um bom caminho para se discutir a interface entre vida pública e privada. E se formos discutir a moralidade pública, e, frise-se, não estamos diante de uma questão religiosa, mas de interesse do Estado, todos podemos e devemos cobrar, alguns comportamentos dos servidores públicos, em especial das autoridades, e isso até certo ponto se projeta na vida pessoal. O grande desafio aqui é traçar estas fronteiras: público, privado e privado sujeito à cobrança pública.
Acaso alguém questione o impacto do fato na respeitabilidade de quem deve estar em uma posição de respeito, vale trazer à memória que há algum tempo uma mulher em posição de autoridade também causava rejeição, risinhos etc. Eu mesmo, delegado de polícia no início da década de 1990, assisti policiais ridicularizando a ideia de mulheres exercendo a função de delegadas de polícia. Algum tempo antes, já se discutiu se um negro poderia exercer esta ou aquela função de autoridade e como seria se isso acontecesse.
Nesse sentido insta salientar mais uma observação àqueles que acreditam que o episódio afeta a polícia institucionalmente e, com isso, o desempenho daqueles que integram a corporação. O mesmo que hoje está se debatendo sobre o caso já foi, como citado, alvo de discussão para outros grupos sociais – outrora marginalizados/segregados – que hoje são não apenas parte, mas parte indissociável da prática policial. Não seria o caso de, mais uma vez, caber à sociedade aprender a lidar com um novo paradigma? Ou quer a sociedade criar um muro? Muros devem existir, a dificuldade é estabelecer onde construí-los para que sirvam proteção às pessoas e não ao preconceito.
Enfim, se o leitor me entende: concordo que existem comportamentos que depõem contra o próprio servidor e expõem ao ridículo a instituição. A questão, porém, é definir que comportamentos estarão enquadrados nessa categoria. Houve um tempo em que ser mulher, ou negro, gerava o problema. Em algum ponto iremos definir comportamentos que não são aceitos, mas temos que definir caso a caso. Dependendo da situação concreta, errado estará o servidor ou, doutra sorte, o erro de interpretação pode ser o da pessoa que aponta o dedo em direção ao servidor. Não é propósito deste artigo definir esse dilema, mas realçar um aspecto da situação apresentada. Se alguém acha que a situação em tela desprestigia a instituição, caberá indagar se este é ou não um caso análogo aos antigos preconceitos sexistas e raciais, ou se estamos diante de algo que um servidor não deveria fazer. Minha posição sobre isso já foi dada: entendo que aqui só cabe cobrar o cumprimento dos deveres do cargo.
Há ainda mais um ponto a ser analisado, e aqui me valho de questão apontada pelo eminente administrativista, professor José dos Santos Carvalho Filho: como a situação é nova, desafia alguma regulamentação, sobretudo no que toca a algumas diferenças que a Constituição registra sobre o servidor do sexo masculino e o do feminino. O mestre realça ainda que a função pública se sobrepõe ao servidor, além do fato de que precisamos reduzir as diferenças próprias das minorias sociais.
Pode haver ainda, sobre o tema, um questionamento de ordem administrativo-previdenciária interessante: dada a operação de mudança de sexo, cabe conferir ao indivíduo todos os direitos garantidos às mulheres (prazo para aposentadoria, por exemplo)? Deve-se considerar a discussão interessante e benéfica, pois diz respeito aos próprios fundamentos norteadores do entendimento jurídico. Grosso modo, a cirurgia de mudança de sexo modifica características físicas, psicológicas e biológicas do indivíduo, mas não sua arquitetura genética; não obstante – e, para sustentar essa argumentação utilizamos o artigo da Dra. Aricele Julieta Costa de Araújo – o direito de mudança de registro civil (prenome) é garantido aos indivíduos que realizam tal operação. Esta alteração de registro civil, no entanto, não assegura ou garante a mudança de gênero, esta podendo ou não ser concedida tão somente mediante decisão judicial. Desta feita, a outorga de direitos está sujeita a avaliação e decisão judicial, o que afasta a preocupação sofística de qualquer grupo social, mas propõe o questionamento de como se deve encarar gênero – feminino ou masculino – no futuro, se por um víeis científico (genético) ou social (físico/psicológico). Sobremaneira, não acredito que o precedente irá gerar qualquer corrida de homens em direção à Tailândia para, operados, fazerem jus aos direitos concedidos ao gênero feminino. A meu ver, a situação é tão episódica e peculiar que não haverá consequência maior para a sociedade e o Estado em reconhecer tais direitos.
Por fim, caberia ainda analisar, do ponto de vista jurídico, se tal servidor cometeu ou não crime – para aqueles que entendem que tal operação configuraria violação de alguma norma penal. Outro aprofundamento que não é escopo deste artigo. Para quem quiser se aprofundar sobre o tema, recomendo a leitura das obras do eminente penalista, professor Rogério Greco, que propõe não ser o caso de autolesão, já que o procedimento é realizado por um médico. Ele mesmo acrescenta que a discussão passa pela validade do consentimento da vítima, já que causa uma mutilação grave. E, repito, é alteração mais que consentida, solicitada.
A delegada Laura certamente sofrerá reflexos de toda a publicidade e das discussões que o assunto obriga. Contudo, parece óbvio considerar que todas as consequências de sua decisão tenham sido avaliadas por ela antes da radical mudança de rumo que implementou em sua vida. Não só a mudança de sexo, mas qualquer decisão que alguém toma traz uma série de efeitos. Por isso mesmo decisões devem ser pensadas com vagar e serenidade, e se exige que as pessoas – para decisões sérias – tenham capacidade e, se preciso, sejam orientadas por profissionais qualificados.
Este artigo, sem deixar de pontuar algumas derivações do tema, se propôs a tão somente defender que o fato seja discutido de forma serena e separando-se as searas. E, além disso, na seara do serviço público o fato é, em princípio, irrelevante, pois, de quem exerce um cargo ou função pública, devemos cobrar tão somente o cumprimento dos deveres do cargo.
O fato é que estamos lidando com o novo, e o novo sempre causa perplexidade e a necessidade de reflexão para se encontrar o melhor caminho, tanto para a pessoa individualmente considerada quanto para a sociedade como um todo. Seria, então, de se perguntar que tipo de sociedade queremos ter e até que ponto esta sociedade pode ou deve interferir em decisões pessoais.
Notícias de referência:
http://jus.com.br/artigos/24631/a-possibilidade-de-alteracao-do-nome-e-sexo-civil-do-transexual
<http://oglobo.globo.com/opiniao/entre-thiagos-lauras-11469927>
Juiz Federal, Titular da 4ª Vara Federal de Niterói - Rio de Janeiro; Professor Universitário; Mestre em Direito, pela Universidade Gama Filho - UGF; Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo - EPPG/UFRJ; Bacharel em Direito, pela Universidade Federal Fluminense - UFF; Conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ; Professor Honoris Causa da ESA - Escola Superior de Advocacia - OAB/RJ; Professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas - EPGE/FGV; Membro das Bancas Examinadoras de Direito Penal dos V, VI, VII e VIII Concursos Públicos para Delegado de Polícia/RJ, sendo Presidente em algumas delas; Conferencista em simpósios e seminários; Autor de vários livros. Site: www.williamdouglas.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DOUGLAS, William. Entre Thiagos e Lauras: mudanças de sexo e o serviço público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 mar 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1760/entre-thiagos-e-lauras-mudancas-de-sexo-e-o-servico-publico. Acesso em: 25 nov 2024.
Por: Leonardo Sarmento
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Carlos Eduardo Rios do Amaral
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