Rachel Sheherazade. Pronto, falei o nome dela, e você, leitor, já a ama ou detesta. E quer saber se eu a apoio ou deploro, se quero que ela fale, ou que se cale. Porém, meu ponto aqui é anterior ao debate sobre os comentários que ela fez a respeito dos chamados "justiceiros" do Rio de Janeiro, que, indignados por causa da insegurança no seu bairro, prenderam um rapaz, apontado como assaltante, em um poste. Um passo atrás, leitor! Há um debate anterior a este.
Em um primeiro momento, não preciso saber se você gosta ou não da Rachel, ou se concorda com ela. Até prefiro não saber, pois não é este o objeto dessa conversa. Meu ponto é que existam conversas.
Jornalistas são pessoas que, além de bem informadas, informam. Eu quero viver em um país onde eles possam fazer seu trabalho. Quero ouvir o que eles contam e pensam. Isso é um direito deles, expressar opinião, e um outro, meu, de ouvi-las. Nem sempre concordarei com o que o jornalista diz, mas uma democracia não se faz de opinião única. Posição única tem nomes: ditadura, tirania, arbítrio. Até mesmo se devem apenas informar, ou se podem ou devem opinar, é tema com mais de uma opinião, e espero que cada um defenda aquela na qual acredita.
Concorde ou discorde de Rachel, indago se concordamos com o princípio de que devemos garantir a todos o direito de pensar e de expressar seu pensamento, mesmo quando diferentes dos nossos. Saudades de Voltaire, que disse: “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo." No Brasil, há quem queira que Rachel seja processada, amordaçada, até estuprada alguém já propôs (vejam onde chegamos, caro leitor!). Se não concorda com as liberdades de imprensa e de pensamento, por favor, vá tentar mudar a Constituição, mas não tente calar nem Rachel, nem gays, nem pastores, nem políticos ou jornalistas que pensam diferente de você.
O caso de Rachel me faz lembrar sua quase “xará” Sherazade, da Pérsia. Lá, um rei – depois de ter sido traído pela esposa – decidiu casar com uma nova mulher a cada dia, matando a sua noiva pela manhã. Matar a fonte do problema é uma tendência autoritária antiga, perceba-se. Pois bem, Sherazade, que se ofereceu como nubente, começou a contar uma história, mas não o seu final. Então, para ouvir seu desfecho, Shariar, o rei, não a matou pela manhã. E contar histórias salvou Sherazade e mais centenas de outras moças. O contar histórias, e conhecer a história, salva pessoas e países, anote-se.
A estratégia de Sherazade para evitar aquelas mortes deu certo. Daí, surge a obra Mil e Uma Noites. Ali, quem contava as histórias ficava viva, pois o rei queria ouvir histórias. Lamento pela nossa She(he)razade, pois aqui querem matá-la para que não conte suas histórias. Triste país, onde as pessoas morrem por falar, ao invés de serem deixadas vivas para fazê-lo. As tentativas para calar Rachel, ou qualquer outro jornalista, são sentenças de morte. Não física, mas civil, profissional, social. Ainda existem pessoas que, quando alguém não compartilha de seus desejos ou pensamentos, preferem que o outro seja morto. Ou calado, o que é um tipo de morte também.
Além desse pesar, viver em um país onde a opinião divergente é atacada virulentamente, registro uma outra perplexidade. Conta-se, com menos garbo, que não nas fábulas da Pérsia, mas aqui no nosso país mesmo, um homem chegou em casa de surpresa e encontrou sua mulher no sofá, tendo sexo com outro. Sua providência foi simples e cabal: no dia seguinte, tirou o sofá da casa. Em relação ao assunto da polêmica, parece que muitos preferem tirar a Rachel, que fala sobre o que parte das pessoas pensa, do que enfrentar de verdade o problema da violência, da insegurança, do racismo e da injustiça social nesse país.
Tirem o sofá, matem a She(he)razade que fala, mantenham a opinião única usando a mordaça... e voltaremos aos tempos em que um rei, Shariar ou qualquer outro, tem o direito de matar quem vier a desagradá-lo.
Ocorre que fazer-se de surdo, ou mesmo amordaçar quem discorda, ou reclama, é prática autofágica: silenciar sem resolver apenas adia o problema, assim como o torna mais grave. Precisamos deixar as pessoas, em especial os jornalistas, expressarem o que pensam. Podemos discordar, sim, mas não proibir a fala.
Até gostaria de dar minha opinião sobre a polêmica, mas isto nos desviaria do ponto mais importante: garantir que existam opiniões divergentes, e as polêmicas, em esperada aplicação da Constituição da República. Nela, assegura-se a liberdade de pensamento (art. 5º, IV), expressão (5º, IX), acesso à informação (5º, XIV), liberdade de informação jornalística (220, § 1º) e vedação de censura de natureza política ou ideológica (220, § 2º).
Espero que, concordando ou discordando da jornalista Rachel, o país aprenda a ouvir e a respeitar quem pensa diferente. Parafraseando as palavras de Jesus em Mateus 5. 43-48, “Se deixarmos falar apenas aqueles que dizem o que nós mesmos pensamos... não fazem os ditadores também o mesmo?”
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