Hoje, ouvem-se vozes além das redes sociais, estão nas ruas, em altos brados conclamando por uma intervenção militar como medida “única”de moralização frente ao caos instalado no país. Faremos um estudo hermenêutico constitucional, que pecará por ser raso, de questão de máxima pertinência e atualidade ao nosso momento.
A beleza do direito guarda estreita relação com a delicadeza da democracia, ambas, por essência, comportam divergências concepcionais, e desta forma, com o passar do tempo, se fortalecem e se estruturam em sua melhor linha, que vale dizer, nem sempre é a ideal ou mais consentânea com os subjetivismos do intérprete. Este ensaio é fruto de uma série de pedidos que nos desafiaram para que formulássemos nossa opinião quanto a questão que intitulamos o presente trabalho. Faremos um ensaio sob uma perspectiva unicamente constitucional pautando-nos nos fatos sociais apresentados no presente momento histórico.
Iniciados os trabalhos, que se abram as divergências neste, até o presente momento, Estado Democrático de Direito.
Preliminarmente devemos ter em mente que o objetivo primordial de toda Constituição Democrática é garantir os direitos fundamentais do homem e a organização democrática do Estado. Após um longo período de governos militares, iniciados a partir de 64, deu-se início a redemocratização, um processo arrastado, que vele dizer, não produziu um efetivo controle civil sobre os militares, conforme se aduzirá. A "lenta, gradativa e segura distensão" para importou o fim da ditadura. Foi um processo em que os militares, simplesmente deixaram o controle da Nação, mas não perderam o poder de resgatá-lo, por iniciativa própria. Comprova-se esta afirmação com o art. 142, da Constituição Republicana de 1988, que institui as Forças Armadas como suprema protetora da Pátria e dos poderes constituídos e, por iniciativa de qualquer destes, promoverão a garantia da lei e da ordem. Trata-se de um preceito que perigosamente enfraquece a democracia, vez que a Constituição da República não define o que seja ordem pública e em quais momentos poderá ocorrer a intervenção militar. Por fim, não estabeleceu mecanismos explícitos de controle sobre as Forças Armadas, de tal sorte que deixou ao encargo daquelas decidir sobre a conveniência da intervenção militar sobre o governo civil.
Como advertiu Zaverucha: "A noção de ordem e desordem envolvem julgamentos ideológicos que os comprometem com uma determinada visão de Estado e sociedade que, por sua vez, está sujeitas a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in) desejada de determinados indivíduos."
A Emenda Constitucional nº 23/1999, criando o Ministério da Defesa, manteve o “status” de Ministro de Estado aos Comandantes das três armas, vez que foram mantidas íntegras as prerrogativas de foro para julgamento de crimes de responsabilidade e comuns. Há portanto, na concepção de Zaverucha, um esvaziamento dos poderes do Ministério da Defesa em relação às Forças Armadas, que, ideologicamente, julgam-se independentes, face a "imaturidade" e "indisciplina" dos civis.
Para Zaverucha, o controle civil sobre o comportamento dos militares deve ser entendido como a capacidade de as autoridades constituídas (Executivo, Legislativo e Judiciário) e a sociedade civil organizada (sindicato, associações, imprensa etc.) limitarem comportamento autônomo das Forças Armadas, eliminando, por conseguinte, enclaves autoritários dentro do aparelho do Estado. Fácil perceber que o controle civil sobre os militares, na Constituição Federal de 1988, é bastante grácil, o que importa fragilidade da democracia. A democracia se consolida depois de consolidadas as liberdades, compondo-se as regras que organizarão a influência dessas liberdades na escolha e na condução do governo de uma população. As Forças Armadas ainda possuem um poder de suprimir liberdades, caso achem que a ordem social esteja em perigo. O golpe militar tem seu fundamento na Constituição Federal de 1988, apesar de ter a Carta Magna manifesto caráter democrático, como observou o Presidente da Assembleia Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, por ocasião da promulgação da vigente Carta Magna: "a Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça."
Evidentemente, não se conquista a democracia sem luta. A Democracia não é outorgada. Como afirmou Shüler, direitos democráticos são duramente conquistados. "Homens que não lutam pela liberdade não estão maduros para viver livremente". Na luta pela democracia, a transição de um regime autoritário para um regime democrático importa na reconciliação de forças democráticas com forças não democráticas. O desafio posto diante dos atores democráticos é o de chegar à democracia sem que sejam exterminados no meio do caminho pelos militares, que, praticamente, monopolizam os meios de coerção.
Como bem destacou Zaverucha, durante a Constituinte, que dela resultou à Constituição de 1988, foi criada a Subcomissão de Defesa de Estado, com composição majoritariamente militar: cinco professores da Escola Superior de Guerra; cinco membros da Polícia Militar e um do Corpo de Bombeiros Militares; quatro representantes do Conselho de Segurança Nacional; dois generais da reserva; cinco representantes do Estado-Maior do Exército; três representantes da Polícia Federal; o presidente da Associação Nacional dos Comissários de Polícia Civil; o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil; e um representante do Núcleo de estudos Estratégicos da Universidade de Campinas. O resultado desta comissão não poderia ter sido diferente: manteve as Forças Armadas com o mesmo papel que desempenhou em outras épocas constitucionais, ou seja, função de suprema protetora da Nação, inclusive contra o governo civil. A sociedade brasileira continuou sob o regime de democracia tutelada.
A Constituição Federal de 1988, que diferentemente das sete constituições anteriores, começa com o homem, parece submeter o princípio democrático à coexistência de uma sutil tutela militar. Ou seja, a democracia brasileira se sustenta enquanto os militares não desejarem intervir no governo civil, objetando a defesa da lei e da ordem. Os militares, à época da Constituinte, que originou a Carta de 1988, compreenderam que os civis estavam preparados para assumir o controle da Nação. Contudo, os civis deveriam ser advertidos pelas Forças Armadas que poderiam perder o poder, caso não conduzissem corretamente os destinos da Nação. Ideologicamente, fez-se necessário pressionar os congressistas constituintes a manter o “status” dos militares, ou seja, de protetores derradeiros da lei e da ordem. O comprometimento dos civis com a conservação desta posição aos militares, na Constituição de 1988, por sua vez, era essencial para garantir as liberdades até então conquistadas.
Portanto, a Constituição de 1988 confere o modelo de democracia a sociedade brasileira, no caso, a democracia tutelada. Mas pode este modelo coexistir com os preceitos democráticos concebidos na própria Constituição? Ou ainda, pode a Constituição da República, como condensação das forças democráticas e não democráticas da época, vincular o comportamento das futuras gerações?
A Constituição é manifestação do Direito, pois aquela é modelo jurídico de sociedade e de Estado que a Nação deseja. Direito é adjetivo do homem, ou seja, instrumento da humanidade para compartição de liberdades. A diferença entre o ser e o deve ser, ou seja, entre o que é e o que deverá ser, é produto da inteligência humana. Esta diferença não deve ser considerada com lastimação, pois é indicativo da capacidade modificadora do homem.
Ademais, como manifestação humana, a Constituição pode ser estudada ainda sob a vertente da Política e da Sociologia. Assim sendo, temos a Constituição como decisão política, a Constituição em sentido sociológico, jurídico ou formal. Não nos interessa expor as diversas definições de Constituição.
A constituição há de ser considerada no seu aspecto normativo, não como norma pura, mas como norma na sua conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico.
A Constituição é resultado do poder constituinte, momento histórico em que a sociedade política inaugura um novo ordenamento jurídico que se ajuste aos reclames sociais vigentes e condicione a sociedade e o Estado a preceitos ideológicos.
O Poder Constituinte é um momento histórico cuja função é produzir uma nova Constituição e, consequentemente, dar fundamento de validade a um novo ordenamento jurídico que se ajuste a nova realidade política e social. A Constituinte significa um processo através do qual a nação procura permanentemente atualizar sua identidade existencial.
A Assembleia Constituinte também possui inúmeras limitações de ordem ideológica. O Poder Constituinte é limitado, pois não consegue, através do povo, representado pelos membros da Assembleia Constituinte, conceber a Constituição ideal para os anseios da sociedade justa, livre e solidária. Como ensinou Bonavides, "as Constituintes – cumpre reiterar –, ao contrário do que habitualmente se crê, são assembleias de poderes limitados". Estas limitações, ao contrário de serem desvantagens, são frutos do processo democrático, vez que, trata-se de um processo de convivência, de tolerância.
O Poder Constituinte, como toda obra humana, sofre limitações. Equivocado dizer que o Poder Constituinte é ilimitado ou infinito, vez que, não pode a desrespeito da realidade social implementar normas jurídicas em descompasso com as exigências sociais. A Assembleia Constituinte, como forma material e processual do Poder Constituinte, sofre ainda maiores limitações, quando fundada no discurso democrático, pois deve consideração às diversas ideologias políticas. Como assinalou Britto:
"Tudo tem limite nas coisas ditas humanas e o Constituinte não escapa à contingência de ter que operar um olho no padre e outro na missa; quer dizer, tanto compenetrado dos seus incondicionamentos formais e ilimitabilidade material quanto do risco da inefetividade global da sua obra.".
A Constituição é um conjunto de normas jurídicas que foi concebida para a sociedade e o Estado. Na verdade, é a Constituição democrática a Lei Fundamental do homem, pois, estabelece princípios e regras, nos quais as liberdades são compartilhadas.
Não obstante, a Constituição, como processo político, não pode ficar a mercê de fisiologismos ideológicos. Deve ser um estatuto jurídico mais valioso que a lei. No dizer de Canotilho, "a Constituição é ordem fundamental do Estado" que possui pretensão de estabilidade, fundada na sua qualidade de ordem jurídica fundamental ou estatuto jurídico e pretensão de dinamicidade, tendo em conta a necessidade de fornecer aberturas para mudanças no seio político. A estabilidade é assegurada através de mecanismos garantidores, como as cláusulas pétreas e as ações constitucionais, que não nos interessa neste trabalho. Por sua vez, a dinâmica constitucional somente tem sentido numa sociedade democrática, pois não haveria necessidade de aberturas para mudanças políticas numa ditadura. Vasconcelos foi contundente: "Não há como tergiversar: a prova dos fatos é patética. Considere-se, ao caso, qualquer regime autoritário da época que se desejar, de direita ou de esquerda, tanto faz, e observar-se-á como o Direito, aí manipulado, é flagrantemente antidemocrático e anti-humanístico”.
Somente na Democracia existe tolerância. Como ensinou Kelsen," a vontade da comunidade, numa democracia, é sempre criada através da discussão contínua entre a maioria e a minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria ". A manutenção de uma atmosfera favorável a esta discussão gera o compromisso entre os divergentes. A ausência de garantias reais para o exercício justo e legítimo do debate político é próprio dos regimes antidemocráticos, pois atenta contra a própria natureza da democracia. A democracia é processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo, havendo de verificar-se o respeito e a tolerância entre os conviventes.
A Constituição, portanto, somente tem capacidade de se desenvolver, legitimamente, na democracia, vez que as estruturas de domínio são organizadas segundo o princípio democrático. Como ensinou Canotilho, é, na democracia, que"o poder político é constituído, legitimado e controlado por cidadãos (povo), igualmente legitimados para participar no processo de organização da forma de Estado e de governo”. A participação popular, direta ou indireta, promove condições legítimas para mudanças no seio político. Aliás, não se pode separar democracia de política, pois a dinâmica constitucional demanda dinâmica política.
A condição de dinamicidade constitucional somente pode ocorrer na democracia, vez que, na ditadura, qualquer modelo de Constituição é mera "folha de papel", sem qualquer força normativa. A Constituição outorgada na ditadura sucumbe pelo poder real daqueles que detém o poder, seja desrespeitando-a ou derrogando-a através de atos de força. Este era o modelo constitucional dos regimes militares pós-64. A Constituição nada valia diante dos Atos Institucionais. O Ato Institucional nº 5 (AI-5), decretado em 1968, que suprimiu as liberdades e garantias individuais, foi um retrocesso, um recurso duro demais, talvez o maior erro do regime militar brasileiro, vez que assegurou o abuso do uso do poder, anulando as cidadanias e assegurando um poder ilimitado a ortodoxia.
Os Militares não são formados para conduzir a Política. Não obstante, no caso da "revolução de 1964", no Brasil, os Militares interferiram na política com o intento de estabilizar o país. Mas o regime militar não deveria ter sido tão longo. Antes tivesse se resumido apenas ao Governo Castelo Branco (1964-1969).
De fato, é maior o grau de aceitação das normas constitucionais e legais criadas através de assembleias constituintes ou constituídas, cujos membros foram eleitos pelo Povo, e cujo funcionamento é transparente e democrático. Ao contrário, as normas constitucionais e legais outorgadas por regimes autoritários tendem a não possuir aceitação, vez que haveria insinceridade normativa de suas disposições, apesar de possuírem eventual caráter democrático, como a garantia de liberdade. O Povo, na ditadura, sabe que a constituição e as leis que garantem liberdades não passam de uma mera folha de papel como definido por Lassale.
Lassale, em discurso aos franceses, asseverou que a Constituição é a soma dos fatores reais de poder. Lassale vivia uma época muito difícil para o constitucionalismo, vez que a constituição da época não era respeitada ou lhe dava interpretação que a amesquinhava. Vale destacar a seguinte passagem:
"Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país. Mas, que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição com a Constituição jurídica? Não é difícil, senhores, compreender a relação que ambos conceitos guardam entre si. Colhem-se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel, dá-se-lhes expressão escrita e a partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurídicas e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e, por conseguinte é castigado."
A tese de Lassale é fascinante, mas confunde em demasia Direito e Política, não fazendo o necessário corte epistemológico entre estes campos do conhecimento humano. Política e Direito não se confundem. A Política lida com a realidade social. Já o Direito é instrumento de idealização do justo. Sendo assim, a efetividade das normas jurídicas não se vincula à apenas ideias políticas. Como ensina Vasconcelos, "O Direito, inclusive para merecer o acatamento geral que o tornará eficaz, deve, pois, requalificar-se. Precisa ser, também, justo. Direito justo". A força normativa da Constituição está ligada a ideia de realização material de seus preceitos legais. Para Barroso, a efetividade "simboliza a aproximação, tão íntima quando possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social". A energia transformadora da Constituição está na efetiva força vinculante de seus preceitos, ou seja, na obrigatoriedade de sua aplicação.
No Brasil, que possui uma Constituição escrita, é da maior importância a reforma constitucional, que é feita através de emendas, elaboradas através de um rito próprio, pelo Congresso Nacional. O Poder Constituído pode reformar a Constituição, sem substituí-la, função esta inerente ao Poder Constituinte. Como a democracia é um processo de convivência social, a mudança constitucional é uma necessidade. Mas não deve se vincular aos “lobbies” dos grupos dominantes de uma sociedade, mas sim, ao ideal de justiça. A mudança constitucional, por reclames democráticos, não pode atender aos fisiologismos políticos. Não deve aderir ao texto constitucional, preceitos que poderiam ser arranjados uma lei.
Se as novas gerações não admitem mais certos preceitos democráticos, a mudança da Constituição faz-se necessária, seja pela implementação de uma nova interpretação ao seu texto, ou mesmo, pela modificação de seu texto. A História assim ensina. A sociedade civil exige mudanças e provoca o processo político-jurídico para tanto. As futuras gerações não estão vinculadas a Constituição promulgada em determinado momento histórico.
Para Contreiras e Gaspari, os militares saíram do poder, pois acharam que o modelo político do regime militar estava esgotado. Mas nunca deixaram de expressar o pessimismo em relação às elites que ajudaram derrubar em 1964. Entregar o País aos civis desacreditados e incompetentes não foi tarefa fácil para os Militares. Não obstante, manteve os Militares o “status” de garantidores da ordem jurídica constitucional, através da inserção desta condição no art. 142, da Constituição Federal de 1988. Não poderiam os Militares entregar o poder aos civis sem um mecanismo de tutela em que os Militares pudessem reconquistar o poder, caso os civis falhem novamente na manutenção da lei e da ordem. Sendo assim, os Militares permitem o desenvolvimento da Democracia, mas condicionada a conveniência de intervenção militar na Política, caso haja perigo à lei e a ordem. Assim, é perfeitamente possível a convivência enclaves autoritários no Estado Democrático, pois aqueles permitem o governo democrático até quando convier as Forças Armadas.
Não existe, em evidência, um modelo de reverência dos militares ao poder civil. A autoridade suprema do Presidente da República sucumbe quando as Forças Armadas concluam que a lei e a ordem estão sendo ameaçadas pelo próprio Presidente da República. Na Constituição Federal de 1988, não existem mecanismos de controle do comportamento dos Militares nos tempos de crise. Sequer existem disposições constitucionais que isentem ou proíbam os Militares a interferir na Política.
A Democracia Tutelada não afronta diretamente a Constituição Federal de 1988 e permite a sua pretensão de dinamicidade. Contudo, a manutenção do art. 142, da Constituição Federal, tal como está escrito, fragiliza, por demais, a democracia, vez que coloca em risco a ordem constitucional duramente conquistada ao longo da lenta, gradativa e segura distensão. Significa dizer que os Militares ficam fora do poder, pois não pretendem governar o país, função inerente aos políticos democraticamente eleitos. Os Militares reconhecem que não têm formação política e quando assumem o poder, a maquina estatal fica ao encargo de tecnocratas e burocratas. Os Militares deferem o poder aos civis. Contundo, se os políticos e a sociedade civil, demonstrarem imaturidade e indisciplina, pondo em risco a lei e a ordem pública, a intervenção militar sobreviria, suprimindo, momentaneamente, a democracia. Os Militares mantém o “status” de observadores do processo político democrático, enquanto estabilizado.
Hodiernamente tem-se percebido dentro de parcela da sociedade civil um forte movimento de clamor por uma nova intervenção militar no país. Desvios de finalidade, escândalos qualificados pela imoralidade e pelas ilegalidades de um sistema político carcomido pela corrupção, que possui na figura dos nauseabundos agentes políticos o reflexo de uma desordem institucionalizada, vem promovendo dentro da maior parcela da sociedade um inadvertido desejo de se ver institucionalizada a ordem.
Não se pode inobstante, rezar pela cartilha de um retrocesso que a Ordem Constitucional de 1988 nos conferiu. Se para muitos já convivemos em um regime de exceção onde a maioria nos impõe um sistema de poder das máximas liberdades de uma democracia sem responsabilidade aos agentes políticos, onde a sociedade se subordina às suas porcas escolhas nitidamente advindas de uma histórica desnutrição cultural, não podemos encontrar na ditadura dos militares a solução para nossa democracia violentada pelo seu mau uso, mas sim em um processo de qualificação da educação para que possamos conscientemente dispor dos instrumentos democráticos que a Constituição nos privilegiou.
Seriam incalculáveis os males de um regime de imposição e restrição das liberdades, quando o poder continuaria de exceção, impositivo das mesmas condutas desviadas da finalidade pública nos termos da história de todas as ditaduras de esquerda ou de direita do mundo, quando o que se alteraria seriam as liberdades públicas que se assujeitariam a um poder central ditatorial e certamente sob um novo modelo constitucional impositivo e autoritário.
Nunca é demasiado lembrar que, estão nas ditaduras os governos mais corruptos da historia mundial, pois em regra são avessos a transparência e insindicáveis. Se hoje não possuímos a transparência que uma democracia faz jus, convivemos com gestões desviadas da legalidade e da moralidade; uma ditadura desejada pela sociedade legitimar-se-iam todas essas ilegalidades e outras mais que o sistema de freios e contrapesos, marcadamente advindo do Poder Judiciário e do Ministério Público, não mais teria forças para controlar, pois controle não mais haveria.
Devemos assim lutar para que a democracia não regrida com o deletério retorno de uma ditadura militar no contexto de uma “ordem impositiva moralizante”, o que revelar-se-ia um ledo engano, assim como, para que a democracia desviada que se pratica hoje não prospere ao ponto de com os mesmos atores político tornar-se uma ditadura civil maquiada por uma Constituição relida, reinterpretada nos interesses desviados, como se faz hoje com as leis Muçulmanas através do terror imposto por seus extremistas. Este é um dos riscos de um Estado aparelhado, de um STF ideologicamente comprometido com o ideário de governo, com as instituições de poder com capacidade de fiscalização, como é a OAB, envolta na mesma linha de desvio institucionalizada.
Após toda esta exposição devo, por honestidade intelectual asseverar, que a tentativa de se contrapor aos argumento colacionados utilizando-se dos termos "sob autoridade do Presidente da República" trazido no próprio art. 142, que estruturou parte deste trabalho, ou mesmo outro, o de formarmos um "Estado Democrático de Direito", na forma do art. 1º da Carta Republicana, não obsta o que aqui foi dito.
A ordem de que tratamos o art. 142 pode restar quebrada pelo Presidente da República e uma intervenção militar revelar-se-ia constitucionalmente crível para o restabelecimento da ordem. Nesta conjectura por certo, uma nova Ordem Constitucional seria estabelecida. Manutenção da ordem pública é mais um conceito jurídico indeterminado que comporta interpretações, inclusive a que permitiria uma intervenção, mas veria como condição necessária o caos de fato instaurado e a legitimidade de parcela substancial da sociedade clamando por uma intervenção para o "restabelecimento da ordem", teríamos paradoxalmente im “golpe” legitimado.
A intervenção, mesmo que em tese consentida pela Constituição em seu art. 142, sem o apoio de generosa parcela da sociedade, à título de restabelecimento da ordem, não seria medida bem vista nem internamente, nem pelas comunidades internacionais, ilegítima, já quando medida socialmente desejada, com clamor, não apenas não existiria impedimento constitucional como, em tese, legitimar-se-ia.
Este trabalho tem o propósito de advertir para o fato de que se os civis não estão conduzindo corretamente os destinos da Nação, o que em tese, revelar-se-ia motivo suficiente para uma hipotética intervenção militar para “restauração da ordem”, nos termos da Carta de 1988, uma espécie de “golpe militar” que a Carta de 1988 não vedou, ao contrário, consentiu nos lindes do art. 142, é preciso que não apenas o poder constituído compreenda a mens legis do poder constituinte, mas que a sociedade tenha razoável compreensão estatuído pela Constituição.
De forma hipotética, a união dos militares à sociedade para restabelecimento da ordem, mantendo-se o Estado constitucional, em especial a garantia dos direitos individuais fundamentais inseridos na ordem constitucional vigente, com eleições diretas, de pronto já marcadas no ato de intervenção, revelar-se-ia situação mais palatável aos legítimos interesses de parcela social, quando os militares apenas serviriam como instituição de poder que reorganizaria o retorno da ordem democrática aos civis em curto espaço temporal, tão somente uma ponte entre a desordem e a ordem constitucional restabelecida. Nestes termos uma intervenção militar, nos termos permitidos da Carta de 1988, jamais poderia assemelhar-se minimamente com o regime autocrático de 1964, sob pena de revelar-se um golpe não permitido pela Carta Republicana.
Deixemos claro que a democracia é um direito fundamental dos mais caros e que a sociedade não deve abdicar. Uma sociedade despida de suas liberdades com responsabilidade torna-se um agrupamento de não cidadãos tendentes aos mesmos movimentos dos gados, à “gadificação”, como o perdão do neologismo. A luta por uma democracia transparente e não maquiada e mentirosa, sobretudo mais participativa, quando a sociedade tem voz para manifestar-se e o respeito dos poderes constituídos para ser ouvida, deve ser a meta a ser alcançada. Por qualquer sociedade ‘livre” da qual o verdadeiro poder emana.
Democracia não e sinônimo de respeito ao voto, ao escrutínio, como muito imaginam, vai muito além e por vezes com ele chega a incompatibilizar-se. Uma sociedade democrática deve conferir aos seus cidadão o direito de escolher os seus representantes sem aprisioná-los por suas escolhas infelizes, muitas vezes ludibriados, manipulados pelas forças de poder, conferindo-lhes assim, instrumentos para reparar os erros cometidos e legitimar novamente o poder que se constituiu. A legitimidade conquistada nas urnas pode ser perdida no exercício do poder de representação política, quando esta representação verifica-se incompetente, improba ou imoral. As manifestações nas ruas são legítimas e constitucionalmente asseguradas (art , 5º, IV e XVI), os poderes constituídos devem ouvi-las, assim asseverando-se a melhor democracia, não propriamente com a imposição do resultado de um escrutínio que o exercício desviado do poder de representação política pode ter feito perder a legitimidade.
Precisamos de instrumentos democráticos como é o “Recall político/eleitoral” como forma de aprimoramento de nossa democracia, assunto que já articulamos com suficiência, ao qual remetemos o leitor. O instrumento de impeachment retira do povo e entrega aos seus representantes a possibilidade de “caçar” a representação, o mandato politico, abrindo-se a oportunidade de conluios, tráficos de influências e troca de favores pelo poder, cada vez mais promíscuo e sem balizas morais.
Concluímos assim aduzindo duas premissas e uma conclusão:
1ª premissa: Uma intervenção militar com o fim de restabelecer a ordem pública é permitida pela Constituição Republicana de 1988;
2ª premissa: O Estado constitucional não pode sofrer solução de continuidade, ruptura;
Conclusão: Uma intervenção militar, como ultima ratio, poderia iniciar-se constitucional nos termos admitidos pelo art. 142 da Carta Maior, mas obrigatoriamente dever-se-ia manter-se nos lindes traçado pela Constituição vigente com a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, sob pena de tornar-se um golpe com a pecha de inconstitucional.
Esperamos haver contribuído para cada peculiar reflexão a partir desta complexa discussão de certa forma ignorada pelos pensadores do direito.
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. A Constituição de 1988 vedaria uma intervenção militar? E quando cessa a legitimidade advinda do escrutínio, como fica a democracia? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 mar 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2070/a-constituicao-de-1988-vedaria-uma-intervencao-militar-e-quando-cessa-a-legitimidade-advinda-do-escrutinio-como-fica-a-democracia. Acesso em: 27 nov 2024.
Por: Ives Gandra da Silva Martins
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Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
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