“Em política, estar com a rua não é o mesmo que estar na rua” (Ulysses Guimarães).
O presente artigo tem o objetivo de bradar o recall político (eleitoral) como o instrumento democrático indispensável para a tão esperada e postergada reforma política deste país.
No sistema parlamentarista de governo, o Executivo é uma espécie de delegação do Parlamento a que se atribui a função de governar, em consonância com um programa aprovado pela maioria da casa legislativa. Estabelece-se um processo político semelhante a uma pirâmide de três degraus: na base está o titular da soberania, o povo; sobre esta base assenta-se um órgão de representação, o parlamento; e no vértice, sobre esta camada intermediária, instala-se um colégio mais reduzido, uma "comissão de confiança" do Parlamento, o governo (gabinete). A chefia deste governo é atribuída a um primeiro-ministro eleito não diretamente pelo povo, mas por um colégio eleitoral, o Parlamento, após indicação de um árbitro das disputas políticas, o chefe de Estado - um monarca, ou um presidente da República. Assim, no parlamentarismo, as atribuições de chefe de governo e as de chefe de Estado são deferidas a pessoas distintas. A vontade do povo manifesta-se somente na constituição do Parlamento, daí falar-se que o regime parlamentarista é um regime monista. Isto é, de urna única vontade popular. Costumeiramente o parlamentarismo utiliza-se do recall como forma de cassar alguns de seus mandatários.
No sistema presidencialista, o governo representativo baseia-se em uma separação (restrita) de poderes, estabelecendo-se uma independência relativa entre Executivo e Legislativo. O povo, da mesma forma que escolhe o Parlamento, também elege diretamente o chefe de governo, que soma às funções executivas as de chefe de Estado. Desta forma, fixando-se poderes distintos (Executivo e Legislativo), desconcentrando-se as funções estatais e submetendo-se ambos - Parlamento e governo - ao voto popular, reforça-se no presidencialismo o princípio do exercício da soberania pelo sufrágio universal. Tanto o governo quanto a câmara de representação são politicamente responsáveis perante o próprio povo. A legitimidade do governo por este ângulo é maior no presidencialismo, posto que o consenso democrático deriva de uma relação direta entre os cidadãos e o titular da chefia de governo. O regime de governo presidencial é dualista, isto é, de dupla vontade popular, resultando num permanente e positivo tensionamento político. Combina a recorrência periódica ao voto universal e o sistema de freios e contrapesos que só o presidencialismo proporciona com a desconcentração, separação e controle de mão dupla do próprio poder. Costumeiramente o presidencialismo utiliza-se do “impeachment” como forma de cassar alguns de seus mandatário
Independente do sistema de governo que se adote somos entusiastas defensores do recall como instrumento de democracia popular também para o sistema presidencialista como uma tentativa de impelir o princípio da Moralidade a um Estado Democrático de Direito Constitucional.
O processo de impeachment não deve ser confundido com o recall político, que é usualmente iniciado por eleitores e pode ser fundamentado, por exemplo, por má administração. Apesar de ambos servirem para pôr fim ao mandato de um representante político, os dois institutos diferem quanto à motivação e à iniciativa (titularidade) do ato de cassação do mandato. Impeachment é iniciado por um órgão constitucional (geralmente legislativo) e, geralmente - mas não sempre - decorre de uma infração grave e vontade política para o seu processamento.
Para que se desencadeie o processo de impeachment, é necessário motivação, ou seja, é preciso que se suspeite da prática de um crime ou de uma conduta inadequada para o cargo prevista em lei como prática sujeita a impeachment. Já no recall, tal exigência não existe: o procedimento de revogação do mandato pode ocorrer sem nenhuma motivação específica. Ou seja, o recall é um instrumento de vontade popular. Por isso que, no impeachment, o procedimento é geralmente desencadeado e decidido por um órgão legislativo (político), enquanto que, no recall, é o povo que toma diretamente a decisão de cassar ou não o mandato.
A proposta de recall seria a maior mudança que o país poderia pleitear em uma reforma política séria. Permitir-se-ia a convocação de referendos populares para revogar mandatos de parlamentares e do Presidente da República. Com o voto, os eleitores também poderiam decidir pela dissolução da Câmara dos Deputados e convocação de novas eleições. A legislação atual trata de referendos de forma geral. Não há lei específica para o caso do recall, ou seja, a revogação dos mandatos eletivos. Pelas regras em vigor, a convocação das consultas populares tem que ser autorizada pelo Congresso ou pelo Presidente da República, nestes termos o Congresso e a Presidência da República mantém-se com o controle de veto da vontade popular, ainda que contrário ao interesse público, mas nos termos dos interesses políticos preponderante no país.
Nesta senda que, com o recall teríamos a verdadeira soberania popular, quando o Executivo e o Legislativo não mais poderiam modular os efeitos das consultas e vontades populares nos termos dos seus interesses.
A sociedade teria em mãos o poder de exigir transparência nas funções de poderes, quando o escárnio que sistematicamente estes sistemas de poderes submetem o povo poderiam sofrer uma solução de descontinuidade pela vontade popular antes de findo o jogo em seu tempo normal. Assim que, campanhas eleitorais mentirosas que exploram a ingenuidade social para conseguirem a eleição, manipulam verdades através de dados falsos para lograr êxito no processo de reeleição, poderiam restar cassados pelos representados que os elegeram, nada mais justo, responsável e democrático quando o “poder emana do povo”.
O “recall” nestes termos, retiraria a “tirania” da vontade política do Congresso – no caso do processo de impeachment no Brasil, da Câmara - de simplesmente por interesses políticos conluiados arquivarem uma iniciativa popular de cassação de um mandato político que pode haver perdido a legitimidade, praticando o que chamamos de “negação à representação popular”, que nosso ver é um gravíssimo desvio funcional.
Em nossa realidade política o Congresso Nacional não conta com a qualquer credibilidade, com a fidúcia para representar a vontade popular, quando sistematicamente nega-se a representá-la. São representantes do povo apenas no âmbito, no interregno das promessas eleitorais, quando eleitos representam não o interesse público que tanto prometeram, mas os interesses privatistas, de grandes corporações que escambiam trocas de favores em desvios de finalidade e os interesses corporativos de poder.
Defendemos assim, a possibilidade da democracia que não blinde os poderes, o sistema de suas próprias mazelas. Sustentamos, que um mandatário eleito pelo povo, e portanto, com legitimidade para o exercício de seu mandato, possa ao longo deste exercício perder a legitimidade popular e restar cassado, independente da vontade política do Congresso Nacional, mas nos termos da vontade popular. Desta forma teríamos verdadeiramente gestões no interesse público, nos termos das campanhas eleitorais, quando lograríamos afugentar do cenário político de representação popular os contumazes ludibriadores de esperanças, que utilizam do poder financeiro (muitas vezes da máquina pública – dinheiro público) para induzir o eleitorado a erro, comprar com dinheiro público a “fidelização” do eleitor.
Em uma democracia popular o povo precisa ter em mãos instrumentos para responsabilizar seus mandatários sem que hajam embargos de continuidade patrocinados pelo sistema de poder, corporativos por essência.
No meio político o recall é vocábulo imperiosamente proibido. Quanto menos nele se falar, quanto maior o número de pessoas que o desconhece, que ignoram sua serventia, maior a possibilidade deste instalado e espraiado sistema de corrupção manter-se intocado e com os mesmos atores canastrões como protagonistas.
Nesta democracia em que a liberdade de expressão que a Constituição a todos tutela em seu núcleo duro, mas que implicitamente também permite que seja absolutamente ignorado pelas forças de poder. Uma liberdade de expressão que verticalmente – relação Estado X sociedade - prescinde de funcionalidade para que produza efetividade.
Quem sabe em uma próxima oportunidade os “jovens” ao saírem às ruas encontrem algum fundamento para lutar que vá além do aumento do aumento do valor das passagens de ônibus.
A nosso sentir, uma reforma política neste país tem seu ponto inegociável de credibilidade a proposta da possibilidade de a sociedade controlar efetivamente os mandatários que elegeu. Sem a possibilidade do recall, a política dos freios e contrapesos (checks in balances) manter-se-á corporativa, apenas entre as funções de poder, em um sistema de troca de blindagens, sem que o povo de fato participe dos destinos políticos deste país. Aduz-se a um modelo delegado e absolutamente inefetivo de controle, já que é o próprio Poder que controla o Poder.
Votar às cegas, quando o candidato em nosso sistema político-constitucional não responde por suas falsas promessas e mentiras eleitorais, é corroborar a institucionalização da mentira como uma válida possibilidade do jogo. Quando não se oferece aos eleitores a possibilidade revisão de suas escolhas, o induzimento ao erro passou a ser um consectário negativo de uma democracia, democracia que cabe censura, democracia até a página 2.
O modelo de uma democracia mais participativa que dê a oportunidade do cidadão revisitar suas escolhas pode revelar-se uma forma eficiente de driblar os sistemas majoritários inseridos em sociedades com déficit educacional e, portanto, cognitivo.
O Governo Dilma é um exemplo clarividente do que defendemos. Eleita por pequena margem de votos depois de sucessivos escândalos, entre eles o mensalão, fez uma campanha absolutamente sem transparência mutilando os números do governo e prometendo medidas que sabia não poderia cumprir. Ao se reeleger pratica exatamente medidas que prometeu não praticar onerando o contribuinte sem desonerar as folhas de pagamento do Estado. Novos escândalos muito maiores explodem e a legitimidade que possuía no momento do escrutínio hoje não mais possui, vide pesquisas recentemente realizadas que apontam um índice de rejeição de 69% dos eleitores.
Impeachment? O Congresso não permite, dominado pela situação, ainda que atos praticados estejam perfeitamente inseridos na Lei 7079/50, que dispõe a respeito dos crimes de responsabilidades – impeachment – que exaustivamente tratamos em artigos precedentes.
Finalizamos com a definição de recall político que sustentamos ser de fundamental importância em uma reforma política no Brasil, que significa o poder de cassar e revogar o mandato de qualquer representante político, pelo eleitorado; é chamar de volta para "reavaliação" popular, não só os mandatários reconhecidamente corruptos, mas os incompetentes ou inoperantes. Simploriamente, colhendo-se um número de assinaturas determinado pela Constituição ou pela lei, convoca-se um recall, através do qual o eleitorado decide se um mandatário deve ou não ter o seu mandato cassado.
PEC do Recall, agora bem fundamentada, por que não?!
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. Reforma Política? Recall político! Controle da moralidade, competência e legitimidade de nossos mandatários Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2079/reforma-politica-recall-politico-controle-da-moralidade-competencia-e-legitimidade-de-nossos-mandatarios. Acesso em: 27 nov 2024.
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