“O Estado não pode simplesmente se eximir da execução direta" de certas atividades, passando a tarefa para a iniciativa privada. Foi o que defendeu nesta o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em ação que discute os limites da contratação de organizações sociais para executar serviços públicos.
A ADI 1.923 tramita desde 1998 [um inominável absurdo no retardo da aguardada pacificação social] e ataca a Lei de Organizações Sociais. Nos lindes da inicial, a norma desobedece a Constituição Republicana ao permitir que a administração pública delegue a entidades privadas a execução de serviços que o Texto diz ser obrigações estatais.
O voto do ministro Marco Aurélio foi um voto-vista que discordou dos dois votos que o precederam, dos ministros Ayres Britto (relator) e Luiz Fux. Após do voto do vice-decano, a sessão foi suspensa e conclusão do caso ficou para esta quinta-feira (16/4).
Nos termos do voto do ministro Fux, a Constituição permite outras formas de organização da atividade estatal que não apenas a centralização da prestação de serviços essenciais. Segundo o ministro, a decisão do que pode ou não ser delegado a organizações sociais é do Congresso, obedecendo o "princípio democrático".
Marco Aurélio diverge. Sustentou em seu voto "a modelagem estabelecida pelo Texto Constitucional para a execução de serviços públicos sociais como saúde, ensino, pesquisa, cultura e preservação do meio ambiente, não prescinde de atuação direta do Estado". Por isso, continua, são inconstitucionais leis que "emprestem ao Estado papel meramente indutor nessas áreas, consideradas de grande relevância pelo constituinte".
Continua, ao salientar que essa distribuição de tarefas "configura privatização que ultrapassa as fronteiras permitidas pela Constituição".
Começa então a exemplificar para agregar valor aos seus argumento: no caso dos serviços de saúde, o artigo 196 da Constituição Federal os declara “direito de todos e dever do Estado”. O artigo 199, embora mencione que a “assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, explicita, no parágrafo 1º, que a participação das instituições privadas se dá apenas de forma complementar ao sistema único de saúde. Com a educação, que, segundo os artigos 205 e 208 da Constituição, é “dever do Estado”, assegura Marco Aurélio. Já o artigo 211, parágrafo 1º, dá à União a tarefa de financiar "as instituições de ensino públicas federais".
E continua, agora no campo da cultura, expressando que de acordo com o artigo 215 da Constituição, o “Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, sem prejuízo de apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações culturais. Marco Aurélio também defende que a administração pública não pode delegar a promoção do "desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas".
Em resumo, para Marco Aurélio as OSs são uma fraude à Constituição.
Sobre o meio ambiente, o ministro cita o artigo 225 da Constituição, que confere ao poder público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente "para as presentes e futuras gerações". "Por mais que se reconheça a importância de atuação conjunta do poder público e da sociedade na defesa e preservação do meio ambiente, fato é que não há como se admitir a transferência integral da execução direta dessas atividades para a iniciativa privada, assumindo o Estado papel de mera indução e coordenação", proferiu.
Esta ADI perseveramos trazê-la à debate pois promove importante debate que revela o quão paradoxal podem revelar-se expressões hermenêuticas corretas, mas vislumbradas de pontos referenciais distintos.
Clarividenciado está que, parte da Corte se posicionará no espírito e dogmática constitucional atendendo sua força normativa, respeito à sua literalidade posta disponibilizada pelo constituinte, em clara interpretação de viés positivista. Outros ministros já propugnam uma hermenêutica neoconstitucionalista, que procura adequar o texto à realidade e desta forma imbricando aproximar a Carta de 1988 a uma exigência circunstancial em prol da efetividade das normas constitucionais.
Esta ADI em comento é um belo exemplo o quão importante e atual foi a discussão protagonizada por Ferdinand Lassale (concepção sociológica da Constituição) e Konrad Hess (concepção jurídica da vontade de constituição). Marco Aurélio induz em seu voto a ideia de Hess enquanto Ayres e Fux trazem a ideia da constituição real de Lassale. Claro que percebemos traços marcantes, mas não exclusivos dos dois pensadores nos votos da ADI ora tratada.
Mais que evidente fica o intérprete da Constituição entre o dever de conferir a máxima força normativa ao texto constitucional ou interpretá-lo, de certa forma com uma pitada de ativismo judicial o texto da forma que melhor se amolde aos termos atuais da sociedade, quando de certa forma retirar-se-ia o papel da Constituição de protagonista e espraiadora de suas normas nos termos que o constituinte dispôs o parlamento nada mais falou.
Os chamados serviços públicos essenciais que, de fato, deveriam nos termos da ordem constitucional vigente, restarem prestados pelo Estado Social ou não são prestados ou muito mal prestados, com inapelável ineficiência e desprezo pela dignidade da pessoa humana, apesar da tributação acachapante, que em sua totalidade beira o confisco, mas que é ardilosamente desviada de suas finalidades (aí os tributos vinculados ou não). A alegação que o estado promove de prestar na medida do possível, apenas derrubada, episodicamente, nos tribunais, acaba prevalecendo em maior parte das vezes sobre o mínimo existencial, o que uma ordem constitucional social-cidadã jamais poderia tolerar se efetiva fosse.
O contribuinte absurdamente onerado a ponto de comprometer sua dignidade e muitas vezes a própria sobrevivência, não recebe historicamente serviços públicos essenciais minimamente dignos quando prestados pelo poder público, nos exatos termos da Constituição Federal vigente, quando através do princípio Cooperativo –Solidário a sociedade busca através do dinamismo próprio das sociedades contemporâneas procurar meios (entidades de cooperação) para que referidas prestações fundamentais, essenciais, restem prestadas, cheguem a sociedade com maior dignidade.
Aqui não estamos discutindo com o dinheiro que o Estado muitas vezes subsidia referidas entidades de cooperação é empregado, que sem fiscalização adequada é em grande parte das vezes desviado de sua finalidade para o locupletamento privatista. Falamos sim, apenas de alternativas capazes de suprir um Estado absolutamente incompetente, ineficiente.
A presente ADI, apesar de proposta em 1998, uma década após a concepção da Carta de 1988, parece-nos afirmar que já àquela época a Constituição Republicana não atendia em parte fundamental, dos direitos fundamentais do cidadão, aos anseios da sociedade, mais se assemelhando aos valores programáticos no campo de uma constituição meramente de intenções, sem a efetividade imediada que deveriam promover no âmbito social.
Necessário já era, e mais que nunca continua a ser uma ampla discussão a respeito de reformas em nosso modelo constitucional de prestações do Estado. Se o Estado historicamente denota-se um péssimo executor das politicas públicas capazes de cumprir o programa normativo constitucional, durante o tempo ratificou sua incapacidade como prestador social, uma alternativa deve ser buscada e constitucionalizada.
Se pensarmos verdadeiramente em um Estado gerencial bem planejado,, menos inchado e mais barato, fornecendo prerrogativas, poder e material humano qualificado (não com cargos comissionados, mas com pessoal técnico-concursado) para as agências reguladoras com responsabilidade de resultados, uma iniciativa privada eficazmente fiscalizada à partir de um modelo exaustivamente regulamentado de proteção do Estado às prestações dirigidas ao cidadão. Nessa onda, com um Estado mais barato seria o momento da desoneração do contribuinte pessoa jurídica para que pudéssemos produzir de forma mais competitiva e eficiente no mercado (nacional e internacional), praticarmos preços mais razoáveis, reduzirmos o custo de vida do brasileiro com a redução do processo inflacionário e seu corolários. Momento das pessoas físicas também restarem desoneradas, com suas remunerações por seus labores com maior integridade, sem o confisco de mais de 30% de seu suor diário.
Fim do Estado sanguessuga que, lenta, mas persistentemente, exaure as riquezas da nossa castigada nação e, o que é bem mais terrificante, sob o manso olhar de uma sociedade alienada e alheada, realimentada perenemente pelo famigerado "pão e circo romano". O festejado filósofo e sociólogo francês, Edgar Morin, contemporâneo e quase centenário, já vaticinava: "O que não se regenera, se degenera". Irretocável epílogo para nosso pobre Brasil...
Não divergimos do preclaro ministro Marco Aurélio que apoia-se no positivismo de Konrad Hess em seu voto, como também não divergimos para o futuro da posição defendida por Fux e Ayres Brito, em uma interpretação neoconstitucionalista que procura coadunar a Constituição às nossas necessidades reais. Sorte nossa que não precisamos votar!
Ao final, em plenário (dia 16/04/2015) prevaleceu a interpretação esperada, de que o Estado não pode simplesmente se eximir da execução direta"de certas atividades, passando a tarefa para a iniciativa privada. Foi o que defendeu nesta o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, nos termos que expusemos nesta ação que discutiu os limites da contratação de organizações sociais para executar serviços públicos.
Por votação majoritária, a Corte julgou parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923, dando interpretação conforme a Constituição às normas que dispensam licitação em celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as organizações sociais para a prestação de serviços públicos de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação ao meio ambiente, cultura e saúde. Na ação, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionavam a Lei 9.637/1998, e o inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/1993 (Lei das Licitações).
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. Importante! STF com uma década de atraso discute na ADI 1923 questão estrutural de Estado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2094/importante-stf-com-uma-decada-de-atraso-discute-na-adi-1923-questao-estrutural-de-estado. Acesso em: 27 nov 2024.
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