Esses dias nos deparamos nos noticiários com mais uma “autoridade” desautorizada (um guarda de trânsito do RJ) fora do exercício de suas funções, ofendendo uma pessoa da cor negra trazendo como fundamento para ofensa a cor da sua pelé [do ofendido], tratando como se uma sub-espécie humana representasse. O racismo é visto com inapelável constância nos estádio de futebol e resta indubitável ser um crime que afeta não apenas o ofendido direto, mas indiretamente toda a sociedade.
Por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) capacitou, desde o ano passado, 328 juízes em início de carreira na disciplina Políticas Raciais. O objetivo é prepará-los para atuar contra o racismo e eventuais injustiças causadas pela estigmatização da população negra.
A disciplina Políticas Raciais passou a fazer parte da grade curricular, que já incluía matérias como o Judiciário e a Sociedade; Direito Eleitoral; o Juiz e as Relações Interpessoais e Interinstitucionais; Mediação e Conciliação; Vara da Infância e Juventude; e Sistema Carcerário.
Torna-se essencial para o magistrado que ele seja sensibilizado sobre a existência do problema do racismo e sobre o que isso, eventualmente, impacta no exercício da sua função jurisdicional.
Alguns magistrados procuram desqualificar o problema do racismo no Brasil qualificando-nos como pertencentes a uma democracia racial, um mito entre alguns magistrados que precisa ser desconstruído. É preciso que enxerguemos a existência de racismo no Brasil sem que coloquemos uma turva película de hipocrisia, e já em segundo momento, que o racismo consiste em grave violação aos Direitos Humanos. Passo seguinte, atentar-se para o fato de que não se concebe uma democracia onde se valora pessoas pela cor da sua pelé, não se concebe a democracia branca impondo seus valores raciais excludentes. Aqui o princípio da igualdade formal há que ser aplicado só se olvidando sua não aplicação quando se implementar políticas de ações afirmativas que busquem alcançar essa igualdade que a história desigualou.
A educação, ou sua ausência, é fator determinante que se soma a outros fatores como são os históricos de colonização, por exemplo. O Judiciário cumpre papel fundamental no campo pedagógico quando sanciona como ilícito que é, o ato discriminatório por raça, demonstrando que o direito não agasalha práticas que atentem contra a isonomia dos homens (sentido amplo), contra suas dignidades, valores, princípios que a Carta de 1988 ordenou como direitos fundamentais estruturais de nosso Estado Democrático de Direito. O Judiciário precisa imprimir uma visão holística sobre o direito.
Chamar alguém de “nego safado”, é crime de? Se você respondeu crime de racismo, está certo, certíssimo, mas a maioria das autoridades policiais e judiciárias brasileiras não pensa assim. Convenientes tecnicalidades enquadram a ofensa como crime de injúria. A questão é das mais relevantes no enfrentamento do racismo no País para que não se dê uma sensação de impunidade diante de atos que julgamos extremamente hostis, contrários ao princípio Civilizatório, cruéis e desumanos.
Imperioso se faz situar a problemática. A Constituição de 1988 estabelece que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Concretizando essa norma constitucional, foi editada a Lei 7.716/1989, definindo os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, cujo art. 20, na redação que lhe deu a Lei 9.459, de 15 de maio de 1997, prescreve claramente ser crime de racismo praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor e etnia.
Em outro viés de reprimenda, o Código Penal brasileiro, em seu art. 140, § 3º, regula o crime de injúria racial, que vem a ser atribuição de qualidade negativa à pessoa ofendida com elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem. Em nosso exemplo, “nego safado” seria injúria racial, e não racismo.
Para quem entende assim, o crime de racismo consistiria apenas nas ofensas amplas, a dizer, aquelas que importam em agressão à raça em seu âmbito geral e genérico, embora individualmente refletida em determinada pessoa. Disso seriam exemplos negar emprego por causa da raça, impedir o acesso de pessoas de cor negra a estabelecimentos comerciais, shopping centers, a elevadores em edifícios de apartamentos, entre outros. Em suma, na ofensa direta, a bonomia judicial brasileira vem resolvendo a questão como injúria. Isso tem importantes efeitos práticos no combate ao racismo, porque o crime de injúria somente admite ação penal mediante representação do ofendido, que pode inclusive perdoar a ofensa, enquanto que, no crime de racismo, o processo tem início por ação pública, de iniciativa do Ministério Público, além de ser, conforme a norma constitucional, inafiançável e imprescritível.
A tutela da proteção contra a ofensa está, portanto, nitidamente prejudicada pela interpretação predominante. Caricaturando a situação, o empresário pode abrir as portas do trabalho ao homem negro, dizendo: “está admitido, nego safado”, situação em que seguramente não será processado, porque o emprego falará mais alto do que a ofensa recebida.
A legislação brasileira tem sendas hipócritas como esta. Por isso, é preciso mudar o pensamento das autoridades policiais e judiciárias e escancarar o combate ao racismo, colocando na cadeia, sem direito a livrar-se solto, todo aquele que tiver e manifestar preconceitos de raça, cor, etnia, religião, afastando-se a aplicação do tipo de injúria, quando se tratar de ofensa direta e dirigida a pessoa determinada. O MP cumprirá papel fundamental denunciando certas praticas tidas hoje, equivocadamente, como de injúria racial, como racismo, é preciso entender o racismo verdadeiramente como racismo e não desclassificá-lo para injúria racial como é a prática.
É necessário entender que a lei, ao tipificar a prática de racismo como crime, quis incluir – e incluiu – no tipo todas as manifestações de racismo, porque somente assim se torna efetivo o comando constitucional. A questão é de dignidade humana, e não de técnica legal: o conceito de racismo não pode admitir gradação. A ofensa enraíza no ofendido deprimentes, lamentáveis e sofridos sentimentos: desvaloriza os mais primitivos interesses de preservação da vida; tende a retrair e a diminuir os seus valores pessoais e intelectuais; ele se desespera; volta-se para o íntimo e foge do convívio social; perde as referências; revolta-se, mas sem redenção à vista; vive, mas se sente morto.
Além de toda essa exposição há clara desproporção na reprimenda para a prática do que se tem por “injúria racial” para racismo, ofende de forma flagrante o postulado da proporcionalidade pelos efeitos perpetrados por cada um de seus tipos, quando as condutas muito se assemelham.
Há que se extirpar com a hipocrisia neste país, e este combate social deve iniciar-se com um Estado firme que não perpetre a impunidade que desqualifica o homem e o espírito da Constituição. Preciso o Estado mandar seu recado coercitivo-pedagógico para que a sociedade consiga perceber o quão séria se perfaz esta questão.
Esta é uma luta de brancos, negros, índios, amarelos, caboclos, cafuzos e mamelucos (...), é uma luta do ser-humano enquanto gente, é uma luta para a implementação dos valores humano-constitucionais de uma democracia cara limpa.
Lamentavelmente ainda precisamos vencer o entendimento dominante que desautoriza o eficaz combate ao racismo, alargando o âmbito deste tipo e restringindo o campo de subsunção do tipo da injúria racial. Neste ponto, os juízes podem, ou devem, iniciar este processo de melhor adequação da aplicação do direito ao fato, tutelando esta espécie de indignidade difusa, dando oportunidade para que o MP possa agir mais efetivo, na mais consentânea aplicação do melhor direito que reverbere o melhor sentido de pacificação social.
Particularmente defendemos que raças não existem, a ideia de raça humana é tóxica! Racismo é um fenômeno social pernicioso, não um fenômeno biológico. A inexistência das raças biológicas ganhou força com as recentes pesquisas genéticas. Os geneticistas descobriram que a constituição genética de todos os indivíduos é semelhante o suficiente para que a pequena porcentagem de genes que se distinguem (que inclui a aparência física, a cor da pelé, etc) não justifique a classificação da sociedade em raças. Essa pequena quantidade de genes diferentes está geralmente ligados à adaptação do indivíduo aos diferentes meio ambientes.
Nunca é demais lembrar, que o STF atribuiu aos tratados de Direitos Humanos status de supralegalidade quando não aprovado com quorum de emenda constitucional.
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. Racismo! Judiciário e MP devem cumprir seus papeis dentro da sociedade - Entenda a discussão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 maio 2015, 07:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2103/racismo-judiciario-e-mp-devem-cumprir-seus-papeis-dentro-da-sociedade-entenda-a-discussao. Acesso em: 27 nov 2024.
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