Resumo: O Brasil, onde vigora o sistema jurídico de natureza Civil Law, vem se beneficiando das fortes transformações provocadas pela influência do Common Law. O Direito brasileiro, portanto, se aproxima cada vez mais do modelo teórico do Stare Decisis. Essa assertiva se evidencia na crescente valorização da decisão judicial como fonte indispensável do Direito. Trata-se da chamada commonlawlização na prática do Direito nacional.”
Palavras-chave: Commonlawlização. Direito Sumular. Common Law. Civil Law.
A evolução do Direito brasileiro, de tradição romano-germânica, aponta para uma intensa influência do sistema do Common Law, mais conhecido como Direito não escrito, de origem anglo-saxã. Nesse contexto, destaca-se uma crescente valorização da decisão judicial como fonte indispensável do Direito. Trata-se do movimento chamado commonlawlização do Direito nacional.
Nesse cenário, a progressiva valorização do Direito sumular se justifica na necessidade de conferir uniformização à jurisprudência, de modo a atingir o tão sonhado ideal de uma tutela jurisdicional que seja marcada pela racionalidade, celeridade e previsibilidade. Essa busca pela uniformização cada vez maior da jurisprudência se insere no bojo de um movimento de reformas estruturais que têm por finalidade superar a atual crise do Poder Judiciário brasileiro, marcada pela excessiva morosidade da prestação jurisdicional. Basta observar o imenso volume de demandas em tramitação (chegando, hoje, a cerca de 100 milhões) e a lentidão na finalização de um processo judicial (que tem demorado, em média, 10 anos para ser julgado), problemas que se revelam como os maiores obstáculos ao funcionamento adequado dos órgãos judiciais no Brasil.
Antes de iniciarmos a análise do tema proposto no presente artigo, cumpre esclarecer o alcance das expressões “jurisprudência”, “precedente” e “súmula”.
O vocábulo jurisprudência, em seu sentido etimológico, significa justa prudência (do latim jus“justo” + prudentia “prudência”). Já em acepção técnica, refere-se ao conjunto das decisões judiciais reiteradas em um mesmo sentido, através da interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto. Conforme destaca o ilustre Marcel Nast, Professor da Universidade de Estrasburgo (França), “a jurisprudência possui, na atualidade, três funções muito nítidas, que se desenvolveram lentamente: uma função um tanto automática de aplicar a lei; uma função de adaptação, consistente em pôr a lei em harmonia com as ideias contemporâneas e as necessidades modernas; e uma função criadora, destinada a preencher as lacunas da lei”.[1]
Conforme elucidam Didier, Braga e Oliveira: “Precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”.[2] A diferença principal entre jurisprudência e precedente é quantitativa: chama-se de precedente a decisão isolada de um tribunal, enquanto o termo jurisprudênciarefere-se a um conjunto de decisões uniformes de um tribunal.
A expressão súmula (do latim summula, que significa “sumário” ou “resumo”) foi o termo cunhado pelo Ministro Victor Nunes Leal, no ano de 1963, para sistematizar em enunciados curtos o que o Supremo Tribunal Federal vinha decidindo reiteradamente nos seus julgamentos. Assim foi que, em 1964, através de uma emenda ao Regimento Interno do STF, as súmulas ingressaram em nosso ordenamento jurídico com o intuito de aprimorar a uniformização da jurisprudência e, assim, agilizar o julgamento das questões mais frequentes, amenizando o congestionamento de processos na Suprema Corte. Gradativamente, outros Tribunais despertaram para a importância do uso das súmulas, passando a publicar seus próprios verbetes de jurisprudência.[3]
Adentrando especificamente no tema objeto do presente artigo, urge analisar o atual fenômeno mundial de aproximação e fusão entre os dois maiores sistemas jurídicos existentes: o Civil Law e o Common Law.
O Civil Law (também chamado de sistema romano-germânico) é o sistema jurídico mais disseminado no mundo e tem por base fundamental a lei escrita, esteja esta codificada ou não. Já o Common Law (Direito comum ou Direito consuetudinário), mais conhecido como Direito não escrito, é o sistema jurídico de origem anglo-saxã, que se desenvolveu a partir das decisões dos Tribunais ou Juízos – e não por atos legislativos ou executivos. Em síntese: o sistema do Civil Law é marcadamente legalista, isto é, possui a legislação como fonte primária do Direito, ao passo que o Common Law tem como fonte primária os precedentes judiciais.
A tradição do Common Law, que se originou na Inglaterra, prevalece não somente na Grã-Bretanha, mas também na Irlanda, nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e nas partes da África e Ásia que a Grã-Bretanha colonizou, incluindo a Índia. A tradição do Civil Law predomina na maior parte da Europa Ocidental, América Central e do Sul, bem como nas partes da Ásia colonizadas por países europeus que não a Grã-Bretanha, e mesmo em áreas da família do Common Law, como, por exemplo, Louisiana, Quebec e Porto Rico.[4]
Nos países que seguem o sistema do Common Law, os precedentes judiciais possuem eficácia vinculante, em especial os precedentes oriundos de Corte Superior, assegurando assim que casos análogos futuros sejam solucionados da mesma forma; trata-se da chamada Teoria do Precedente Judicial (Stare Decisis). Por outro lado, no sistema do Civil Law, os precedentes judiciais são, como regra, não vinculantes, dado que impera o princípio da legalidade.
O cenário mundial atual, marcado pelo processo de globalização, é palco de uma intensa comunicação intercultural, o que conduz à progressiva aproximação desses dois sistemas jurídicos, que passam a dialogar. Nesse passo, vemos países de tradição anglo-americana marcados pelo sistema do Common Law, elaborando normas legislativas gerais, ao passo que, em países de sistema Civil Law, a jurisprudência e os precedentes judiciais passam a ganhar força cada vez maior.
Vejam-se, por exemplo, os Estados Unidos, caracterizados por um sistema misto entre Common Law e Civil Law. Este sistema é marcado pela convivência de uma Constituição Federal americana escrita ao lado dos tradicionais precedents (“doctrine of precedents” – que em português seria “regra do precedente”).[5]
O Brasil, onde vigora o sistema jurídico de natureza Civil Law, vem se beneficiando das fortes transformações provocadas pela influência do Common Law. O Direito brasileiro, portanto, se aproxima cada vez mais do modelo teórico do Stare Decisis. Essa assertiva se evidencia na crescente valorização da decisão judicial como fonte indispensável do Direito. Trata-se da chamada commonlawlização na prática do Direito nacional.[6]
Nesse passo, merece destaque a regulamentação do sistema de Súmulas Vinculantes do STF,[7] bem como o art. 105, inciso III, alínea c, da Constituição Federal, que disciplina o chamado recurso especial pela divergência jurisprudencial– cabível quando existir divergência de interpretação de lei federal entre diferentes Tribunais, chamando-se o Superior Tribunal de Justiça para apontar a correta interpretação.
No âmbito do STJ, guardião da interpretação da legislação federal e uniformizador da jurisprudência, são publicadas atualmente súmulas que, embora não apresentem caráter vinculante – o que significa que o magistrado, no julgamento posterior de caso similar, não é obrigado a decidir conforme a regra sumulada –, possuem efeito persuasivo, na medida em que constituem indício de uma solução racional e socialmente adequada. Possuem também efeito impeditivo ou obstativo da revisão das decisões, impedindo sua discussão através de recurso (art. 518, § 1º, CPC), o reexame necessário (art. 475, § 3º, CPC) e a revisão da matéria recursal, nos termos do art. 557 do Código de Processo Civil.
No atual cenário jurídico brasileiro, os verbetes sumulares, ao viabilizarem a previsibilidade das decisões judiciais, revelam-se como valioso instrumento de uniformização e estabilidade de jurisprudência. Nesse passo, o Direito Sumular ergue-se como um eficiente mecanismo para a simplificação do julgamento das questões mais frequentes perante o Judiciário, e para o combate à morosidade processual.
Em virtude do objetivo de aprimoramento da segurança jurídica – entendida esta como a garantia de previsibilidade das decisões judiciais –, amplia-se cada vez mais a importância do Direito Sumular como verdadeiro ramo do Direito e clama-se pela sua inclusão como matéria curricular na formação acadêmica do profissional do Direito.
Esta realidade atesta a assertiva de que o ordenamento jurídico brasileiro torna-se cada vez mais sumular, revelando-se o estudo do Direito Sumular dos Tribunais Superiores imprescindível para a formação acadêmica do profissional do Direito e fundamental para a evolução do sistema jurídico pátrio.
NOTAS:
[1] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 146.
[2] Cf. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Oliveira. Curso de Direito Processual Civil. V. 2, 2009, p. 381.
[3] Aqui, cumpre registrar o que bem aponta Fernando Dias Menezes de Almeida (in Memória jurisprudencial: Ministro Victor Nunes.Brasília: STF, 2006, p. 32, nota de rodapé nº 3): “Na terminologia original e ainda na terminologia regimental, a expressão “súmula” se referia ao conjunto dos “enunciados”, publicada e atualizada periodicamente; a prática posterior consagrou também o uso de “súmula” significando cada enunciado”.
[4] Cf. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & Economia. Tradução Luis Marcos Sander, Francisco Araújo da Costa. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. 77.
[5] Conforme esclarece Guido Fernando Silva Soares, o precedenté a única ou várias decisões de um appellate court, órgão coletivo de segundo grau que obriga sempre o mesmo tribunal ou os juízes que lhe são subordinados”, ressaltando que “os julgados das inferior courts of original jurisdiction, ou seja, os órgãos de primeiro grau, não constituem precedentes” (in Common Law. Introdução do Direito dos EUA. 2. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 40).
[6] Sobre o movimento da commonlawlização do Direito brasileiro, indicamos a leitura do artigo intitulado Sobre a Common Law, Civil Law e o precedente judicial, de autoria do ilustre Jurista Sérgio Gilberto Porto (Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Sergio%20Porto formatado.pdf>. Acesso em: 07.02.15).
[7] Cumpre registrar que, com a chegada da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, foi inserido na Constituição Federal de 1988 o art. 103-A, que permitiu ao STF, após reiteradas decisões sobre a questão constitucional em controle difuso de constitucionalidade, aprovar súmulas com efeito vinculante e aplicação obrigatória para os demais órgãos do Poder Judiciário e Administração Pública direta e indireta. Ressalte-se também que a Emenda Constitucional nº 45/04 não conferiu caráter vinculante às súmulas anteriores do STF, que somente podem adquirir o caráter vinculante se votadas por 2/3 dos Ministros da Suprema Corte.
Advogada, autora de diversos artigos publicados em revistas jurídicas e das obras "Direito Sumular - STF" e "Direito Sumular - STJ", São Paulo: JHMizuno, 2015.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILLAR, Alice Saldanha. A influência do sistema do common law no ordenamento jurídico brasileiro: estaria o direito pátrio se tornando cada vez mais sumular? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 dez 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2263/a-influencia-do-sistema-do-common-law-no-ordenamento-juridico-brasileiro-estaria-o-direito-patrio-se-tornando-cada-vez-mais-sumular. Acesso em: 22 nov 2024.
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