As alterações agora processadas pela Lei nº 11.689/08 parecem ter, de vez, suprimido o recurso de ofício (para aqueles que ainda o consideram em vigor, mesmo a partir de 1988) na hipótese processual de absolvição sumária decretada nos casos de crimes dolosos contra a vida. E digo, parecem, porque, para a convicção plena da revogação do instituto, se fez pertinente análise mais criteriosa que escapa à literalidade tão só do novo texto legal. Assim é que o art. 411, do Código Processual Penal, anterior à novata legislação modificadora, dizia que na absolvição sumária o juiz recorreria, de ofício, de sua decisão. Pois bem. O novo art. 411 não foi revogado, mas, sim, recebeu redação com matéria completamente diversa, tratando pois, de audiência na fase preliminar em rito do júri. E a absolvição sumária migrou para o art. 415, que silencia sobre recursos. Destarte, somente essa alteração textual não implica em se considerar extinta a absolvição sumária, porque ainda havia e há menção à sua existência no art. 574, II, que trata da voluntariedade dos recursos. Ali se explica que os recursos serão interpostos por vontade das partes ou compulsoriamente pelo juiz, nos casos elencados , um dos quais, a absolvição sumária. Assim, será que o novo art. 415 deverá ser lido em substituição ao antigo art. 411, quando da leitura do art. 574, II (como se faz com outras hipóteses legais de revogações ou modificações não explícitas, em que artigos são deslocados) ou o novo art. 415 disciplina totalmente a questão? A primeira hipótese deve ser considerada pela regra da generalidade, porque ligada ao âmago dos recursos unicamente, sendo o art. 574, II, não tanto disciplinador do recurso de ofício à absolvição sumária, mas, sim, esclarecedor de regra. Porém, mesmo assim, ainda poderia conter validade e vigência, máxime porque a regra geral (o novo art. 415) nada fala. Doutra banda, com as alterações em comento, a absolvição sumária foi ampliada, saindo do casulo do júri e abrangendo todos os demais procedimentos (art. 397). Disso resulta que, se o entendimento a prevalecer seria o da permanência do recurso de ofício, como ficariam as absolvições sumárias decididas nos procedimentos ordinário e sumário? Não há (e nunca houve) previsão para o recurso de ofício em tais situações e como apenas a absolvição sumária do júri estava no antigo art. 411, o art. 574, II teria que ser interpretado de forma extensiva para abraçar não apenas o art. 415 (absolvição sumária do júri), com o novo art. 397 (absolvição sumária dos demais ritos). Sem embargo, não se faz crer que o legislador, ao modificar quase toda sistemática processual que vigorou por mais de sessenta anos, pudesse cometer o equívoco de ampliar um instituto já existente e deixá-lo, por outro lado, a critérios interpretativos duvidosos e não tanto satisfatórios ou plenamente convincentes. E de mais a mais, veja-se que a nova lei se preocupou, em parte, com a problemática recursal da absolvição sumária no júri, tanto que alterou o tipo de recurso cabível, que era o recurso estrito, passando a ser agora, o de apelação, fazendo isso de modo explícito, tanto no capítulo processual do júri, quanto nos recursos em geral (arts. 416 e art. 581, IV e VI- art. 2º, da Lei 11.689/08). Ora, se mesmo assim fazendo a lei, pode ser que tenha se esquecido de modificar o art. 574, II. Ou pode ser que o entendeu tacitamente revogado em razão das novas alterações. Prefiro ficar com essa última possibilidade. Não há como se sustentar a ampliação interpretativa do art. 574, II para alcançar todas as hipóteses previstas porque o novel instituto, a meu ver, disciplinou de modo totalmente diverso do modo até então existente, procurando, sem dúvida, sobretudo, enxugar as formas ritualísticas, inclusive com possibilidade de absolvição sumária para todos os processos em curso, com decisão terminativa de mérito (apelável), que incompatibiliza a possibilidade de recurso oficial, figura burocrática e contrária à vontade das partes. E, por uma interpretação sistemática, todos os demais casos de recurso de ofício (reabilitação, arquivamento de inquérito em crimes contra a economia popular, concessão de habeas corpus em 1º grau e decisão do relator que indefere revisão criminal) não são hipóteses de interrupção de fase processual, por assim dizer, mas, sim, decisões em fase final da lide, o que não compromete a missão do novo legislador em acelerar o processo penal, com quis com a atual reforma.
José Carlos Gobbis Pagliuca, o autor
Primeiro promotor de Justiça de São Paulo (SP). Mestre em Direito Processual Penal pela PUC/SP. Doutorando em Direito Penal pela UNED (Madrid, Espanha).
Precisa estar logado para fazer comentários.