Em recente decisão (HC 126.292/SP, Rel. Min. Teori Zavaski) o Supremo Tribunal Federal, suposto “Guardião da Constituição”, alterou entendimento daquela própria corte superior sobre a questão do trânsito em julgado de decisões condenatórias criminais sobre as quais pendem recursos na via extraordinária (recursos extraordinário ou especial).
O entendimento anterior, em acordo com a Constituição Federal no que tange ao Devido Processo Legal e seus princípios constituintes, tais como o da Presunção de Inocência, Duplo Grau de Jurisdição, Regra da Liberdade Provisória etc., era o de que, pendente recurso na via extraordinária, não se poderia falar em trânsito em julgado e, portanto, o réu somente ficaria preso, aguardando esses julgamentos nos casos em que se justificasse a Prisão Preventiva (artigo 312, CPP).
Eis que a Corte Suprema dá uma guinada total no entendimento e passa a afirmar que o Duplo Grau de jurisdição deve ser interpretado ao pé da letra, que a Presunção de Inocência somente tem validade até o julgamento do primeiro recurso na via ordinária e que o trânsito em julgado já ocorre no momento em que essa decisão e segunda instância é proferida.
Como bem afirma Sannini Neto, trata-se de uma decisão “política” (no pior sentido da palavra) do STF, visando posar bem perante a chamada “opinião pública”, esse ente abstrato e amorfo. Deformar a Presunção de Inocência não vai resolver a mora no julgamento dos recursos, não vai agilizar a justiça e, muito menos, vai ensejar uma prestação jurisdicional melhor.
Decisão transitada em julgado, por obviedade, não pode jamais ser aquela sobre a qual ainda pende recurso, mesmo que seja em via extraordinária. Não adianta fazer contorcionismos jurídicos e expor erudição. Isso é só uma capa de falsa legitimação para um decisório que perverte todo o sistema de garantias, tão somente para aderir a uma atividade judicante simbólica e demagógica. Muitas vezes ocorre o que Aires afirma: “o que a ciência nos traz é sabermos errar com método” ou “legitimar o erro”.
A decisão do STF procura colocar a “culpa” na falta de celeridade da Justiça brasileira nos advogados que simplesmente usam dos recursos disponíveis na legislação. Ora, o advogado recorre, o Judiciário não julga em tempo, o Ministério Público não cumpre prazos à risca e a culpa é do advogado e do indivíduo submetido à jurisdição? Qual a lógica disso a não ser uma lógica pervertida, uma lógica do bode expiatório eleito arbitrariamente para desviar o foco dos verdadeiros problemas?
Tratando das famigeradas propostas do Ministério Público Federal para suposto combate “eficaz” (sic) à corrupção (propostas estas também meramente simbólicas e midiáticas), assim se manifesta Dotti a respeito da prescrição, com plena aplicabilidade ao que ocorre com o “decisum” atabalhoado do STF sob comento:
“Fica muito claro, na própria definição do instituto, que a causa determinante da prescrição é o imobilismo do Estado e não a atuação da defesa na interposição de recursos cabíveis, cuja demora para julgá-los não pode ser atribuída ao cidadão, mas deve ser debitada ao Judiciário. Em outras palavras: a responsabilidade é de natureza pública. E ainda quando a chicana vencer os limites éticos impostos ao advogado para alcançar o benefício da prescrição, valendo-se da omissão do juiz tardinheiro ou prevaricador, a teoria do domínio do fato deve ser utilizada por analogia, porque ao magistrado incumbe prover à regularidade do processo (CPP, art. 251). Ele tem o poder de controlar a continuidade ou a paralisação da ação tipicamente ilícita (violação de normas éticas legalmente estabelecidas). Com efeito, o partícipe, ou seja, o advogado da parte, não domina, por si só, a reprovável estratégia cujo bom êxito depende da nociva contribuição causal por omissão ou ação do Ministério Público e/ou do Juiz” (grifos nossos).
A responsabilidade estatal não pode ser jogada nas costas dos advogados e muito menos dos cidadãos. A celeridade do processo é obrigação do Estado que não pode simplesmente se desincumbir nomeando um bode expiatório e adotando uma postura populista, desprovida de qualquer rigor científico, jurídico e mesmo ético.
A verdade é que o Judiciário e o Ministério Público vão se alinhando a uma postura altamente reprovável de adesão irresponsável “ao mais rasteiro populismo penal”. Nesse quadro:
“Os direitos fundamentais, antes entendidos como trunfos civilizatórios contra maiorias de ocasião e limites intransponíveis às perversões inquisitoriais, passaram a ser percebidos pela população em geral, e pelos atores jurídicos em particular, como obstáculos à eficiência repressiva do Estado”.
Não é possível fazer justiça somente com o desejo de aparentar estar fazendo justiça. A Justiça não é uma aparência, uma formalidade, uma bravata, ela tem de ser substancial, concreta e real. “Não pode haver justiça quando esta se exercita por algum fim que não seja por ela só; nem pode ser justo nunca quem tem por objeto principal a glória de o parecer”. Parecer justo não é ser justo. Querer aparecer como justo perante a chamada “opinião pública”, na “mídia” fluida das redes, das conversas, das opiniões descompromissadas, é algo inclusive que se pode classificar de leviano. Ademais, se trata de aderir a uma guerra estúpida, aquela denominada por Delmas – Marty de “guerra aos direitos humanos”.
Realmente é lamentável que o STF tenha se submetido a uma perversão tamanha a ponto de deixar seu posto de “Guardião da Constituição” para se tornar seu carrasco e coveiro. E tudo em nome de uma posição confortável, de uma acomodação e blindagem a críticas de setores que sequer têm a menor noção do que sejam as garantias individuais e sua importância.
REFERÊNCIAS
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