INTRODUÇÃO: ORIGENS
Alguns teóricos do Direito constitucional afirmam que o constitucionalismo moderno começa a ser formado no processo que se inicia com a Magna Carta na Inglaterra em 1215. Entretanto ali não está presente a idéia de uma Assembléia Nacional Constituinte que, elaborando o texto de uma Constituição, dará início a uma nova realidade constitucional, fruto da vontade de um poder soberano e baseado na vontade popular. Temos, portanto, duas realidades constitucionais que hoje parecem, lentamente, gradualmente, se fundirem, mas que ainda são muito distintas.
Embora o Brasil tenha sofrido influência do Direito estadunidense a partir da Constituição de 1891, que copiou diversas instituições dos Estados Unidos da América como o federalismo, o presidencialismo, o seu modelo bicameral, o modelo de suprema corte e o modelo de controle difuso de constitucionalidade, nossa tradição constitucional é construída a partir do modelo continental europeu, transformando o nosso constitucionalismo em um dos mais ricos do mundo, pois promove a construção de um processo de síntese, ainda inicial, dos dois grandes sistemas jurídicos modernos, o que pode ser expresso no nosso controle misto de constitucionalidade das leis e na importante idéia de jurisdição constitucional difusa.
Entretanto, há algo em comum entre o modelo estadunidense e o europeu continental, não compartilhado pela Inglaterra: a existência de um poder constituinte originário, inicial, soberano e de primeiro grau capaz de romper com a ordem anterior e iniciar uma nova vida jurídica constitucional com a nova Constituição.
A teoria do poder constituinte atualizada pela análise da relação entre democracia e constituição é uma contribuição importante para pensarmos esta permanente conexão e tensão entre Constituição, como pretensão de segurança, permanência e garantia de direitos, e Democracia como transformação social e conquista de novos direitos históricos. O poder constituinte originário, como elo de ligação extremo entre democracia e segurança, é o reconhecimento da possibilidade/necessidade de revolução. O Direito democrático não pode ficar distante, ou ignorar a possibilidade de revolução como processo radical e democrático de transformação social. O Direito deve estar próximo, permanentemente, à democracia. A Constituição significa a segurança de que a democracia, enquanto processo criador de transformação, não se perderá em lutas incessantes de poder, e logo no risco do autoritarismo ou totalitarismo. Neste sentido o poder constituinte originário deve ser este elo entre democracia e constituição no momento mais radical de transformação social: a ruptura revolucionária com a constituição para a construção de uma nova ordem democrática.
Neste ensaio buscaremos explicar esta ligação entre democracia e constituição na história moderna; revisitaremos a teoria do poder constituinte; para então vislumbrarmos os novos caminhos do estado plurinacional na América Latina, especialmente nas novas constituições democráticas e plurais da Boliva e Equador.
DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO
Importante neste momento lembrar a importante relação entre democracia e constituição.
O Constitucionalismo não nasceu democrático. Nascido na forma liberal, o constitucionalismo visava a construção de um espaço de segurança jurídica e de proteção da esfera de decisão individual. Segurança, propriedade privada e privacidade são as palavras que identificam o constitucionalismo liberal. Este não nasceu democrático e os direitos fundamentais, nas suas constituições protegidos, eram para poucos. Os direitos políticos eram assegurados apenas para homens, proprietários e ricos.
Dentro do conceito da época, a constituição seria incompatível com a democracia majoritária uma vez que aquela visava proteger o direito e a vontade de cada indivíduo, enquanto esta, representaria a vontade do coletivo majoritário sobre o minoritário e logo sobre a vontade individual.
A fusão entre democracia e constituição ocorreu apenas na segunda metade do século XIX, quando então, por força dos movimentos operários e dos partidos de esquerda conquistou-se primeiramente o voto igualitário masculino, para depois de algum tempo, gradualmente, conquistar-se o sufrágio universal com o voto igualitário e o fim da discriminação de gênero. Esta fusão entre democracia e constituição trouxe a importante noção de “democracia com segurança” que se transformou com o tempo, na idéia de que, a vontade da maioria tem limites de decisão, estabelecidos na obrigatoriedade de respeitar os direitos das minorias e no núcleo duro de qualquer constituição: os direitos fundamentais.
Entretanto a tensão entre constituição e democracia não acabou, e nem poderia: constituição ainda significa segurança e pretensão de permanência, enquanto democracia significa mudança e, portanto, risco. Democracia é risco pois é expressão de vontade das pessoas em sociedade. Nós somos seres históricos, em permanente processo de transformação. Transformamos nossas sociedades permanentemente, como fruto de nossa busca incessante. Só uma ditadura (mesmo que travestida de outros sistemas) pode ter pretensão de permanência.
Logo é fácil concluir que, mesmo democráticas, as constituições como limitadoras e conformadoras, mesmo sofrendo mutações interpretativas e mudanças formais de seu texto, serão sempre, em algum momento, superadas pela dinâmica social. Daí a existência do poder constituinte originário como poder de ruptura democrática. Este é o momento onde a democracia rompe com uma ordem que não mais responde socialmente, para então, democraticamente, estabelecer outro sistema constitucional. Este é sempre um momento de risco, pois é o momento onde a democracia se desprende do direito, se desprende dos limites jurídicos para logo estabelecer novos limites, diante do medo de que, a falta de limites, transforme esta vontade criadora livre em uma ditadura da maioria.
O Poder Constituinte
A diferenciação entre Poder Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, por solicitação do Terceiro Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma convocação formal.
Na França revolucionária (1789) foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder, afirmando a partir de então que a nação, o povo (seja diretamente ou através de uma assembléia representativa), era o titular da soberania, e, por isso, titular do Poder Constituinte. Entendia-se então que a Constituição deveria ser a expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma construção teórica transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única) vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no passado, entretanto, sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais democrático que tenha sido qualquer poder constituinte vamos encontrar no complexo jogo de poder por traz da constituinte aqueles que têm a capacidade ou possibilidade de impor seus interesses com mais força do que outros.
Podemos dizer que a elaboração geral da teoria do Poder Constituinte nasceu, na cultura européia, com SIÉYÈS, pensador e revolucionário francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época, assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos como poderes derivados do primeiro, são contribuições do pensador..
SIÉYÈS afirmava que objetivo ou o fim da Assembléia representativa de uma nação (a idéia de nação aí aparece como algo maior que o povo, diferente da idéia de povo como aqueles que se sentem parte do Estado nacional desenvolvida em outro momento) não pode ser outro do que aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez a ponto de alguém, ou um grupo, na Assembléia geral, afirmar que os que ali estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de um determinado grupo.[1]
A escola clássica francesa entende a Constituição como um certificado da vontade política do povo nacional e, portanto, produto de uma Assembléia Constituinte representativa da vontade deste povo. Hans Kelsen se opõe a esta idéia afirmando que a Constituição provém de uma norma fundamental.[2] Importante ressaltar neste ponto que os conceitos dos diversos autores serão influenciados pela compreensão da natureza do Poder Constituinte: seja um poder de fato ou um poder de Direito.
Um outro aspecto que devemos estudar sobre o Poder Constituinte é relativo a sua amplitude. Alguns autores entendem que o poder constituinte se limita a criação originária do Direito enquanto outros compreendem que este poder constituinte é bem mais amplo incluindo uma criação derivada do Direito por meio da reforma do texto constitucional, adaptando-o aos processos de mudança sociocultural[3], e ainda o poder constituinte decorrente, característica essencial de uma federação, quando os entes federados recebem (ou permanecem com) parcelas de soberania expressas na competência legislativa constitucional.
Finalmente, um terceiro aspecto a ser estudado, e sobre o qual também existem divergências, diz respeito à titularidade do Poder Constituinte.
Para uma melhor compreensão desta matéria e de suas diversas compreensões, é necessário estudar separadamente cada um destes elementos. Não se pode vincular, como pretenderam alguns, o posicionamento com relação à natureza do Poder Constituinte com a sua amplitude, e mesmo com sua titularidade em determinados casos.
A amplitude do Poder Constituinte
Vamos encontrar em diversas obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro como, por exemplo, em PINTO FERREIRA, a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar a Constituição.[4] Entre muitos clássicos podemos destacar WALTER DODD, KELSEN, HAURIOU e REW BARBOSA entre muitos, os que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam, afirmando que o Poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição encontramos SCHMITT, HELLER, RECASÉNS SICHES, CARL FRIEDRICH e DNEZ.
A importância desta discussão teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato das fundamentações teóricas da força do poder de reforma (através de emenda e revisão). Alguns autores tendem admitir força igual ao poder originário, em algumas circunstâncias, fazendo com que os limites materiais, circunstanciais, formais e temporais, praticamente desapareçam.
O problema central desta discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas. Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a uma situação de insegurança grande, pois maiorias qualificadas no parlamento poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma de poder constituinte derivado, não é o bastante para lhe oferecer tal força, mas é importante que isto fique bem claro.
Retornamos pois a antiga discussão para compreendermos o perigo que reside nos rótulos, que são teorias que ao oferecer muita força ao legislativo ordinário para mudar a Constituição, pode retirar o que de há de essencial no constitucionalismo moderno, ou seja, a busca da segurança, inclusive contra maiorias qualificadas no parlamento, que podem estabelecer uma espécie de absolutismo da maioria, ou ditadura da maioria, que como um rolo compressor desmonta a Constituição. Esta discussão é ainda especialmente importante quando assistimos os problemas vividos pela democracia representativa, onde o financiamento privado de campanha, o poder econômico concentrado, inclusive na mídia, além de outros mecanismo de controle, constroem maiorias parlamentares que muitas vezes defendem interesses de poucos, em detrimento de muitos, mas que se legitimam em aparentes democracias representativas.
Importante notar que muitos dos autores clássicos acima citados, ao negar a amplitude maior do poder constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado, não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, preservando com isto a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias ou sem limites. Esta é a questão central que nos interessa.
Lembrando as palavras de IVO DANTAS:
“O Poder Constituinte interessa à sociologia, especificamente a sociologia do Direito e a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o chamado Poder de Reforma, erroneamente denominado Poder constituinte derivado.”[5]
Seguindo esta linha de raciocínio, e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do fenômeno constituinte, podemos afirmar que embora o poder constituinte originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual ele está rompendo, este poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas, sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.
Talvez seja necessária neste ponto uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos de ação da assembléia constituinte decorrentes das influências dos diversos grupos de interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e democráticos do processo constituinte desde que manifestos de forma livre e dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes, e os limites ilegítimos, não democráticos, decorrentes de influências do poder econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes através do abuso do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas puramente corporativas sobre o processo de votação na assembléia constituinte. Convém lembrar que estas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a este sistema econômico. O que resta fazer é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as influências que SIÉYÈS já mencionava como ilegítimas (e improváveis) pois decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não equilibrada e ilegítima (não vamos também acreditar nesta inocência de Siéyès).
O poder constituinte derivado, ou de reforma, portanto se divide em dois: o poder de emenda e o poder de revisão. Enquanto o poder originário como poder de ruptura pertence a uma assembléia eleita com finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida sua função, sendo um poder temporário. O poder de reforma é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites materiais.
O poder de reforma por meio de emendas pode em geral se manifestar a qualquer tempo, sofrendo limites materiais, circunstanciais, formais e algumas vezes temporais. Este poder consiste em alterar pontualmente uma determinada matéria constitucional, adicionando, suprimindo, modificando alínea(s), inciso(s), artigo(s) da Constituição.
O poder de revisão em geral tem limites temporais, além dos limites circunstanciais, formais e materiais, ocorrendo, em algumas Constituições, sua manifestação periódica, como na Constituição portuguesa de 5 em 5 anos. Na nossa Constituição, houve a previsão de manifestação de poder uma única vez não podendo ocorrer de novo pois estava prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A revisão é mais ampla que a emenda. Como sugere o nome trata-se de uma revisão sistêmica do texto, respeitados os limites do poder de reforma. No Brasil, a nossa revisão foi atípica, se manifestando por meio de emendas de revisão.
Esta discussão não é nova e encontramos nos clássicos do Direito Constitucional nacional e estrangeiro varias referencias a amplitude do poder constituinte e o poder de reforma.
NELSON DE SOUZA SAMPAIO, afirmava que o poder reformador está abaixo do Poder Constituinte e jamais poderá ser ilimitado como este. Seja como se queira chamar este poder reformador, seja de Poder constituinte constituído como faz SANCHES AGESTA; poder constituinte derivado como faz PELAYO e BARACHO, ou poder constituinte instituído segundo BURDEAU, devemos encará-lo como faz PONTES de MIRANDA, como uma atividade constituidora diferida ou um poder constituinte de segundo grau como faz também ROSAH RUSSOMANO.[6]
Outro aspecto referente a amplitude do Poder Constituinte diz respeito ao Poder Constituinte decorrente, ou seja, o poder constituinte dos entes federados, no nosso caso, Estados membros e Municípios. Já estudamos no nosso livro Direito Constitucional, tomo II, da Editora Mandamentos, as características principais do Estado Federal. Naquele momento, deixamos claro que o que difere o Estado Federal de outras formas descentralizadas de organização territorial do Estado contemporâneo é a existência de um poder constituinte decorrente, ou seja, a descentralização de competências legislativas constitucionais, onde o ente federado elabora sua própria Constituição e a promulga, sem que seja possível ou necessário uma intervenção ou a aprovação desta Constituição por outra esfera de poder federal. Isto caracteriza a essência da Federação, a inexistência de hierarquia entre os entes federados (União, Estado e Municípios no caso brasileiro), pois cada uma das esferas de poder federal nos três níveis brasileiros, participa da soberania, ou seja, detém parcelas de soberania, expressas nas suas competências legislativas constitucionais, ou seja, no exercício do poder constituinte derivado.
Não estamos afirmando que os estados membros, a União e os municípios são soberanos, pois soberano é o Estado Federal, a expressão unitária da soberania, ou seja, sua manifestação integral, só ocorre no Poder Constituinte Originário. O que afirmamos, é que no Estado Federal, além de uma repartição de competências legislativas ordinárias, administrativas e jurisdicionais, há também, e isto só ocorre no Estado Federal, uma repartição de competências legislativas constitucionais. Esta repartição de competências constitucionais implica na participação dos entes federados na soberania do Estado, que se fragmenta nas suas manifestações.
Entretanto, este poder constituinte decorrente, embora represente a manifestação de parcela de soberania, não é soberano, e por este motivo deve ser um poder com limites jurídicos bem claros, limites estes que podem ser materiais, formais, temporais e circunstanciais. No caso da Constituição de 1988, esta estabelece limites materiais expressos e obviamente implícitos, deixando para o poder constituinte decorrente, que é temporário (assim como o originário), prever o seu funcionamento, e o funcionamento do seu próprio poder de reforma e seus limites formais, materiais, circunstanciais e temporais. O poder constituinte decorrente é de segundo grau (se dos Estados membros) e terceiro grau (se dos municípios), subordinados a vontade do poder constituinte originário, expressa na Constituição Federal.
A natureza do Poder Constituinte
Alguns autores entendem que o poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se entendermos o Direito como sendo sinônimo de lei positiva, posto pelo Estado, o poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente neste ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nesta perspectiva legalista já ultrapassada, que reduz o Direito à regra, transformando a construção do Direito em uma simples aplicação da receita pronta da lei ao caso concreto.
Importante entender a força do poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem vigente, e, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação a ordem com a qual este poder rompe, e pela qual não se limita.
Esta afirmativa contém a essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição na sua essência deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode romper com seus fundamentos e estrutura. Somente um poder social mais forte, porque representando a força democrática da vontade histórica do povo, pode romper com a Constituição para então criar uma nova Constituição. O poder originário nasce da revolução e nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo pois é o poder de transformação social da própria história.
Neste recurso do Direito Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico, reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que queiram transformar toda a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível, única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contraria procuram desenvolver mecanismos meramente representativos e consultivos (plebiscitos e referendos) para legitimar uma alteração radical do texto constitucional, que afete seus princípios fundamentais, criando na verdade uma nova Constituição. Estes mecanismos são verdadeiros golpes contra a segurança jurídica, que como disse, só pode ser rompida pela força social irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não podem o que só milhões poderão.
Pode-se afirmar entretanto que estes milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas como proteger estes milhões da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade popular. Por isto nada pode substituir a mobilização popular fundada em uma democracia dialógica permanente, única justificativa para rupturas constitucionais profundas.
Retornando a discussão inicial, podemos dizer, ao contrário, que, se entendermos que o Direito não se resume ao direito positivo, mas que está essencialmente ligado a idéia do justo, do correto, do direito, estaremos no campo das várias correntes do pensamento do Direito natural. Neste sentido o Direito é sinônimo de justo, e logo a lei positiva pode ou não conter o Direito, pois só será Direito se conter uma norma justa. O conceito do que é justo muda em cada corrente do Direito natural, mas o que há em comum nas várias teorias é a compreensão de que Direito é diferente de lei. Seguindo esta hipótese, o poder constituinte originário será um poder de Direito se representar o justo, o correto, o direito, e ao contrário, será um mero poder fato, ilegítimo, contra o Direito, se não representar a idéia do justo, do correto, do direito.
Este pensamento é elitista uma vez que ao reconhecer que existe um direito justo anterior e superior ao Direito produzido pelo Estado, quem será a pessoa ou pessoas que dirão o justo? Quem terá o discurso legitimado? Se o justo está na vontade divina, quem será o interprete desta vontade? Se o justo está na razão do filósofo, qual será o filosofo que nos dirá o justo?
Apenas os processos democráticos dialógicos com ampla mobilização popular pode justificar uma ruptura, que sendo fato irresistível se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito não se encontra apenas no texto positivado, ou na decisão judicial, mas latente na idéia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de transformação social, e será esta compreensão dialogicamente compartilhada em uma sociedade, em um determinado momento histórico, capaz de legitimar o Direito, sua transformação, incluindo as rupturas constitucionais.
O Poder constituinte originário só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar e penetre nos diversos fluxos comunicativos da complexa sociedade nacional.
Portanto podemos concluir que este poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático, entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o debate dos mais variados interesses e valores da sociedade nacional.
A titularidade do poder constituinte
Acredito que a resposta para a pergunta sobre quem deve ser o titular do poder constituinte já ficou clara no tópico anterior. Entretanto devemos responder a pergunta sobre quem é o titular deste poder nas suas várias manifestações históricas.
Retornando a visão dos ´clássicos` da teoria constitucional, encontramos em SIÈYES a afirmação de que ´a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei`. Uma visão idealista importante como construção do discurso do estado constitucional mas que obviamente não resiste a uma análise histórica. Podemos mesmo perceber que a construção conceitual da idéia de nação para SIÉYES se constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação. De forma diferente, a idéia de nação como estudada no Tomo II[7], constitui-se em numa construção histórica recente e não algo que existe antes de tudo, mas uma criação do próprio absolutismo.
Como vimos, foi com SIEYES que surge a idéia de poder constituinte, diferenciando este poder constituído, que não pode, na sua ação autônoma, atingir as leis fundamentais contidas na Constituição, criada por um poder constituinte, que, por sua vez, é produto da vontade da nação.
No Direito Constitucional brasileiro um autor importante é PINTO FERREIRA, que afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando analisa os termos `Convenção Constitucional´ ,´Assembléia Constituinte´ e ´Convenção Nacional Constituinte´ afirma que a assembléia constituinte é o corpo representativo escolhido a fim de criar a Constituição. Existem para o autor dois tipos principais de organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, e não há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, onde a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular através do referendo. Para o autor, este segundo modelo está mais próximo do espírito democrático. [8]
Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Desta forma encontramos na história distorções graves da teoria democrática, onde o titular é um Rei, um ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O discurso esconde a real fonte do poder, ou mais, o discurso constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto encontramos também, exemplos que poderes constituintes que de formas diferentes, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas expressivas do povo nacional.
Não há dúvida que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima pressão da sociedade civil organizada.
Este poder será democrático na medida em que o processo constituinte sirva como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja possível que as manifestações do jogo de forças sociais seja legitimamente exercido. É fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica seja minado ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor a vontade presente nas ruas e no campo.
Este poder constituinte originário democrático se manifestou na América do Sul em 2008 e 2009 na Bolívia e no Equador.
O NOVO CONSTITUCIONALISMO SUL AMERICANO E O ESTADO PLURINACIONAL.
A América Latina vem sofrendo um processo de transformação social democrática importante e surpreendente. Da Argentina ao México os movimentos sociais vêm se mobilizando e conquistando importantes vitórias eleitorais. Direitos históricamente negados às populações indígenas agora são reconhecidos. Em meio a estes variados processos de transformação social, percebemos que cada país, diante de suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos diferentes, mas nenhum abandonou o caminho institucional da democracia representativa, somando a está uma forte democracia dialógica participativa.
Assim, em 2009 assistimos o Uruguai de Tabaré Vasquez buscar a reconstrução dos direitos sociais; a Argentina de Cristina Kirchner reformar as forças armadas introduzindo o ensino dos Direitos Humanos; o Paraguai de Lugo na busca de um resgate de uma divida centenária de humilhação e exclusão dos pobres e das populações indígenas; o Chile de Michelle Bachelet tentando quebrar a resistência de uma classe média conservadora e machista; a Venezuela de Hugo Chaves caminhando para o socialismo; o povo de El Salvador elegendo um governo comprometido com os direitos democráticos e sociais; e especialmente a Bolívia e o Equador, onde governos eleitos com o forte apoio popular promulgaram suas novas Constituições, e com estas um conceito totalmente inovador para o mundo jurídico: o Estado plurinacional.
Vamos apenas introduzir este conceito como fruto de um processo democrático que se iniciou com revoluções pacíficas, onde os povos indígenas, finalmente, após 500 anos de exclusão radical, reconquistam gradualmente sua liberdade e dignidade.
A formação dos estados nacionais na América Latina ocorreu de maneira bastante diferente do processo Europeu.
A formação do Estado moderno a partir do século XV ocorre após lutas internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge neste momento e de outro lado se afirma perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.[9]
Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).
Um problema importante surge neste momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território deste novo Estado soberano. Assim a construção de uma identidade nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.
Desta forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura própria, identificações comuns com a qual ele claramente se identifica, dificilmente um outro grupo, com outras identificações, reconhecerá o seu poder. Assim a tarefa principal deste novo Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes.[10] A unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, entre outros). O dia que estas identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, os Estado espanhol estará condenado a dissolução. Como exemplo recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados independentes (estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.
Portanto a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.
Este processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população, de valores comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum (na Espanha do século XV os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum, e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser católico e quem não se comportasse como um bom católico era excluído.
A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionado com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na religião, uma base forte de seu poder: o caso mais assustador é o dos Estados Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia cristã que resiste a aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana européia.
O Estado moderno foi a grande criação da modernidade, somada mais tarde, no século XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.
Na América Latina os Estados nacionais se formam a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nestes Estados é o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as elites econômicas e militares, que a maior parte da população se sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.
De forma diferente da Europa onde foram construídos estados nacionais para todos que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos estados, na América não se esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos indígenas, que não existissem: milhões foram mortos.
Neste sentido, as revoluções da Bolívia e do Equador, seus poderes constituintes democráticos, fundam um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado plurinacional, democrático e popular.
Nunca na América, tivemos tantos governos democráticos populares como neste surpreendente século XXI. O importante é que estes governos não são apenas democráticos representativos, mas, fortemente participativos, dialógicos.
Uma idéia nova, neste processo chama a atenção: o Estado Plurinacional das Constituições do Equador e da Bolívia.
CONCLUSÃO: O ESTADO PLURINACIONAL
A idéia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e sistema econômico entre outros aspectos importantes da vida social. Como vimos anteriormente o Estado nacional nasce a partir da uniformização de valores com a intolerância religiosa.
A partir da constitucionalização e sua lenta democratização (em geral, ainda de bases liberais meramente representativas) não se poderia mais admitir a construção da identidade nacional com base em uma única religião que uniformizasse o comportamento no plano econômico (direito de propriedade) e no plano familiar. Tornou-se necessário construir uma outra justificativa e um outro fator agregador que permitisse que os diversos grupos sociais presentes no Estado moderno pudessem se reconhecer e a partir daí reconhecer o poder do Estado como legitimo.
A Constituição irá cumprir está função. Inicialmente não democrático, o constitucionalismo irá uniformizar (junto com o direito civil) as bases valorativas desta sociedade nacional, criando um único direito de família e um único regime de propriedade que sustentaria o sistema econômico. Isto ocorreu em qualquer dos tipos constitucionais: liberal; social ou socialista.
A uniformização de valores e comportamentos, especialmente na família e na forma de propriedade exclui radicalmente grupos sociais (étnicos e culturais) distintos que, ou se enquadram ou são jogados, aos milhões, para fora desta sociedade constitucionalizada (uniformizada). O destino destes povos é a alienação, o aculturamento e perda de raízes ou então a miséria, os presídios ou ainda os manicômios.
A lógica do Estado nacional agora constitucionalizado e mesmo “democratizado” sustenta esta uniformização. A ideologia que justifica tudo isto é a existência de um suposto “pacto social” ou “contrato social”, ou qualquer outra idéia que procura identificar nas bases destas sociedades americanas um suposto acordo uniformizador, como se as populações originarias tivessem aberto mão de sua história e cultura para assumir o direito de família e o direito de propriedade do invasor europeu, que continuou no poder com seus descendentes brancos a partir dos processos de independência no século XIX.
A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente.
O Estado plurinacional reconhece a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes.
Nas palavras de Ileana Almeida[11] sobre o processo de construção do Estado Plurinacional no Equador:
“Sin embargo, no se toma en cuenta que los gruos étnicos no luchan simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de preservar las zonas de significado ecológico-cultural.”
Certamente este Estado joga por terra o projeto uniformizador do Estado moderno que sustenta a sociedade capitalista como sistema único fundado na falsa naturalização da família e da propriedade e mais tarde da economia liberal.
Nas palavras de Ileana Almeida:
“Al funcionar el Estado como representación de uma nacion única cumple también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está generalizada em los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nación ecuatoriana aunque, pó lo general, en su sectores más explotados.”[12]
A Constituição da Bolívia, na mesma linha de criação de um Estado Plurinacional dispõe sobre a questão indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 “povos originários” (aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus), passam a ter participação ampla efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Com a aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para parlamentares oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter propriedade exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com juízes eleitos entre os moradores. As decisões destes tribunais não poderão ser revisadas pela Justiça comum.
Outro aspecto importante é o fato da descentralização das normas eleitorais. Assim os representantes dos povos indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas comunidades.
A Constituição ainda prevê a criação de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema indígena.
A nova Constituição democrática transforma a organização territorial do país. O novo texto prevê a divisão em quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos Estados brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma dessas regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e administrar seus recursos econômicos.
O projeto constitucional avança ainda na construção do Estado Plurinacional ao acabar com a vinculação do estado com a religião (a religião católica ainda era oficial) transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o Brasil é desde 1891).
Outro aspecto importante é o reconhecimento de várias formas de constituição da família.
Além de importante instrumento de transformação social, garantia de direitos democráticos, sociais, econômicos plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um modelo de construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o caminho para se pensar em um Estado democrático e social de direito internacional.
Citando novamente Ileana Almeida:
“En contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la especificidad étinica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas (genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación econômica”.
A América Latina (melhor agora a América Plural), que nasce renovada nestas democracias dialógicas populares, se redescobre também indígena, democrática, economicamente igualitária e socialmente e culturalmente diversa, plural. Em meio à crise econômica e ambiental global, que anuncia o fim de uma época de violências, fundada no egoísmo e na competição a nossa América anuncia finalmente algo de novo, democrático e tolerante, capaz de romper com a intolerância unificadora e violenta de quinhentos anos de Estado nacional.
[1] SIÉYES, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui est-ce que le tiers Etat) organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, tradução Norma Azeredo, Rio de Janeiro, Editora Líber Juris, 1986, pp. 141-142.
[2] KELSEN, Hans. Teoria Geral da Normas (Allgemeine Theorie der Normen), tradução e revisão de José Florentino Duarte, Editora Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, RS, 1986.
[3] DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução, Rio de Janeiro, Editora Rio sociedade cultural Ltda., 1978, p.33.
[4] PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais de Direito Constitucional Moderno, Volume 1, 6 edição, São Paulo, Editora Saraiva, 1983, p.51.
[5] DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução. Ob.cit. pp.40-41.
[6] Entre as publicações consideradas clássicas do Direito Constitucional e da Teoria da Constituição que tratam do assunto podemos citar: HAURIOU, André. Droit Constitutionnel et Institutions Politiques. Editions Montchrestien, 4eme edition, Paris, 1970. SAMPAIO, Nelson de Souza. O Poder de Reforma Constitucional, Livraria Progresso Editora, Salvador, 1954. BARACHO, José Alfredo de Oliveira, Teoria Geral do Poder Constituinte, separata do n.52 da Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 1981. RUSSOMANO, Rosah. Curso de Direito Constitucional, 3 edição revista e ampliada, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1978. VERDU, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Volume I e II, Madrid, Editora Tecnos. 1980. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitucion, 2 ed., Barcelona, Editora Nacional, 1982.
SCHIMITT, Carl. Teoria de la Constitución, México, Editora Nacional, 1973. BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional, Editora Forense, Rios de Janeiro, 1980. VIAMONTE, Carlos Sanchez. Derecho Constitucional, Tomo I, Poder Constituyente, Editorial Kapelusz & Cia. Buenos Aires, Argentina, 1945.
[7] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional Tomo II, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2006.
[8] PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno, 6 edição, revista e ampliada e atualizada, São Paulo, Editora Saraiva, 1983.
[9] CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.
[10] Utilizamos neste texto as palavras identidade e identificações quase com sinônimos, ou seja, uma identidade se constrói a partir da identificação de um grupo com determinados valores. Importante lembrar que o sentido destas palavras é múltiplo em autores diferentes. Podemos adotar o sentido de identidade como um conjunto de características que uma pessoa tem e que permitem múltiplas identificações sendo dinâmicas e mutáveis. Já a idéia de identificação se refere ao conjunto de valores, características e práticas culturais com as quais um grupo social se identifica. Nesse sentido não poderíamos falar em uma identidade nacional ou uma identidade constitucional mas sim em identificações que permitem a coesão de um grupo. Identificação com um sistema de valores ou com um sistema de direitos e valores que o sustentam, por exemplo.
[11] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.
[12] ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19.
Professor do mestrado e doutorado da PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé LUIZ QUADROS DE MAGALHãES, . O Estado Plurinacional Na América Latina Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 mar 2009, 00:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/235/o-estado-plurinacional-na-america-latina. Acesso em: 22 nov 2024.
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