Introdução
O presente estudo pretende analisar a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, que veda a propositura de ação negatória de paternidade na hipótese de reconhecimento voluntário (salvo hipóteses de vícios de consentimento) como manifestação do princípio constitucional do comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium).
Rápidas considerações acerca da vedação do comportamento contraditório.
Noutros estudos de nossa autoria, já nos aprofundamos acerca do princípio constitucional do comportamento contraditório, sua definição, seus elementos e pressupostos.
Por hora, pretendemos apenas explorar as questões cruciais e relacioná-la à decisão concreta proferida pelo guardião da lei federal.
Como é de saber amplo, o venire contra factum proprium consiste na proibição da pessoa de praticar uma conduta ou ato contrário àquele que já praticara anteriormente, sendo este capaz de violar as expectativas legítimas despertadas em outrem ou lhe causar prejuízos.
Noutras palavras, aquele que aderiu a um determinado comportamento, não poderá se opor às conseqüências jurídicas dele espargidas, em razão da legítima expectativa da outra parte, que, de boa-fé, pressupõe a ocorrência de determinados efeitos.
Tal postulado decorre da dignidade da pessoa humana e se relaciona, invariavelmente, com a tutela da boa-fé.
Segundo o próprio mestre Ruy Rosado de Aguiar Júnior (1991), o venire contra factum proprium se reportaria à vedação da atuação contra um fato próprio já praticado que incutira expectativa de efeitos a outrem de boa-fé.
Pressupostos para a caracterização do venire.
Como se extrai da própria definição, para a caracterização do venire contra factum proprium seriam necessários dois comportamentos, da mesma pessoa, lícitos e diferidos no tempo.
A primeira conduta seria contrariada pela segunda e esta traria algum prejuízo a contraparte ou terceiro, sendo, portanto, vedada pelo ordenamento. Isto é, há uma contradição entre duas condutas, posto que a partir da análise da primeira, havia surgido uma legítima expectativa de que outro seria o segundo comportamento.
Neste diapasão, podemos esclarecer os seguintes pressupostos para a caracterização do venire: a) factum proprium; b) legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c) um comportamento contraditório; e d) a existência de um dano ou um potencial de dano a partir da contradição.
O factum proprium é o comportamento inicial do indivíduo. Esse elemento significa um acontecimento advindo de um ato humano (pode ser uma ação ou uma omissão). Evidentemente, trata-se de conduta não vinculante, evidenciando-se como tal somente quando gera uma expectativa legítima na outra parte, atingindo sua confiança e reclamando a aplicação do princípio em questão.
Deve, ainda, ser válido quando individualmente considerado, haja vista que, se não o for, estar-se-á diante do campo da ilegalidade.
Além do “factum proprium”, é indispensável que esta conduta desperte na esfera alheia uma legítima confiança na preservação de seu sentido objetivo. Com relação a esta, Anderson Schreiber (2005), destaca a necessidade de análise do caso concreto para constatar sua ocorrência. A confiança que se perquire não é um estado psicológico daquele sobre quem repercute o comportamento inicial. Trata-se, antes, de uma adesão ao sentido objetivamente extraído do factum proprium.
Como terceiro pressuposto para a aplicação do princípio da vedação do comportamento contraditório, estaria a contradição ao factum proprium. O que se exigiria seria a existência de um comportamento posterior que contrariasse a conduta inicial.
Em decorrência do princípio da boa-fé objetiva, a contradição também seria considerada em sentido objetivo, o que implica dizer que não se perquire a vontade do agente, mas tão somente a existência de comportamento posterior contrário.
Consoante Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p. 323), “o que de fato interessa é que tenha havido a frustração de uma expectativa”, objetivamente.
Também não seria exigida a licitude da conduta, sendo suficiente a incoerência entre dois comportamentos. A contradição ao fato se configuraria como um comportamento posterior, lícito, mas infringente da confiança da contraparte ou de terceiro.
Por fim, cumpre-nos destacar que a aplicação de aludido princípio somente se justifica mediante a existência de um dano ou ameaça de um dano – dano efetivo ou potencial – a outrem. Ora, a confiança despertada deve ser protegida somente diante da possibilidade de dano.
Importante ressaltar que o mero potencial de lesividade é suficiente para a incidência da vedação do comportamento contraditório.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de Recurso Especial (3ª Turma, REsp 1003628, Rel. Nancy Andrighi) decidira que, o indivíduo que reconhecera voluntariamente a paternidade de uma criança, com a qual sabia não possuir qualquer vínculo biológico, não detém o direito subjetivo de ajuizar uma ação negatória de paternidade, salvo hipóteses em que se reste caracterizado vício de consentimento, como erro ou coação.
In verbis:
“O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento, isto é, para que haja possibilidade de anulação do registro de nascimento de menor cuja paternidade foi reconhecida, é necessária prova robusta no sentido de que o “pai registral” foi de fato, por exemplo, induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto”.
Pode-se afirmar, assim, que o guardião da lei federal optou por prestigiar a teoria da vedação do comportamento contraditório e não acatou a alegação de existência de vício insanável (a falsidade).
Nesta linha de raciocínio, já havia pontuado o Tribunal de Justiça de São Paulo (AC 130.334-4 – Marília – 1ª Câmara de Direito Privado – Rel. Des. Guimarães e Souza):
“Não pode o autor de a declaração falsa vindicar a invalidade do registro do nascimento, conscientemente assumida, porque violaria o princípio assentado em nosso sistema jurídico de venire contra factum proprium nulli conceditur”.
Ora, é certo que se a própria parte deu causa ao reconhecimento simulado, não pode alegá-lo posteriormente. Não é razoável que seja desfeito um ato realizado com perfeita demonstração de vontade e pleno conhecimento da realidade circundante.
Não se trata de uma limitação à busca da verdade real, mas sim da coibição da curiosidade e da mera vingança, decorrentes de um relacionamento fracassado, prestigiando-se o “factum proprium” (a realização do registro). O ordenamento, de modo algum, pode aceitar que a legítima expectativa despertada na criança (ou no adolescente) seja frustrada. Afinal, como bem pondera Nancy Andrighi, podem subsistir ex-cônjuges e ex-companheiros, mas nunca “ex-filhos”.
Adota-se o posicionamento de que a ninguém é lícito se valer da própria torpeza, que, in casu, consistiria na falsidade criada pelo suposto pai e n a possibilidade de propositura de ação negatória de paternidade prejudicar os interesses da criança envolvida (segundo, ainda, o STJ, “a ambivalência nas recusas de paternidade são particularmente mutilantes para a identidade das crianças”).
A fragilidade dos relacionamentos não deve perpassar as relações entre pais e filhos, nem tampouco atingir a segurança jurídica.
Criou-se a legítima expectativa, no filho, de que aquela figura seria o seu pai e tal confiança não pode ser frustrada.
Por derradeiro, caracteriza-se como evidente hipótese de venire contra factum proprium o pai, que reconheceu voluntariamente, ajuizar ação negatória de paternidade. Esta demanda se evidencia, por óbvio, como a contradição ao factum proprium. O exercício do direito de ação não é ilícito, mas é transparente a incoerência entre dois comportamentos. Neste sentido, o ordenamento jurídico, prestigiando princípios constitucionais (em sede de processo civil), atua no sentido de vedar tal postulação.
Não são necessárias maiores delongas acerca da possibilidade de ocorrência de danos ao filho, bem como da irrestrita adesão ao factum proprium.
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Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Da impossibilidade de propositura de ação negatória de paternidade quando houve o reconhecimento voluntário como manifestação do princípio constitucional da vedação do comportamento contraditório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 abr 2009, 06:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/257/da-impossibilidade-de-propositura-de-acao-negatoria-de-paternidade-quando-houve-o-reconhecimento-voluntario-como-manifestacao-do-principio-constitucional-da-vedacao-do-comportamento-contraditorio. Acesso em: 23 nov 2024.
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