Introdução
Muito embora nos últimos tempos tenha se verificado um grande avanço no que tange ao ingresso das mulheres no mercado de trabalho, ainda persiste uma discriminação gritante na área profissional, conforme demonstraram os dados da Organização das Nações Unidas divulgados pelo relatório Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente – A Experiência Brasileira Recente. Após grandes e longas discussões realizadas em todo Brasil, verifica-se que a única solução para a superação do problema consiste na utilização das políticas públicas e privadas de ações afirmativas.
Conceito de gênero
Consoante a definição do Aurélio, gênero consiste na forma culturalmente elaborada que a diferença sexual toma em cada sociedade, e que se manifesta nos papéis e status atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade sexual dos indivíduos.
Trata-se do conjunto de atributos negativos ou positivos que se aplicam diferentemente a homens e mulheres, desde o nascimento, determinando funções, papéis e ocupações sociais.
Segundo Wânia Pasinato Izumino (2004), a adoção da categoria gênero implica no reconhecimento de que as diferenças sexuais, mas do que biologicamente determinadas, são socialmente definidas, sujeitas a variações culturais na determinação dos papéis de homens e mulheres.
A identidade do gênero é desenvolvida gradativamente durante a infância e a vida adulta.
A origem da discriminação decorrente do gênero
A origem da opressão das mulheres remonta a própria história da humanidade.
O mito da suposta superioridade masculina teve origem quando, nos grupos primitivos, os povos abandonaram sua rotina clássica de caça e pesca e os homens começaram a caçar animais, prestigiando a força física. À mulher foi relegada a função reprodutora, sendo considerada como objeto de propriedade do homem.
O machismo e a estrutura familiar existentes, bem como a mentalidade de que a mulher seria incapaz para a prática de alguns atos se caracterizaram como fatores determinantes para a manutenção da discriminação. Foram criados estereótipos sexuais e a mulher foi afastada do ambiente público, da esfera de poder. Preparou-se a mulher para a submissão e o homem para exercer a dominação.
Nas palavras de Leda de Oliveira Pinho (2005, p. 99):
A negação total ou parcial da liberdade para a mulher tem suas raízes na desigualdade de poder, seja ele econômico, político ou social. A desigualdade nas relações de poder, por sua vez, barra, obsta, impede o acesso da mulher à igualdade e matem privada da liberdade, porquanto se por um lado não faria sentido algum dizer que sem liberdade não há igualdade, por outro, é perfeitamente legítimo dizer que sem igualdade (como reciprocidade de poder) não há liberdade. (...) O papel da família é de fundamental importância para o desenvolvimento dessas relações de poder, uma vez que as desigualdades, entre mulheres e homens, nascem, crescem e se mantêm a partir do ambiente doméstico. É a partir do espaço privado, hoje e desde sempre, que têm sido elaboradas as estruturas de distribuição de poder e se tem preparado a mulher, em geral pelas mãos da própria mulher, para a submissão.
Segundo Margarida Luiza R. Brandão e Maria Clara L. Bingemer (1994), o próprio ideário de “igualdade, liberdade e fraternidade” já nasceu acanhado, limitado, não incorporando um grande contingente de mulheres, considerando-as como seres inferiores.
A esta noção foi agregada a busca do desenvolvimento, com a aparência de modernidade e a exclusão de imensas camadas da população (mulheres, negros, idosos) dos indicadores mínimos de sobrevivência.
A tentativa de reação feminina no Brasil
Por muito tempo excluída da esfera pública, destinada ao campo doméstico, a mulher sequer possuía uma consciência de sua condição. Apenas o homem detinha direitos políticos e função de provedor, sendo a mulher um indivíduo de mera “complementação” do lar. Ao homem se reservava o poder econômico racional e à mulher, somente o poder dos afetos.
Na década de 1970, iniciou-se uma tentativa de revisão do modelo social a partir de noções feministas. Questionaram-se comportamentos discriminatórios, baseados em gênero e se asseverou que os papéis destinados à mulher, tanto espaço público quanto no privado foram os responsáveis pela desigualdade social.
O movimento feminista buscou a igualdade de sexos e a redefinição do papel da mulher na sociedade. Ao mesmo tempo, emergiram iniciativas de combate e denúncia da violência doméstica.
Todavia, a mídia se responsabilizou pela criação do estereótipo feminista (mulher feia, mal amada, mal ajustada e masculinizada) e de um verdadeiro preconceito contra a expressão.
A desigualdade e a educação
É de saber notório que outrora poucas mulheres tinham acesso à vida acadêmica, haja vista que para realizar o trabalho doméstico não era necessário que a mulher detivesse grandes conhecimentos. Em verdade, quanto menor o seu grau de instrução, mais fácil seria manter a estrutura social excludente.
Segundo a doutrinadora Leda de Oliveira Pinho (2005), a questão da educação deve ser analisada sob dois ângulos diversos – o primeiro é aquele que diz respeito ao acesso da mulher à educação e o segundo, refere-se ao conteúdo da própria educação.
Hoje em dia, no que pertine ao primeiro aspecto, tal qual demonstram os dados da Organização das Nações Unidas divulgados pelo relatório Emprego, Desenvolvimento Humano e Trabalho Decente – A Experiência Brasileira Recente, a mulher tem tido maior acesso à educação. Pode se afirmar que tem lhe sido garantida a oportunidade de se formar e se informar, adquirindo conhecimentos e habilidades que a capacitem como profissional e pessoa. Verifica-se, inclusive, uma tendência de maior escolaridade entre as mulheres do que entre os homens (em 2006, 95,6% das mulheres em idade adequada cursavam o ensino fundamental e 52,3% estavam no ensino médio, em contraposição, respectivamente, a 94,7% e 42% dos homens).
Ocorre que, quanto ao segundo aspecto, ainda se verificam preconceitos, sendo imperiosa uma revisão dos conceitos transmitidos a homens e mulheres a respeito da imagem feminina. Até agora a escola ainda reproduz a dinâmica de poder patriarcal, com a indivisibilidade das mulheres nas narrativas históricas, nas ciências e na literatura. Explica-nos a autora supracitada (2005, p. 111):
(...) A educação está associada ao homem como sujeito e à mulher como objeto, e é em torno da subjetividade masculina que tudo gravita. A investigação da desigualdade entre meninas e meninos, entre mulheres e homens, no que diz respeito à educação, demonstra que “a escola reproduz a dinâmica de poder vivida entre os sujeitos na sociedade mais ampla” e que ela mesma se encarrega de produzir desigualdades em face do gênero. (...) É facilmente perceptível a linguagem sexista dos textos, a ideologia patricarcal e o androcentrismo do conhecimento, revelados pela “indivisibilidade das mulheres nas narrativas históricas oficiais, nas ciências e na literatura”.
Infelizmente, muito ainda há que ser feito, haja vista que além de superar a barreira da educação, é necessária uma reestruturação social, com a alteração da mentalidade histórica, no sentido de se assegurar que as mulheres educadas tenham acesso às posições de poder e aos mesmos salários percebidos pelos homens.
A desigualdade jurídica. A Constituição Federal de 1988
É certo que da desigualdade social decorria a desigualdade jurídica.
Durante um longo período, como ensina Leda de Oliveira Pinho (2005), a mulher foi desabilitada da participação do processo de formação social da norma e obrigada a aderir o modelo excludente que privilegiava os valores da sociedade patriarcal, numa ótica exclusivamente masculina.
Desde a Constituição brasileira de 1824, a mulher foi excluída dos direitos políticos. Tal Carta afirmava que todos os homens eram iguais, asseverando, consoante Norberto Bobbio (1997) que a igualdade não era estendida a todos.
O Código Civil de 1916, na mesma esteira, inicialmente considerou as mulheres como relativamente incapazes e até 2002, enquanto permaneceu em vigor, ainda subsistiu o odioso regime dotal.
Apesar dos esforços dos movimentos feministas, somente com a Constituição de 1988 é que se consolidou expressamente que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (Artigo 5º, caput). Esta garantia se espraiou para todo o ordenamento jurídico infraconstitucional, revogando algumas normas e alterando a interpretação de outras. Pondera Leda de Oliveira Pinho (2005) que a Magna Carta também avançou nos direitos sociais, preceituando ações afirmativas em seu artigo 7º, inciso XX, no sentido de garantir à mulher proteção do mercado de trabalho, mediante incentivos específicos.
Ademais, na década de 1990, o Brasil demonstrara uma mudança no pensamento jurídico, apresentando e defendendo propostas avançadas nas conferências internacionais realizadas pelas Nações Unidas, como a de Direitos Humanos em Viena (1993), a de População e Desenvolvimento no Cairo (1994) e a de Direitos da Mulher em Pequim (1995).
A Lei Fundamental Cidadã se caracterizou como um grande avanço na busca da efetiva igualdade. Ocorre que, em diversos segmentos, cristalizou-se apenas uma igualdade formal e não substancial.
Segundo Júrgen Habermas (HABBERMAS apud PINHO, 2005) tais direitos não se tornaram eficazes em razão de grande parte dos atingidos (as mulheres) não serem suficientemente informados e capazes de atualizar, em casos específicos, a sua proteção.
E avalia a socióloga Maria Betânia Ávila, coordenadora-geral do Instituto Feminista para a Democracia (SOS Corpo) (2008):
Apesar de a Constituição Federal definir que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, esse princípio ainda está muito longe de ser alcançado. (...) A gente tem uma igualdade formal, algumas coisas mudaram, mas as mulheres ainda são profundamente discriminadas.
A desigualdade e o mercado de trabalho
Inobstante à Magna Carta, no que se refere ao mercado de trabalho, ainda se constata uma grande desigualdade entre homens e mulheres.
O discurso legislativo revelou apenas eficácia ideológica e não prática - tanto é assim que os números das condições da participação feminina no mercado de trabalho indicam discrepância salarial entre homens e mulheres, o maior peso do mercado informal de trabalho para estas, a indivisibilidade do trabalho da mulher rural, a dificuldade de inserção de mulheres mais velhas e com filhos e a ausência de mecanismos de fiscalização dos abusos cometidos contra as mulheres nas relações de trabalho (tais como revista íntima, exigência de atestado de esterilização, etc).
Apesar de os dados da ONU e do IBGE demonstrarem que o nível de instrução das mulheres se encontra em patamar nitidamente mais elevado do que o dos homens, em decorrência da taxa mais alta de escolaridade feminina, esta realidade não é transposta para o mercado de trabalho.
As mulheres continuam com menor participação na população economicamente ativa (em 2006, enquanto 52,6% das mulheres estavam no mercado de trabalho, o patamar era de 72,8% para os homens), há o favorecimento de sua permanência em ocupações menos qualificadas e a discriminação focada em características individuais (idade, aparência, estado civil, maternidade).
A busca da igualdade substancial e da eficácia dos direitos garantidos. A importância das políticas públicas e privadas de ações afirmativas
Conforme já afirmado, o Brasil tem adotado uma posição legislativa avançada e garante textualmente a igualdade entre homens e mulheres. Todavia, segundo ressaltam Margarida Luiza R. Brandão e Maria Clara L. Bingemer (1994), o país carece da adoção de políticas públicas que efetivem as conquistas estampadas na Constituição Federal na prática cotidiana.
É necessária a eficácia da lei e, neste contexto, imprescindível a utilização de ações afirmativas.
As ações afirmativas devem usar da discriminação para combater a própria discriminação, tratando diferentemente duas situações, desde que subsistam razões aceitáveis para este tratamento diverso.
Consoante Leda de Oliveira Pinho (2005, p. 118), tal atuação estatal consistiria no único instrumento para o alcance da igualdade material, avaliando a discriminação no caso concreto e a vinculando à idéia de reparação:
Mediante a ação afirmativa é possível avançar da igualdade formal à igualdade material, uma vez que por essas políticas e põe em ação a igualdade de oportunidades, a condição de participar da competição pela vida, ou pela conquista do que é vitalmente mais significativo, a partir de posições iguais.
Será possível atingir a igualdade mediante o tratamento diferencial e positivamente privilegiado das mulheres (iniciado através de prospecção e planejamento, com levantamentos estatísticos necessários para a escolha entre a adoção do critério para a inclusão no rol de beneficiárias e políticas públicas compensatórias).
As normas constitucionais devem ser compreendidas como normas de comportamento, idôneas a incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando novos valores.
Imperiosa a existência de incentivos na busca por uma maior diversificação profissional, a igualdade no acesso ao emprego e postos de responsabilidade, a isonomia salarial em postos que exijam a mesma capacidade intelectual e a revalorização das profissões feminizadas.
Neste diapasão, todas as mulheres devem estar conscientes da importância das ações positivas, bem como os homens e a sociedade em geral devem ser informados dos aspectos compensatórios que envolvem tais políticas, ressaltando-se que, segundo o BIRD, os países que se preocupam com a igualdade de gênero alcançam maior índice de desenvolvimento econômico e maior possibilidade de crescimento sustentável.
Conclusão
Para superar o impasse secular de discriminação entre homens e mulheres, mister uma verdadeira iluminação das mentes atrasadas nos diversos cantos do país, com o próprio engajamento da mulher nos movimentos que diz respeito às suas questões, em todos os aspectos possíveis, principalmente em sua consideração como um ser humano e não como um ser inferior, um objeto sexual ou uma escrava.
O legislador, o juiz, a sociedade e o cidadão devem agir no sentido de desenvolvimento da igualdade em sua plenitude, utilizando-se das políticas públicas e privadas como ferramentas. Somente assim os relatórios internacionais serão passíveis de transmitir uma outra realidade (em especial no que tange às relações existentes no mercado de trabalho).
Bibliografia
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
BRANDÃO, Margarida Luiza R. et al. Mulher e relações de gênero – Seminários Especiais – Centro João XXIII. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
IZUMINO, Wânoa Pasinato. Justiça e Violência contra a mulher: O papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. São Paulo: Annablume, 2004.
LIMA, Luciana. ONU diz que oferta de emprego cresceu no país, mas discriminação de mulheres e negros persiste. Agência Brasil. Brasília, 2008. Disponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/09/08/ult5772u774.jhtm Acesso em 08 de setembro de 2008.
PINHO, Leda de Oliveira. Princípio da Igualdade: Investigação na perspectiva de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2005.
SALLES, Silvana. Tendência de maior escolaridade das mulheres não se reflete no mercado de trabalho. Uol Notícias. São Paulo, 2008. Acesso em 09 de setembro de 2008.
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ZENKER, Ana Luíza. Igualdade entre homens e mulheres está longe de ser alcançada. Repórter da Agência Brasil. Brasília, 2008. Disponível em http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/03/05/materia.2008-03-05.9484588181/view Acesso em 08 de setembro de 2008.
Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. A Mulher Brasileira, a igualdade e o mercado de trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2008, 18:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/26/a-mulher-brasileira-a-igualdade-e-o-mercado-de-trabalho. Acesso em: 24 nov 2024.
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