A convite dos professores João Batista Ericeira, o culto e erudito Diretor da ESA/OAB-MA, e de José Rossini Correa, mestre e preclaro filósofo do direito, no último dia 1º de março tive honra de proferir a aula magna inaugural de abertura do corrente ano letivo da Escola Superior de Advocacia, da Seccional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil.
O tema escolhido como pano de fundo foi os “30 anos da Constituição”, a serem “comemorados” no próximo dia 5 de outubro de 2018; a “desculpa” perfeita para a troca de ideias com um público extremamente qualificado e participativo, como o ludovicense que esteve presente naquela noite chuvosa e agradável, no coração jurídico da “Ilha do Amor”.
Entre caminhos e descaminhos, preferi chamar de “Des-aniversário” da Constituição, para invocar a figura de Lewis Carrol e de Alice no País das Maravilhas, exatamente para dizer que precisamos pensar todos os dias no contexto de existência normativa da Constituição.
Salientei a importância de (re) pensarmos nossa prática cotidiana de arbitrariedades, que poderiam ser exemplificadas pelo uso da discricionariedade nos mais diversos meios, nomeadamente nos meios em que os profissionais do Direito se fazem presentes, e que acabam permitindo o espaço de respiração da discricionariedade, mas apenas quando não reclamamos dela, ou seja, quando não nos prejudica.
Também fiz referência à necessidade e à importância do papel da crítica no Direito, exemplificando com os textos publicados pelo estimado professor Lenio Streck naquela mesma semana, primeiro no questionamento sobre o que “seria uma discricionariedade transparente”[i] (aqui), e depois sobre o esclarecimento sobre a “literalidade da Constituição”[ii] (aqui). Textos louváveis e irrespondíveis. Para parafrasear o professor Lenio: “Bingo. Binguíssimo”.
Em termos gerais, me comprometi a refletir juntamente com aquele público sobre temas áridos, e não foi surpresa alguma a recepção crítica das ideias, com muitas perguntas ao final, todas elas extremamente bem formuladas sobre os pontos centrais da reflexão.
Se a Constituição possui alguma normatividade, e se ela precisa ser inserida em nosso modelo de fontes, é preciso registrar que o Constitucionalismo, na américa latina, possui algumas convergências e divergências, em termos de seu desenvolvimento histórico.
As Constituições possuem um ciclo de “vida e morte”, podemos dizê-lo, seja com base na arrojada percepção crítica de Vamireh Chacon[iii], ou na perspectiva de Roberto Gargarella, o sociólogo e jurista argentino que cunhou a metáfora sobre a “sala de máquinas da Constituição”, para com isso dizer que temos nos preocupado menos com o aprimoramento dos mecanismos limitativos do poder, e com a participação dos cidadãos na efetiva tomada de decisões, e nos preocupado mais com a reforma e atribuição de novos direitos.
Por isso, não faz sentido falarmos em uma “nova” constituinte, pois seria mais uma vez o “novo” travestido de velho, como tive oportunidade de dizer em artigo que escrevi e referendado pelo professor Lenio Streck[iv], para asseverar que, baseando-me no pensamento do mesmo jusfilósofo, “é urgente entre nós a adoção de uma postura teórica de unicidade, constitucionalmente renovada, de 4 elementos, sem os quais jamais deixaremos de ser juridicamente atrapalhados: (1) teoria das fontes; (2) teoria da norma; (3) teoria da interpretação; e (4) teoria da decisão”.
“A questão” – disse eu naquela oportunidade – “é bastante simples, pois: se a fonte primacial for o precedente à brasileira (1), e a norma extraída do enunciado normativo (2) for “filtrada” por interpretação e decisão decorrentes de postura conivente com o realismo jurídico-iluminista discricionário (3 e 4), será muito pouco provável que o fruto decorrente desta raiz traga segurança jurídica minimamente tolerável.”
Assim, nem o precedente à brasileira seria a solução, e nem uma “nova” Assembleia Nacional Constituinte. Nada resolverá nossos problemas se não nos dermos conta de que muitas de nossas práticas cotidianas precisam mudar, e que nós não devemos ser como aquelas personagens do famoso conto de Stevenson, que por serem estudantes de medicina, compravam cadáveres para auxiliar no estudo, mas só passaram a achar a prática chocante quando certa vez um dos cadáveres aparentava estar “mais fresco do que de costume”...
No artigo de Gargarella sobre a Sala de Máquinas da Constituição[v] (aqui), o qual tive a honra de traduzir juntamente com Jefferson Carús Guedes, vislumbramos a representação da síntese de sua obra mais ampla, que materializa a pesquisa sobre 200 anos de constitucionalismo latino-americano (1810-2010)[vi], e que devem guiar a salva de palmas e o grito de “parabéns” por ocasião da efeméride de 5 de outubro, juntamente com as críticas do professor Lenio Streck.
Portanto, neste grave momento pelo qual passamos, devemos nos preocupar com o acesso à “sala de máquinas” da Constituição, com a utilização da discricionariedade, com a diferença entre texto e norma, com as 4 posturas de unicidade, e com sua normatividade. Este será o maior e melhor presente para as comemorações de seu aniversário.
Notas:
[i] STRECK, Lenio. E o que seria a discricionariedade transparente do ministro Roberto Barroso? Conjur, de 26 de fevereiro de 2018.
[ii] STRECK, Lenio. Imperdível: professor e juiz explicam a literalidade da Constituição Conjur, de 1º de março de 2018.
[iii] CHACON, Vamireh. Vida e Morte das Constituições Brasileiras. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
[iv] PÁDUA, Thiago, “Novo” Velho Estado (jurídico) Novo: Réplica ao Professor Luís Roberto Barroso (ou sobre os juristas que roubavam cadáveres). (aqui).
[v] GARGARELLA, Roberto. Constitucionalismo Latino-Americano: Direitos Sociais e a “Sala de Máquinas” da Constituição. Trad. Thiago Pádua e Jefferson Guedes. UniversitasJUS, v 17, n. 2, 2016.
[vi] GARGARELLA, Roberto. Latin american constitutionalism (1810-2010): the engine room of the Constitution. Oxford: OUP, 2013.
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