Não é nada raro no dia-a-dia dos Juizados de Violência Doméstica no País a mulher vítima de violência doméstica e seus filhos menores terem domicílio no exterior ou, ainda, como forma de promover a subsistência familiar essa mulher deva se mudar para o exterior, geralmente Europa ou América do Norte, aonde já possui proposta de emprego em condições de dignidade.
Sabedora dessa situação a Lei Maria da Penha em seu Art. 14 esclarece que não tutela a mulher vítima de violência doméstica apenas pelo prisma penal: “Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Destarte, todas as demandas da mulher decorrentes da prática de violência doméstica e familiar devem ser solucionadas pelos Juizados de Violência Doméstica, sem qualquer exceção.
Nem se alegue que essa competência cível seria apenas para o caso das medidas protetivas de urgência. O Art. 14 da Lei Maria da Penha não cria essa limitação. Mesmo porque as necessidades da mulher vítima de violência doméstica vão muito, muito, além do veredicto condenatório na esfera penal. Ainda mais quando se soma ao pesadelo familiar vivenciado pela vítima a situação dos filhos menores.
Daí que nas causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, competirá aos Juizados de Violência Doméstica o processamento e julgamento dos pedidos de suprimento de consentimento paterno de viagem ao exterior.
Restará aos Juizados da Infância e da Juventude a apreciação dos pedidos de suprimento de consentimento de viagem ao exterior nos casos em que ausente o elemento violência doméstica e familiar contra a mulher.
Essa amplitude conferida pelo Art. 14 da Lei Maria da Penha tem um propósito por excelência: aqui no Brasil, total e financeiramente dependente de seu agressor, não restaria outra alternativa para a mulher senão a integral subserviência e cooperação processual ao seu carrasco, eternizando-se o seu martírio e dos filhos menores.
É justamente nessa parcela da competência cível pensada pelo legislador, no Art. 14 da Lei Maria da Penha, que reside precisamente a alforria da mulher de seu cativeiro familiar. Os experientes sabem muito bem, é o Direito Civil que liberta. A condenação ao regime aberto prometido pelo Direito Penal ao agressor doméstico no Brasil é mais um estímulo do que uma punição, um prêmio à misoginia e à intolerância.
Cabe também registrar que nenhuma criança ou adolescente deve ser expectador da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, contra a própria mãe. A competência cível da Lei Maria da Penha também socorre com muita habilidade crianças e adolescentes vedando sua exposição a situação de crueldade, constrangimento e opressão.
A falta de recursos orçamentários que possibilitem uma melhor estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher não possui o condão de derrogar o disposto no Art. 14 da Lei Maria da Penha no que diz respeito à parcela de competência cível desses órgãos da Justiça.
Quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.550.166, o Superior Tribunal de Justiça deu a palavra final a respeito da exata interpretação do Art. 14 da Lei Maria da Penha, nos casos de suprimento de consentimento paterno de viagem ao exterior:
“RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE SUPRIMENTO JUDICIAL DE AUTORIZAÇÃO PATERNA PARA QUE A MÃE POSSA RETORNAR AO SEU PAÍS DE ORIGEM (BOLÍVIA) COM O SEU FILHO, REALIZADO NO BOJO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA). 1. COMPETÊNCIA HÍBRIDA E CUMULATIVA (CRIMINAL E CIVIL) DO JUIZADO ESPECIALIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. AÇÃO CIVIL ADVINDA DO CONSTRANGIMENTO FÍSICO E MORAL SUPORTADO PELA MULHER NO ÂMBITO FAMILIAR E DOMÉSTICO. 2. DISCUSSÃO QUANTO AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. CAUSA DE PEDIR FUNDADA, NO CASO, DIRETAMENTE, NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SOFRIDA PELA GENITORA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIALIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 3.
RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. O art. 14 da Lei n. 11.340/2006 preconiza a competência cumulativa (criminal e civil) da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar. 1.1 A amplitude da competência conferida pela Lei n. 11.340/2006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, permitindo-lhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato. Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher, vítima de violência familiar e doméstica, ao Poder Judiciário, e confere-lhe real proteção.
1.2. Para o estabelecimento da competência da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher nas ações de natureza civil (notadamente, as relacionadas ao Direito de Família), imprescindível que a correlata ação decorra (tenha por fundamento) da prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher, não se limitando, assim, apenas às medidas protetivas de urgência previstas nos arts. 22, incisos II, IV e V; 23, incisos III e IV; e 24, que assumem natureza civil. Tem-se, por relevante, ainda, para tal escopo, que, no momento do ajuizamento da ação de natureza cível, seja atual a situação de violência doméstica e familiar a que a demandante se encontre submetida, a ensejar, potencialmente, a adoção das medidas protetivas expressamente previstas na Lei n. 11.340/2006, sob pena de banalizar a competência das Varas Especializadas.
2. Em atenção à funcionalidade do sistema jurisdicional, a lei tem por propósito centralizar no Juízo Especializado de Violência Doméstica Contra a Mulher todas as ações criminais e civis que tenham por fundamento a violência doméstica contra a mulher, a fim de lhe conferir as melhores condições cognitivas para deliberar sobre todas as situações jurídicas daí decorrentes, inclusive, eventualmente, a dos filhos menores do casal, com esteio, nesse caso, nos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e demais regras protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.1 É direito da criança e do adolescente desenvolver-se em um ambiente familiar saudável e de respeito mútuo de todos os seus integrantes. A não observância desse direito, em tese, a coloca em risco, se não físico, psicológico, apto a comprometer, sensivelmente, seu desenvolvimento. Eventual exposição da criança à situação de violência doméstica perpetrada pelo pai contra a mãe é circunstância de suma importância que deve, necessariamente, ser levada em consideração para nortear as decisões que digam respeito aos interesses desse infante. No contexto de violência doméstica contra a mulher, é o juízo da correlata Vara Especializada que detém, inarredavelmente, os melhores subsídios cognitivos para preservar e garantir os prevalentes interesses da criança, em meio à relação conflituosa de seus pais.
3. Na espécie, a pretensão da genitora de retornar ao seu país de origem, com o filho - que pressupõe suprimento judicial da autorização paterna e a concessão de guarda unilateral à genitora, segundo o Juízo a quo - deu-se em plena vigência de medida protetiva de urgência destinada a neutralizar a situação de violência a que a demandante encontrava-se submetida.
4. Recurso Especial provido.
(REsp 1550166/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/11/2017, DJe 18/12/2017)”
Importante consignar que o Juiz de Direito dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, na apreciação dos pedidos liminares de suprimento de consentimento de viagem ao exterior poderá, conforme (e quando for) o caso, fixar o regime de visitação paterna, a ocorrer na época de férias escolares ou de verão do hemisfério onde residir a criança, advertindo a genitora da possibilidade de repatriação do menor com aplicação da Convenção de Haia nos casos de descumprimento da decisão judicial.
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