Pelo Decreto nº. 9288/2018, publicado no Diário Oficial da União, na edição extra do dia 16 de fevereiro, o Presidente da República decidiu pela intervenção federal no Rio de Janeiro. Foi a primeira vez, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que se aplicou o seu art. 34.[1] Nos termos do decreto presidencial, a intervenção federal estender-se-á até o dia 31 de dezembro de 2018, limitando-se à área de segurança pública e com o objetivo de “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro.” Nomeou-se para o cargo de Interventor o General de Exército Walter Souza Braga Netto, comandante do Comando Militar do Leste, que tem seu quartel-general localizado na cidade do Rio de Janeiro, cargo de natureza militar, como assinala o decreto.
O General Interventor terá “as atribuições previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro necessárias às ações de segurança pública, previstas no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.”[2] Segundo o decreto, “o Interventor fica subordinado ao Presidente da República e não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”, podendo “requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção”, além de “a quaisquer órgãos, civis e militares, da administração pública federal, os meios necessários para consecução do objetivo da intervenção.” Também, “exercerá o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro.”
No período da intervenção, poderão ser requisitados “os bens, serviços e servidores afetos às áreas da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro, para emprego nas ações de segurança pública determinadas pelo Interventor.”
Pois bem.
Passados agora mais de seis meses desde a intervenção, os resultados esperados não vieram e as questões da violência urbana e da segurança pública no Rio de Janeiro estão muito longe de serem resolvidas ou mesmo melhoradas, inclusive porque deita raízes em décadas de uma brutal desigualdade social, especialmente entre o povo do morro e o das comunidades – alijados desde e para sempre - e a elite moradora da casa-grande.[3]
Dias depois da intervenção, foi criado no Rio de Janeiro o Observatório da Intervenção, com o “objetivo de monitorar o impacto da intervenção, difundir informações sobre suas ações, propostas e resultados e incentivar o debate sobre segurança pública.” É coordenado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes que, por sua vez, tem como uma de suas coordenadoras a Professora Julita Lemgruber.
Após este primeiro semestre da medida extrema, o Observatório da Intervenção publicou um documento denominado VOZES SOBRE A INTERVENÇÃO[4] que pretendeu “fazer um balanço dos seis meses de intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro”, reunindo, “além de números e fatos, textos e depoimentos de 46 pesquisadores, empresários, jornalistas, artistas, gestores públicos, ativistas, religiosos, policiais e militares.” Trata-se, sem dúvidas, de um documento histórico “que captura as contradições deste momento no Rio de Janeiro”, a partir da análise “de dados gerados por diferentes fontes, produzindo avaliações fundamentadas” e também desde “as opiniões e relatos de moradores da metrópole.”[5]
Neste documento, de forma plural, há “textos representativos dos que acreditam que a intervenção trará resultados positivos”, além de “um conjunto de depoimentos de militares e policiais, atores centrais da intervenção que até agora não haviam se manifestado abertamente. Na maioria, eles expressaram frustrações e dúvidas sobre o projeto.” Também foi escutada uma parcela importante da comunidade do Rio de Janeiro formada por ativistas e lideranças que compõem o Conselho do Observatório da Intervenção, cujos “relatos trazem a perspectiva de quem vive nos territórios onde os conflitos armados e violações de direitos são rotina. Vida, morte, possibilidades, esperanças e raiva marcam os textos dos conselheiros.”
No texto de apresentação da pesquisa, Silvia Ramos, uma das coordenadoras do Observatório da Intervenção, afirma que, passados seis meses, “olhando os números, vemos um quadro desalentador”, pois “os índices mais sensíveis permanecem altos, como mortes violentas, tiroteios e chacinas”, além de ter havido “um crescimento preocupante de ocorrências que denotam descontrole no sistema de segurança pública, como mortes decorrentes de intervenção militar ou policial. A vitimização dos próprios agentes de segurança continua alta.”
Os custos da intervenção também são postos em destaque, sendo “difícil entender os caminhos dos recursos prometidos pelo Governo Federal, e se esse montante será usado, ou não, durante a intervenção.” Nada obstante os milhões e milhões de reais gastos com as operações militares – que o próprio Exército chama de “faraônicas” e que custam mais de um milhão de reais cada -, os resultados são pífios, pois “arrecadaram poucas armas e tiveram efeito reduzido na desarticulação de quadrilhas até agora.”[6]
O Gabinete da Intervenção “não deu respostas sobre as mais de 600 mortes decorrentes de ações policiais ocorridas sob sua gestão. E qual a taxa de elucidação dos mais de dois mil homicídios ocorridos no estado durante o mesmo período? Ninguém sabe.” A impressão a que chega o Observatório da Intervenção é “que a intervenção federal está testando um modelo de segurança pública baseado em uma concepção militar, que pensa desafios de violência e criminalidade como problemas de guerra, a ser enfrentados por generais e batalhas, e não a partir de mudanças na gestão, fortalecimento da integração, inteligência e foco na redução dos crimes contra a vida.”
Desde este ponto de vista – militarizado e bélico -, ainda que sigam “ganhando batalhas e mobilizando milhares de agentes em operações”, os militares da intervenção não entendem que estão “perdendo a guerra” e, com eles, “toda a sociedade do Rio de Janeiro. Estamos perdendo vidas preciosas. Estamos perdendo a disputa moral contra o crime. E estamos perdendo o ânimo com a violência.”
Ao final, conclui-se, dentre outras coisas, que a intervenção federal foi motivada por “interesses políticos do Planalto” e que “os recursos federais destinados à intervenção ainda não foram empregados.” Por outro lado, não tendo sido criado “um modelo coordenado de governança”, os “homicídios e chacinas continuam extremamente altos; mortes decorrentes de intervenção policial e tiroteios aumentaram. As disputas entre quadrilhas, incluindo milicianos, fugiram ao controle em diversas áreas.”
Ademais, “o crescimento do número de operações espetaculares, que empregam milhares de agentes para apreender poucas armas e raramente desarticular quadrilhas, é a grande marca da segurança no Rio nos últimos meses” e que “cargas não podem ser mais importantes do que vidas”, razão pela qual “em qualquer plano de segurança pública, os crimes contra a vida precisam ser a primeira e indiscutível prioridade.”
Ao final e ao cabo, entendem os coordenadores do ótimo VOZES SOBRE A INTERVENÇÃO que “os riscos de desgaste da imagem das Forças Armadas ao final da experiência da intervenção é real.”
Também acredito nisso, tanto quanto desacredito na eficácia de combater a violência com violência e, ainda mais, com forças militares federais. Tampouco creio que, seja por sua destinação constitucional, seja pela natureza de sua formação, as Forças Armadas darão cabo de questões tão sensíveis, especialmente nos países periféricos, como é a violência urbana e a segurança pública. Uma pena que os militares das Forças Armadas estejam sendo usados politicamente como instrumentos – especialmente os soldados, óbvio! - pelo Governo Federal, como se vê nas conhecidas e reiteradas “Garantia da Lei e da Ordem”, e agora na intervenção federal no Rio de Janeiro.[7]
[1] “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta; e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.”
[2] “Art. 145 - Compete privativamente ao Governador do Estado: I - nomear e exonerar os Secretários de Estado; II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual; III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição; IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; V - vetar projetos de lei, total ou parcialmente; VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual, na forma da lei; VII - decretar e executar a intervenção nos Municípios, nomeando o Interventor, nos casos previstos nesta Constituição; VIII - remeter mensagens e plano de governo à Assembleia Legislativa por ocasião da abertura da Sessão Legislativa, expondo a situação do Estado e solicitando as providências que julgar necessárias; IX - nomear o Procurador-Geral da Justiça, dentre os indicados em lista tríplice composta, na forma da lei, por integrantes da carreira do Ministério Público; X - nomear os Conselheiros do Tribunal de Contas do Estado; XI - nomear magistrado, no caso previsto no parágrafo único do artigo 157 desta Constituição, bem como o Procurador-Geral do Estado e o Procurador-Geral da Defensoria Pública, estes observados os artigos 176, § 1º e 180, parágrafo único, respectivamente; XII - enviar à Assembleia Legislativa o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes orçamentárias e as propostas de orçamento previstas nesta Constituição; XIII - prestar, anualmente, à Assembleia Legislativa, dentro de sessenta dias após a abertura da Sessão Legislativa, as contas referentes ao exercício anterior; XIV - prover e extinguir os cargos públicos estaduais, na forma da lei; XV - exercer outras atribuições previstas nesta Constituição. Parágrafo único - O Governador do Estado poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI e XIV, primeira parte, aos Secretários de Estado, ao Procurador-Geral da Justiça ou ao Procurador-Geral do Estado, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações.” Pelo decreto, “as atribuições previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do Governador do Estado do Rio de Janeiro.”
[3] Sempre importante lembrar Gilberto Freyre: “considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo.” (Casa-Grande e Senzala, São Paulo: Global Editora, 2006, 51ª. edição, 9ª. Reimpressão, p. 116). Grifei.
[4] RAMOS, Silvia (coord.). Vozes sobre a intervenção. Rio de Janeiro: CESeC, agosto de 2018.
[5] O texto completo do documento encontra-se disponível em: https://drive.google.com/file/d/1L6_9vhLymIFY-PMExwQZxw0qf3LT9VNg/view
[6] Segundo consta do documento, o Governo Federal abriu um crédito extraordinário de R$ 1,2 bilhão para a intervenção federal.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. ... E militares para quem precisa de militares! Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 set 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2841/e-militares-para-quem-precisa-de-militares. Acesso em: 22 nov 2024.
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