Neste breve texto procurar-se-á analisar sobre os limites da impenhorabilidade do bem de família[1], uma proteção que decorre dos direitos fundamentais, de índole constitucional, de propriedade e de moradia. Buscar-se-á definir as balizas da proteção conferida ao devedor e quando será possível ocorrer a penhora do único imóvel familiar, mais especificamente nos grandes e suntuosos imóveis urbanos.
Isso porque nem a lei nem a jurisprudência definem a contento em que situações um imóvel de grande valor pode ser, por exemplo, fracionado ou levado a leilão para saldar dívidas dos credores. Prepondera, atualmente, a regra da impenhorabilidade absoluta do bem de família[2], salvo em casos específicos, como no caso de fiador em contrato de locação residencial[3].
Assim cabe indagar: até que ponto proprietário de mansão pode ter protegido o seu patrimônio em detrimento de dívidas inadimplidas, algumas, até mesmo, de natureza alimentar, como débitos trabalhistas, que também merecem proteção?
É indubitável que se faz necessário garantir um patrimônio mínimo ao devedor e, também, manter a sua dignidade como ser humano, que não pode ser despido, totalmente, de suas posses, principalmente quando está em situação financeira delicada, com várias dívidas vencidas.
No entanto, não parece adequado que tal devedor tenha uma proteção exacerbada de imóvel de grande valor enquanto há dívidas que podem ser saldadas, ainda que parcialmente, caso o imóvel venha a ser fracionado ou levado a leilão com parte do produto da venda destinado para outro imóvel de menor valor.
O imóvel urbano de grande valor, denominado de mansão e enquadrável como bem de família, é protegido pela Constituição Federal e pela Lei nº 8.009/90 da mesma que um casebre diminuto e de pouca relevância financeira. Esta ausência de limites para qualquer bem de família parece, deveras, exagerada. Isso porque não há um disciplinamento específico, nem legal ou jurisprudencial, versando sobre bens imóveis de grande valor.
Já houve uma tentativa de disciplinar imóveis de grande valor, mas o projeto de lei, na parte em que versava sobre a possibilidade de penhora de imóveis suntuosos, foi vetado ao argumento de quebraria “o dogma da impenhorabilidade absoluta do bem de família”. De igual forma, às vezes que o Poder Judiciário se debruçou sobre o tema prevaleceu a impenhorabilidade absoluta do bem de família. É necessário, portanto, propor alternativas e soluções.
Em verdade, a lei não faz ressalva na impenhorabilidade do imóvel onde reside a família e a jurisprudência, quando foi instada a se manifestar sobre o tema, foi comedida, como dito, preferindo proteger o devedor inadimplente, mesmo quando possuidor de imóvel familiar suntuoso.
A Lei nº 8009/90, em seu art. 2º, garante também a impenhorabilidade dos móveis que guarnecem a casa, mas excepciona as obras de arte e adorno suntuosos. De igual modo, o art. 833, inciso II, do Código de Processo Civil, garante os móveis que guarnecem a residência do executado, mas afasta a proteção dos móveis de elevado valor que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.
Não obstante, a Lei não excepciona a proteção da impenhorabilidade de imóveis de elevado valor, notadamente aqueles que extrapolam o padrão de vida do brasileiro mediano.
A própria origem do instituto de bem de família decorre de uma exceção criada no direito norte-americano, conhecido como “Homestead Exemption Act”, de 1839, que dava proteção para a pequena propriedade. Vê-se que, em seu nascedouro, buscava-se proteger a pequena propriedade e não grandes imóveis.
É nessa senda que se questiona: será possível levantar a proteção de um direito fundamental de moradia? Até que ponto eventual atingimento de um bem de família pode significar a violação do direto fundamental de moradia e da dignidade da pessoa humana?
Diante do ordenamento jurídico pátrio é indubitável que existe um patrimônio mínimo intocável, um núcleo essencial, que deve ser protegido mesmo em caso de atingimento de um bem de família, mas o excesso de proteção, sem ressalvas, acaba por privilegiar em demasia o devedor em detrimento do credor que também deve ter seu direito protegido frente a abusos, em especial diante daqueles que possuem patrimônio elevando, ainda que considerado imóvel de bem de família.
Nessa linha, da mesma forma que é certo que um devedor não pode pagar suas dívidas em detrimento de sua dignidade e sua integridade física, como na obra de Shakespeare, o mercador de Veneza, em que o cobrador exigia uma libra de carne do devedor inadimplente, certo também é que o crédito deve ser satisfeito na medida do possível, contanto que seja protegido o núcleo patrimonial mínimo do devedor.
Ainda mais quando o devedor possui, por exemplo, um único imóvel que vale milhões. Neste caso, ainda que seja o único imóvel, o seu fracionamento ou até mesmo a sua venda para saldar as dívidas é medida salutar que vai ao encontro de um direito contratual saudável, amparado na boa-fé.
Claro que o devedor não poderá ser deixado desprotegido, ao relento, sem uma moradia, mas esta pode ser de valor inferior, dentro de padrões medianos de mercado, da mesma forma que ocorre com os móveis que guarnecem a casa.
Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco[4] explicam que o direito à moradia integra o rol de direitos sociais:
O direito à moradia passou a integrar o rol dos direitos sociais do art. 6º em 14 de fevereiro de 2000, por meio da Emenda Constitucional n. 26. Sua introdução ao texto constitucional reflete entendimento já externado pelo Estado brasileiro no plano internacional.
A essencialidade do direito à moradia é proclamada, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (art. 25) e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 11).
Continuam os mencionados doutrinadores[5] discorrendo que “como direito fundamental, o direito à moradia possui tanto natureza negativa quanto positiva. Em relação à natureza negativa, ou seja, direito de defesa, o direito à moradia impede o indivíduo de ser arbitrariamente privado de possuir uma moradia digna. Merece destaque, nesse aspecto, a proibição de penhora do chamado bem de família (Lei n. 8 .009/90)”.
É certo que o instituto do bem de família visa resguardar o devedor de ter constrito a integralidade de seu patrimônio, mas o ordenamento jurídico também visa resguardar o credor. Portanto, a solução para este impasse seria a utilização do instituto do patrimônio mínimo do devedor. Ele teria a proteção de um patrimônio mínimo, que garanta a sua dignidade, mas não a integralidade do seu patrimônio, de alto valor. Assim, haveria uma harmonização entre a proteção do devedor e a satisfação do credor.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald[6] explicam que a Constituição Federal propõe uma releitura dos institutos clássicos fundamentais do estatuto patrimonial, funcionalizando-os para a promoção da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.
Apontam que a garantia de um patrimônio mínimo se relaciona à própria dignidade da pessoa humana, constituindo como um aspecto essencial para o reconhecimento da dignidade. E o aspecto mais contundente desta busca de proteção ao patrimônio mínimo é o bem de família. Tal garantia, ponderam os autores, podem sofrer variação a depender das circunstâncias pessoais de cada titular.
A de se ressaltar também que a nebulosidade da Lei e da Jurisprudência, no que tange aos limites de proteção do bem de família, gera uma insegurança entre credores e devedores, ambos aflitos em buscar no ordenamento um porto seguro para os seus conflitos.
Diante do imbróglio entre devedor e credor, é necessário, sempre, razoabilidade e bom senso, como tudo na vida, em especial no Direito. A justa medida é, como diria Aristóteles na ética a Nicômaco, o meio termo entre o excesso e a carência[7].
Se há excesso de patrimônio do devedor inadimplente e carência de pagamento para o credor, deve-se buscar um meio termo para que, ambas as partes, saiam, ainda que parcialmente, com suas necessidades atendidas.
Do exposto, conclui-se que pode e deve ser relativizado o bem de família, ainda que sem expressa autorização legal, na hipótese de bem imóvel de grande valor, mesmo que bem de família, sem descurar de, no caso concreto, buscar equilíbrio entre a garantia do devedor de ter sua moradia e dignidade resguardada e o direito do credor de receber o que lhe é devido.
Referências
BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Notas sobre a jusfundamentalidade: ou apontamentos sobre o problema de todo direito ser considerado fundamental. Revista RIL Brasília, n. 208, out./dez. 2015, p. 81-100.
CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Disponível em:<http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portaltvjustica/portaltvjusticanoticia/anexo/joao_tri
ndadade__teoria_geral_dos_direitos_fundamentais.pdf>. Acesso em: 15/01/2018.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. Salvador: JusPodivm, 2010.
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em: 15/01/2019.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
FIUZA, César. Direito Civil. 8ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Notas sobre o direito constitucional norte-americano. Disponível em: <http://www.arnaldogodoy.adv.br/publica/notas_sobre_o_direito_constitucional_norte_americano.html>. Acesso em: 15/01/2019.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1998.
PEREIRA, Luciano Meneguetti. As dimensões de direitos fundamentais e a necessidade de sua permanente reconstrução enquanto patrimônio de todas as gerações. Disponível em: < http://www.aems.com.br/conexao/edicaoatual/Sumario-2/downloads/2013/3/1%20(35).pdf>. Acesso em: 15/01/2019.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, 4.ª edição, Atlas, 2004.
[1] Art. 1º da Lei 8.009/90: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”.
[2] STF. RE 605709. 1ª Turma. Redatora para o Acórdão Ministra Rosa Weber. Julgamento em: 12/06/2018.
[3] Súmula 549 do STJ: “É válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”. (Súmula 549, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/10/2015, DJe 19/10/2015)
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Pág. 657.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Pág. 658.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Pág. 454-455.
[7] ARISTÓTELES. Tradução de L. Vallandro e G. Bornhein da versão inglesa de W. D. Ross. São Paulo, Abril, 1987. (Coleção Os Pensadores).
Advogado. Mestre em Direito pelo UniCEUB - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Alexandre Santos. A necessidade de relativização do bem de família de alto valor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2019, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2894/a-necessidade-de-relativizacao-do-bem-de-familia-de-alto-valor. Acesso em: 25 nov 2024.
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