Étienne de La Boétie foi um humanista e filósofo francês do século XVI que viveu apenas trinta e dois anos, entre os anos 1530 e 1563. Era amigo de Montaigne, a quem coube divulgar, post mortem, a sua obra, especialmente um opúsculo que La Boétie deu o nome de “Sobre a Servidão Voluntária”, publicado dezoito anos após a sua morte, e que está contido originariamente no Capítulo XXVIII do Livro I dos “Ensaios”, de Montaigne.
Ele escreveu este pequeno e valioso discurso muito jovem (possivelmente entre os dezesseis e dezoito anos), quando a Europa, e a França mais especialmente, carecia de liberdade política e religiosa. Sobre este fato, Montaigne escreveu em “Ensaios”:
“Se, na idade mais madura em que o conheci, tivesse empreendido um projeto como o meu, de colocar no papel suas divagações, veríamos muitas coisas preciosas e que nos aproximariam da glória da antiguidade, pois particularmente neste âmbito tinha um dom natural, e desconheço quem lhe seja comparável. Mas nada restou dele senão esse discurso – e por efeito do acaso, pois creio que nunca o reviu depois que lhe escapou – e algumas memórias sobre esse édito de janeiro, célebre por nossas guerras civis, que ainda hão de encontrar alhures seu lugar. Escutemos um pouco sobre esse rapaz de dezesseis anos.” (Grifei, posto muito significativo hoje).
Esta obra é, sobretudo, uma ode à liberdade e um alerta contra a servidão humana e a tirania do poder. Nada obstante ter sido escrito quando o foi, há lições neste discurso que servem muito bem para os dias de hoje. Esta pequena obra foi escrita, como afirmou Paul Bonnefon - editor francês do final do século XIX, especializado em Montaige, Rosseau e La Boétie – por um jovem, entusiasmado e convicto “defensor da liberdade e da igualdade religiosa, impulsionado por sua natureza corajosa, levado por seu coração fervoroso e flexível.” (Introdução à obra de Etienne de La Boétie).
Se não há tiranos como os havia quando La Boétie escreveu este ensaio – há quase meio século! -, tampouco a servidão de que ele falava, o certo é que a nossa contemporaneidade e o modo em que vivemos hoje, mostra-nos novos tipos de servidão e de tiranos. O que dizer, por exemplo, da servidão ao consumismo, ao dinheiro, ao mercado, ao poder, aos cargos públicos, à carreira; o que dizer também da servidão à competitividade entre nós, ao amor ao supérfluo e ao líquido (Bauman).
Ademais, a noção que o livro dá sobre a liberdade humana, e a sua dimensão para a existência, é de uma atualidade impressionante. Seríamos ainda hoje mesmo livres? E, se não, por que alguém seria capaz de recusar gozar deste valor tão especial para a existência humana, submetendo-se voluntariamente, ainda que se sabendo ser “a servidão amarga e a liberdade doce.”
Etienne – um “humanista passional e generoso”, como escreveu Montaigne - leva-nos a refletir, a partir dos dias atuais, qual a razão que leva alguém a se submeter a outrem, a abrir mão de sua liberdade, este “bem tão importante e desejável que, uma vez perdido, acarreta todos os males de uma só vez, e os bens que sobrevivem a ela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.”
Leva-nos a pensar se, efetivamente, a servidão é mesmo uma imposição ou se, ao contrário, submetemo-nos a ela voluntariamente, em razão de um certo conformismo com a submissão, algo que chega mesmo a ser desejado (ou escolhido voluntariamente) por quem se submete. Eis um enigma, pois “a natureza do homem é ser livre e desejar sê-lo.”
E, se assim o é, podemos então nos livrar da servidão se tentarmos, não sendo “preciso nem mesmo agir, basta querer fazê-lo”:
“SEDE RESOLUTOS EM NÃO SERVIR MAIS,
E ESTAREI LIVRES”
Como é possível, escreveu ele, “que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações tolerem, por vezes, um tirano sozinho, cujo único poder é aquele que lhe conferem. Coisa espantosa, certamente, mas tão comum que cumpre mais lamentar que abismar-se ao ver centenas de milhões de homens servindo miseravelmente, com o pescoço sob jugo, obrigados não por uma força maior, mas simplesmente (ao que parece) encantados e seduzidos pelo nome de um homem só, cujo poder não precisam temer, pois é um só, e cujas qualidades não podem amar, pois é desumano e selvagem para com eles.”
Ele cuida bem da questão do poder e de como quem o exerce sabe cooptar alguns para também oprimirem o povo. Seriam, digamos..., uns vassalos do poder máximo e reproduziriam a opressão vinda desde o topo da pirâmide.
O poder não precisa, necessariamente, ser derrubado de seu posto, apenas não devemos mais tolerá-lo, diz La Boétie, pois veremos, “como um grande colosso do qual se retirou a base, ruir sob o próprio peso.”
A sua lição fundamental é que devemos ser determinados e intransigentes em não nos submeter a quem quer que seja, não aceitando amarras ou mordaças, ainda que impostas pelo poder. Se o fazemos, seremos livres. Se não, seremos servos, voluntariamente, pois “somos naturalmente livres, somos todos companheiros e ninguém pode julgar que, tendo nos criado todos iguais, a natureza tenha prescrito a alguém a servidão.”
Portanto, “são os próprios povos que se deixam ou, ainda, se fazem maltratar, pois ao pararem de servir estariam livres; é o povo que se subjuga, que corta a própria garganta, que, podendo escolher entre servir ou ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente com seu infortúnio e até mesmo o busca.”
E, evidentemente, não se trata de uma utopia, mesmo porque só se aprisiona verdadeiramente aquele que se quer ser aprisionado, abrindo mão de sua liberdade. Nascemos não apenas com a posse de nossa liberdade, “mas também com o desejo de defendê-la.”
La Boétie afirma não ser preciso combater ou derrotar a tirania – pois ela “derrota a si mesma.” O que importa, na verdade, é “que o país não consinta com sua servidão; não é preciso tirar-lhe algo, e sim dar-lhe nada; o país não precisa esforçar-se em fazer algo por si mesmo, contanto que não faça nada contra si mesmo.”
A tirania e, portanto, o tirano é como o fogo ou uma árvore, na comparação do filósofo:
“Sabe-se que o fogo de uma pequena faísca cresce e se intensifica sempre, pois, quanto mais lenha encontra, mais lenha se apresta a queimar; contudo, ao se retirar a lenha, sem jogar água para apagá-lo, ele não tem mais o que consumir e consome a si mesmo, perdendo a força e deixando de ser fogo.” Já uma árvore, da mesma forma, quando a sua raiz “está desprovida de humor ou alimento, faz o galho secar e morrer.”
Dá-se o mesmo com os tiranos: “quanto mais saqueiam, mais exigem, mais arruínam e destroem, e, quanto mais se lhes concede e lhes serve, mais se fortalecem, prontificando-se com mais vigor a aniquilar e destruir tudo; e se são desafiados, se são desobedecidos, sem qualquer combate ou luta, tornam-se desnudos, derrotados, reduzidos a nada.”
Quanto a eles, a sua estupidez “sempre o impede de praticar ações benevolentes, mas, de alguma forma, o pouco que têm de inteligência acaba se revelando em sua crueldade, principalmente aquela praticada contra os mais próximos.”
O tirano “não ama, nunca amou. A amizade é um nome sagrado, uma coisa santa; só se dá entre pessoas de bem e só sobrevive pelo apreço mútuo; e se baseia não tanto em favores, mas na boa vida e não pode haver amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça; o verdadeiro pilar da amizade é a equidade e cujas partes, para que a relação não claudique, devem estar em pé de igualdade.”
A conclusão a que chega Etienne, sobre o fato da servidão ser sempre voluntária, está exatamente no costume e assim dizem os servos, acomodados..., que:
“Sempre foram subjugados, que seus pais viviam assim; pensam que estão fadados a tolerar o mal e convencem-se disso citando exemplos. Servem voluntariamente porque nascem servos e assim são criados”, transformando-se “com facilidade em covardes.”
Obviamente que nem todos aceitam e se conformam com tal subserviência, pois há alguns, “mais virtuosos que outros, que reagem quando sentem o peso do jugo, jamais tomam gosto pela sujeição e buscam por seus privilégios naturais e a lembrança de seus predecessores e sua essência ancestral.” (Grifei também, posto lindo).
São estes homens e mulheres que sempre existiram e sempre existirão “que, com um arbítrio claro e um espírito visionário, não se contentam, como o grande populacho, em observar o que está diante de seus olhos sem analisar o antes e o depois e sem rememorar as coisas passadas para julgar as do futuro e medir as do presente.”
Uma tal gente assim, “mesmo que a liberdade perecesse por completo e desaparecesse do mundo, eles a imaginariam e a sentiriam em sua alma, ainda a saboreariam, e o gosto da servidão não lhes agradaria, por mais disfarçado que estivesse. A liberdade de fazer, de falar e quase de pensar lhes é totalmente retirada sob o regime tirânico, e esses cidadãos tornam-se singulares em suas fantasias.” Diria eu: em suas fantasias libertárias!
Portanto, “as táticas tirânicas que visam à servidão voluntária aplica-se tão somente às gentes miúdas e grosseiras.”
Não sejamos, então, umas tais destas gentes.
Que lição para nós de hoje!
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. A servidão nossa de cada dia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 fev 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2899/a-servidao-nossa-de-cada-dia. Acesso em: 22 nov 2024.
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