Quando ingressei na Faculdade de Direito de Bauru (SP), sementeira fértil a partir da qual, graças ao dinamismo extraordinário do saudoso Prof. Antônio Eufrázio de Toledo, pude me formar bacharel, a maneira de viver era bem diferente. No final da chamada Era Vargas, o Brasil orgulhava-se de sua imensa população... de quase 60 milhões de habitantes! Não éramos, ainda, “potência emergente”, mas estávamos franca e desinibidamente colocados no “Terceiro Mundo” – expressão, aliás, que estava nascendo naqueles tempos de Nasser, Tito e Nehru.
A indústria automobilística brasileira ensaiava seus primeiros feitos e me lembro do sucesso que fez a famosa Romi-Isetta. Aproximava-se o Governo Juscelino, que prometia fazer em 5 anos uma obra de 50, e o Brasil ainda sonhava um dia vir a ser, pela primeira vez, Campeão Mundial de Futebol.
Bauru era, naquele tempo, uma cidade provinciana e acanhada. Para mim, no entanto, que vinha dali de perto, de Marília, também menor do que é hoje, afigurava-se como uma imensa urbe, uma espécie de mini-São Paulo.
A Capital, então, mostrava-se no auge dos auges. Já era, com seus 3 ou 4 milhões de habitantes, “a cidade que mais cresce no mundo”.
Ingressando na faculdade, rapaz ingênuo, tratei logo de mandar fazer um cartão de visitas, dos mais pobres, com os dizeres: “Damásio E. de Jesus – Acadêmico de Direito”.
A vida era difícil para nós, estudantes sem grandes posses. O curso era “puxado”, como dizíamos, exigia muito dos alunos. Os professores, idealistas e sábios, davam o melhor de si, mas faziam questão de que estivéssemos à altura deles. Os nomes daqueles mestres inesquecíveis do nosso curso ficaram gravados para sempre na minha memória: Sílvio Marques Júnior, Octávio Stucchi, Aldo Castaldo, Fernando da Costa Tourinho Filho e tantos outros que minha lembrança já não alcança.
Morei durante anos num quarto de hotel da Avenida Rodrigues Alves, mais precisamente no quarto n. 31 do Hotel Tapajós, depois Hotel Terra Branca, hoje fechado.
Para acompanhar o curso, precisava estudar arduamente, sem esmorecer. Uma fraqueza significaria um atraso, e atrasar-se, para um moço que estava lutando pela vida, significaria uma derrota impensável.
Já naquele tempo eu namorava a jovem que se tornaria, mais tarde, minha esposa. O namoro, porém, era rigidamente prefixado: duas horas aos sábados e aos domingos, das 19h00 às 21h00, e nada mais do que isso. Concluídas as duas horas, despedíamo-nos: ela voltava para a casa de seus pais e eu ia para o meu quartinho me debruçar sobre o Pontes de Miranda, o Basileu Garcia, o Nélson Hungria ou o velho Clóvis... à espera de novo remanso no domingo seguinte!
Quem, às 2h00 de sábado para domingo, passasse pela rua, veria a luz acesa no meu quarto. Ainda estava “queimando as pestanas”, como se dizia. Foi uma luta constante, contínua, sem recuos ou contemporizações. Eu não podia me permitir, insisto, vacilações.
Minha paixão era ser Juiz de Direito. Um sonho. Para afastar completamente qualquer tentação, escrevi estas palavras na madeira interna da porta do guarda-roupa: “SEREI JUIZ”. Todos os dias, quando abria a porta, lia o lembrete que marcava a meta da minha vida. Era uma mensagem de auto-sugestão muito eficaz, que exorcizava qualquer desânimo.
Ser Juiz tornou-se uma idéia fixa, quase uma obsessão. Só os apaixonados vencem a luta pela vida, e eu, sem dúvida, era um apaixonado. Preparei-me arduamente para o concurso. Durante os cinco anos de faculdade, concentrei a atenção nas matérias que, mais tarde, teriam peso maior no concurso para Juiz, especialmente Direito Civil, Processo Civil, Direito Penal, Processo Penal e Direito Constitucional. Nas matérias que teriam menos importância no concurso, eu me esforçava somente para tirar nota sete, de modo a ficar dispensado dos exames de fim de ano e poder, assim, dedicar mais tempo às disciplinas que realmente me importavam. Tudo direcionado para a meta da minha vida: ser Magistrado.
Não cheguei, entretanto, a ser Juiz. Aconteceu que, depois de formado, todos os dias, comparecia ao Cartório do saudoso Sílvio Telles Nunes para ler, no Diário Oficial, o ansiado edital do concurso. O destino, todavia, reservava-me uma surpresa: saiu a Lei do Interstício, estabelecendo que somente poderia prestar concurso da Magistratura o bacharel que tivesse dois anos de efetivo exercício da Advocacia. Eu, jovem e impetuoso como todos os moços, tinha pressa. Para mim, esperar dois anos parecia uma eternidade.
Fui aconselhar-me com o Prof. Sílvio Marques Júnior, Promotor de Justiça e meu Professor de Introdução à Ciência do Direito, e, por sugestão dele, prestei concurso de ingresso no Ministério Público. Eu me sentia mais forte em Direito Civil e Processo Civil, mas, em poucos meses, preparei-me intensamente para o concurso, aprofundando os estudos de Direito Penal e Processo Penal, de modo que fui aprovado, com ótima colocação, num concurso difícil e muito disputado. A idéia seria ficar dois anos no Ministério Público e, depois, ingressar na Magistratura.
Como diz um ditado na Inglaterra, todavia, “quer fazer Deus dar boas gargalhadas? Então, conte a Ele os seus planos de vida!”. Costumo dizer que me apaixonei pela Magistratura, mas acabei me casando com o Ministério Público. O meu projeto inicial de ficar um prazo na Promotoria e, depois, divorciar-me dela e passar para a Magistratura foi abandonado.
Meu casamento com a Promotoria foi longo e feliz. Durante 26 anos galguei, passo a passo, todos os níveis do Ministério Público, até me aposentar no mais alto posto da carreira, o de Procurador de Justiça.
Promovido para exercer a carreira em Lençóis Paulista, tive ocasião de retornar à saudosa Faculdade de Direito, agora como Professor de Direito Penal, assistente de meu velho mestre, Prof. José Frederico Marques. Para um jovem de 27 anos, era a carreira de professor que se abria de modo privilegiado. E, realmente, durante 12 anos, lecionei Direito Penal em Bauru.
A par do Magistério Superior, dediquei-me também aos cursos preparatórios para concursos e à redação de obras jurídicas. O “Curso do Prof. Damásio”, fundado em Bauru, foi, nos anos 1970, transferido para São Paulo e hoje, graças à moderna tecnologia das transmissões via satélite, atinge dezenas de cidades de todo o Brasil. A modesta semente lançada em Bauru, depois de percalços e dificuldades de toda ordem, germinou e produziu o que é hoje o nosso Complexo Jurídico, um dos maiores centros de cultura jurídica de todo o País.
A vida tem caminhos que por vezes surpreendem... Não cheguei a ser Juiz, como tanto sonhei, mas tenho a alegria de ter sido professor de centenas de Juízes, alguns já Desembargadores, e também de milhares de Promotores, Delegados, Advogados e, mesmo, Professores de Direito!
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