Lembro-me do tempo, lá nos idos de 2000, quando cursava a disciplina de direito penal na graduação de direito. O professor ensinava com convicção e voz impostada os princípios basilares da matéria penalista.
Na sua fisionomia via-se um ar de serenidade para traçar as balizas penais, com arrimo nos doutrinadores clássicos. Ainda que houvesse divergências nas ideias dos pensadores, as bases de um direito penal que visava – e ainda tem que visar – resguardar o acusado de arbitrariedades do poder punitivo mantinham prevalência.
Cada proteção esculpida no ordenamento jurídico para o acusado penal tinha, e tem, uma razão de ser, um motivo para que não exista uma condenação despida do mínimo de coerência e provas, de preferência robustas. O célebre caso dos irmãos naves, exempli gratia, serve de alerta: dois irmãos que foram severamente torturados e condenados por um crime que, no final das contas, não cometeram.
O professor falava, com tranquilidade, que a prisão do acusado somente poderia ocorrer quando esgotadas todas as instâncias, até o último grau, e recursos cabíveis, salvo se a lei admitisse a prisão temporária ou preventiva, nos seus estritos termos. Afinal, dizia, a liberdade é um bem caro do ser humano e o direito penal é a ultima ratio, razão pela qual não é à toa que está esculpido no art. 5º da Constituição Federal.
Expunha que era vedado condenar alguém sem previsão prévia do crime, por meio de lei, tampouco a necessária prévia cominação legal. Gargalhava se alguém tentava imputar crime a alguém por analogia ou buscasse fazer interpretações in malam partem ao suspeito ou acusado.
Recordo-me do exemplo dado: seria um absurdo, uma teratologia jurídica, querer aplicar pena de morte, por analogia, a traficantes de drogas, ao argumento que se está em guerra contra o tráfico.
Os ensinamentos percorriam a ideia de que o direito penal fora talhado para resguardar o acusado de arroubos e excessos da vingança estatal. Ao final do processo, com as garantias que estão na Constituição Federal e no Código Penal, é que o acusado sofreria a pena devidamente dosada, com a sua necessária individualização, para a ação criminosa praticada.
Atualmente, neste momento de inovações jurisprudenciais, para não dizer juízes legisladores, pobre coitado do professor de direito penal que tem a tarefa árdua de ministrar a disciplina. Voz trêmula, com hesitação, passa um conteúdo sem a necessária segurança jurídica.
Afinal, pode ou não prisão antes do trânsito em julgado? É primeira instância, segunda instância, STJ ou STF o local adequado para determinar o recolhimento à prisão do acusado pelo crime que foi condenado? A cada flash da mídia e, a depender do envolvido, a resposta a esta indagação pode mudar radicalmente.
Criar crime novo ou “interpretar” de maneira ampliativa por analogia os tipos penais, por que não? Pode tudo e vale tudo na atualidade!
Para alguns julgadores, a liberdade encontra-se na Constituição Federal, numa cláusula pétrea, como mero enfeite. O importante é aplicar penas, recolher a prisão. Mostrar viés punitivista, custe o que custar. Os direitos do acusado podem ser relevados. Deve-se buscar atender o clamor da sociedade e ganhar “likes” nas mídias sociais, pensará alguns.
Cabe aqui o alerta do renomado e ilustre jurista Eros Grau:
O modo de pensar criticamente que me conduz convence-me de que o modo de ser dos juristas, juízes e tribunais de hoje – endeusando princípios, a ponto de justificar, em nome da Justiça, uma quase discricionariedade judicial – compõe-se entre os mais bem-acabados mecanismos de legitimação do modo de produção social capitalista. Decidir em função de princípios é mais justo, encanta, fascina e legitima o modo de produção social. Aquela coisa weberiana da certa e seguranças jurídicas sofre, então, atenuações; evidentemente, no entanto, apenas até o ponto em que não venha a comprometer o sistema.
Pondera também Lênio Streck:
O que é um juiz corajoso? É o juiz voluntarista, que acha que o Direito atrapalha? É o que atende à voz das ruas? É o ativista que acha que pode administrar o Estado concedendo liminares? É o que concede 120 dias de licença-paternidade para um pai-que-é-funcionário-público? É um juiz que mandou fazer conduções agora declaradas inconstitucionais? Para mim, o juiz corajoso é o que faz o simples: cumpre a lei. Que segue rigorosamente a Constituição. É o juiz ortodoxo. É o juiz raiz e não o juiz nuttela (para usar uma brincadeira das redes sociais). Contra tudo e contra todos. Corajoso é o que sabe que a Constituição é um remédio contra maiorias.
Decidir e criar direito penal no afogadilho, no meio de um processo penal, é, deveras, um risco para a sociedade, a mesma que grita diariamente por “justiça”. Abandonar o “lex”, como diz Eros Grau, para atender a anseios punitivistas pode ter efeito pior do que a boa intenção por detrás desta vontade de ver o réu devidamente punido.
Não se está aqui a defender a impunidade de suposto criminoso, qualquer que seja, desde os delitos liliputianos até os mais graves e hediondos, mas sim o devido processo legal e a proteção das garantias e princípios penais.
Com certeza que quem peca deve ser punido, na medida da sua culpabilidade. Isto tem fundamento até bíblico. Mas o Estado, que se arvorou a ser o titular da vingança contra o ofensor, deve ter cautela e evitar arbitrariedades na condução e na aplicação das penas.
Punir é ato que requer cautela, sem influências externas, com comedimento e ponderação, observando todos os contornos legais para que o julgador não haja, no final das contas, à margem, ou até mesmo contra, o comando da lei.
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