O mundo anda bastante desencontrado (guerras, terrorismo, ódio, polarizações, aumento da criminalidade, assassinatos massivos, desemprego, desigualdades brutais e por aí vai) porque estamos vivendo o fim de uma era (era da modernidade, no Ocidente; a civilização atlântica, no nosso específico caso).
O velho sistema (totalmente corrompido) já morreu e o novo ainda não nasceu completamente. Um modelo de sociedade (egoísta, individualista, carência de valores coletivos, falta de ética, corrupta, eclipse da humanização) está sendo substituído por outro (da sociedade em rede, interconectada).
Nossa sociedade pré-colonial (indígena) seguia um sistema de valores e de normas de convivência sacralizados (respeito ao Universo ou à Natureza, como fundamento da sobrevivência humana). Os deuses expressavam as forças naturais assim como a ordem cósmica. As lideranças tinham autoridade moral.
No século 16 apareceram os colonizadores e evangelizadores e impuseram um novo sistema de valores (nova ordem social). Tudo que pertence a “este mundo” (Natureza, Cosmos) foi devastado, roubado ou desvalorizado. O que vale é a “outra vida”, sobrenatural e transcendente (ver Afonso López Juárez, prefácio do livro Manual anticorrupcion, de Mauro Rodríguez Estrada).
Tudo foi e continua sendo saqueado, escravizado ou queimado pelas elites detentoras do poder, sob o império de uma nova ordem “efêmera e imperfeita”, que guia o agir humano egoísta e sem ética. Os valores coletivos se evaporaram. O que vale é a “outra vida”.
Na Terra somos pecadores, carentes do perdão que nos libere da culpa. As normas sociais são infringidas continuamente, sem consequências maiores. Daí a irresponsabilidade moral e jurídica ser a regra. É “no além” que os pecadores serão castigados e os “justos” receberão seus prêmios.
Caímos, dessa forma,
(i) na anomia (ausência de normas ou ausência da eficácia delas), ou seja, as normas de convivência são descumpridas generalizadamente, porque o que vale é a outra vida, não esta; assim chegamos na lei dos mais fortes (a lei da selva), que satisfazem suas ambições (muitas vezes selvagens, mesquinhas) mediante a força, o abuso ou a fraude ou por meio dos seus privilégios;
(ii) na anaxia (sociedade onde perderam vigência os valores coletivos, o respeito ao próximo, à natureza, aos animais e ao bom uso das tecnologias) e
(iii) na anarquia (que é a negação da autoridade, do governo; lideranças sem autoridade moral).
Anomia, anaxia e anarquia são elementos da nossa selvageria. Eles nos distanciam da civilização.
Imaginou-se civilizar o humano por meio da modernidade (nos últimos 300 anos). Acreditou-se na força da ciência e ela realmente teve progresso. A ciência tecnológica, aliás, explodiu. Mas faltou o essencial: a ética, a moral e a educação humanizadoras.
Criamos o melhor dos mundos tecnológicos, vivemos muitos anos mais por força dos avanços na medicina, mas faltou desenvolver o humano (as ciências humanas, a inteligência humana, a sensibilidade humana). Cometemos o pecado capital de “tratar os seres humanos como meios, não como fim”. A doutrina de Kant não foi observada.
Sem a ética humanizadora usamos as tecnologias sobretudo para expressar sentimentos primitivos (como o ódio). A educação ética e humanizadora não veio. Eis o paradoxo: o mundo globalizado se tornou tecnológico sem humanizar os humanos.
Faltou humanização, ou seja, o ensino da ética relacional fundada em valores humanísticos que foram soterrados sem o desenvolvimento da empatia, da cooperação, da moral, do diálogo, da compreensão e da dignidade individual (como medida de todas as coisas).
Faltou também o desenvolvimento da responsabilidade. Sobram pulsões agressivas, falham as pulsões construtivas.
Ética humanizadora significa respeito, solidariedade, compaixão, empatia, bondade, construção coletiva de valores compartilhados. Isso se contrapõe ao egoísmo, ao individualismo, quando se pensa nas necessidades coletivas.
Todos temos nossos interesses individuais, mas também existem os interesses comuns, da comunidade, sem os quais nenhuma convivência se torna possível.
Todos nos identificamos com as emoções e experiências dos demais (Adam Smith). Dentro do humano há tanto o elemento egoísta como o que gosta de ver a felicidade dos outros. Não desenvolvemos a moral altruísta na sociedade civil. Daí o predomínio da alterofagia.
O humano não é só genética, não é só natureza, posto que também é cultura. Falhou a cultura da empatia, que é a capacidade que nos humaniza e que nos enobrece. Que a sociedade nascente promova o equilíbrio entre os avanços da ciência e a ética humanizadora. O planeta Terra será palco para outro sentido da vida.
LUIZ FLÁVIO GOMES, professor, jurista e Deputado Federal Contra a Corrupção.
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