O governo está tentando difundir o porte de arma por meio de decreto. Mas decreto não é lei. Está abaixo dela. Ele só pode regular ou explicitar o que já está na lei. Não pode ir além dela. É fruto de decisão política. Quando radical ou abusivo, fere a lei e a Constituição. Se torna inconstitucional (e não vale).
Foi isso o que ocorreu com o Decreto 9.785/19. Em vários momentos foi além do que está previsto no Estatuto do Desarmamento. Dentre os pontos fora da “casinha” podemos citar a presunção da necessidade do porte de arma de fogo, presunção genérica, em favor de 20 categorias. Isso viola a regra legal que exige comprovação dessa necessidade em cada caso.
Violada a lei (por meio de um decreto), de duas uma: ou por decisão do Congresso ou por deliberação do Supremo, o adequado é suspender a vigência do decreto, deixando a discussão da matéria para o Parlamento. Com isso se respeita o princípio da separação dos poderes (quem cria leis ordinárias é o parlamento, não o Executivo). Cada macaco no seu galho. Cada poder com seus limites. Ou tudo vira bagunça.
O presidente disse: “Nós temos que respeitar a vontade popular”. Trata-se de uma regra de ouro na política. Mas o presidente também tem que respeitar a Constituição e as leis. Não existe poder ilimitado. Nem tudo que o povo quer está permitido pelas leis ou pela Constituição.
Quem governa ou pratica atos de acordo com a vontade das multidões (das massas), violando o direito positivo, transforma e democracia em oclocracia (que é uma democracia populista distorcida, já denunciada por Aristóteles, no velho mundo grego).
É evidente que ninguém pode ser impedido de agir em legítima defesa, nos termos do art. 25 do Código Penal. A defesa pode ser feita inclusive por meio de arma de fogo, desde que não haja abuso, excesso ou desproporcionalidade (é o que diz a lei).
Diante do quadro de violência epidêmica, muita gente acredita que estando a população armada a segurança melhora. Os radicais chegam a afirmar que querem arma “para matar vagabundo” (alterofagia sem disfarces, fim da sensibilidade humana).
O Estado tem obrigação de nos garantir segurança (essa foi a razão central do seu nascimento, conforme Hobbes, em 1651). Quando o Estado falido não cumpre seu papel, ele pode não fazer nada ou estimular a política tanatológica (autofágica e alterofágica) “da guerra de todos contra todos”. Como?
Disseminando a posse ou porte de armas de fogo, por exemplo. Sem critérios. É um grande equívoco presumir que todos saibam usar arma de fogo. Sem o devido treinamento, a arma se transforma em um instrumento de alterofagia (destruição) massiva.
Quer saber mais?
O decreto revela exorbitância do poder regulamentar, passível de sustação por decreto legislativo (ou por decisão judicial).
O Estatuto do Desarmamento condicionou o porte de armas de fogo à prova de efetiva necessidade (art. 4º). Isso não se compatibiliza com presunções de necessidade dadas por decreto regulamentador. A regra geral do Estatuto é a não concessão do porte. Só em casos excepcionais ele pode ser deferido. Um decreto não pode fazer isso em favor de milhões de pessoas (cerca de 20 milhões) afastando a regra da comprovação efetiva da necessidade do porte.
Uma coisa é presumir normativamente a necessidade de profissões notoriamente perigosas, como a de policiais e mesmo guardas civis metropolitanos, mas outra é estendê-la a uma série de categorias em que não há esse perigo imanente à profissão.
Ao declarar a constitucionalidade do Estatuto do Desarmamento, o STF o fez à luz da proibição de proteção insuficiente, subjacente ao princípio da proporcionalidade. Nessa perspectiva, incide ainda o princípio da proibição do retrocesso social, pois o armamento indiscriminado da população tende a aumentar o número de crimes passionais, pelo notório número elevado de pessoas psicologicamente inaptas à enorme responsabilidade de possuir uma arma de fogo (STF, ADI 3112).
Consoante destacado pelo Relator, Min. Lewandowski, “a edição do Estatuto do Desarmamento, que resultou da conjugação da vontade política do Executivo e do Legislativo, representou uma resposta do Estado e da sociedade civil à situação de extrema gravidade pela qual passava – e ainda passa – o País, no tocante ao assustador aumento da violência e da criminalidade, notadamente em relação ao dramático incremento do número de mortes por armas de fogo entre os jovens”, relacionando a regulação restritiva do Estatuto do Desarmamento à conjugação do direito dos cidadãos à segurança pública e o correspondente dever estatal de promovê-la eficazmente (p. 2 e 4 do voto).
Ademais, consoante o voto do Min. Gilmar Mendes, “A jurisprudência da Corte Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de que o significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros”, subdividindo-se em deveres de proibição, deveres de segurança (contra ataques de terceiros) e deveres de evitar riscos (mediante medidas de prevenção e proteção, relativamente à proibição de proteção insuficiente imanente ao princípio da proporcionalidade) (p. 8-13 do voto).
Anote-se, ainda, que o Estatuto do Desarmamento fala em “atestado de bons antecedentes” para residentes em áreas rurais (art. 6º, §5º) para a pessoa poder adquirir o porte de arma, mas o Decreto 9.785/89 fala em “inexistência de inquérito policial ou processo criminal” (art. 9º, IV) para as pessoas em geral, em franca violação do princípio da presunção de inocência, visto ser pacífica a jurisprudência do STF de que inquéritos ou processos penais não podem ser considerados “maus antecedentes”, mas apenas a condenação judicial transitada em julgado (v.g.: STF, RHC 113.281/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 19.02.2014).
Só se pode ampliar a regulamentação do assunto porte de arma de fogo por lei. Houve tentativa de se driblar a lei, por meio de decreto. Pesquisa do Datafolha (dez/18) diz que 61% da população é contrária à liberação “geral” da arma de fogo. Arma de fogo nas mãos de quem não tem treinamento apropriado recrudesce a violência.
A difusão massiva de armas de fogo para a população constitui um exemplo de mal líquido, tratado por Bauman e Donskis no livro com o mesmo nome. Contrariamente ao mal sólido, ele assume sempre a aparência de bondade e amor. Ele avança disfarçado de ausência e impossibilidade de alternativas.
Estamos vivendo mais uma era de completo abandono do indivíduo, que se vê mergulhado numa sensação infinita de impotência. Todo mundo que se sente impotente o que mais deseja é ter potência. Quando a consegue o risco é alcançar a prepotência. O Estado, sempre que foi dominado por elites e/ou sistemas econômicos radicais, como o que se estruturou nos últimos 40 anos, deixou o cidadão e sua própria vida por sua conta e risco, afastando-se das suas responsabilidades nas áreas da educação, segurança, saúde, Justiça e previdência. Tanto as elites dominantes como a própria burocracia estatal esquivam-se, nesses momentos tristes da humanidade, das suas responsabilidades. O mal, nesses períodos históricos de abandono, não é óbvio nem autoevidente. Guerra é paz e paz é guerra (dizia George Orwell, citado por Bauman e Donskis, Mal líquido).
LUIZ FLÁVIO GOMES, professor, jurista e Deputado Federal Contra a Corrupção.
* Colaboração de Paulo Iotti, Advogado e Doutor em Direito Constitucional.
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