Em 14 de abril de 2009, o Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) decidiu submeter a audiência pública, pelo prazo de 30 dias, uma minuta de Parecer de Orientação que trata das disposições estatutárias que impõem ônus a acionistas que votarem favoravelmente à supressão de cláusulas de proteção à dispersão acionária, popularmente conhecidas como “poison pills”[1].
Essas cláusulas estão sendo bastante questionadas do ponto de vista das boas práticas de governança corporativa e tem sido alvo de discussões não só no Brasil como nos demais países que tem um mercado de capitais importante. Nos Estados Unidos, a estrutura de propriedade de capital pulverizado (dispersão acionária), que prevalece na maioria das companhias norte-americanas, originou um conflito de interesses entre os administradores (executivos que atuam como donos da empresa) e os acionistas. Em vários casos a “poison pill”, ao invés de desestimular que aventureiros corporativos façam uma tomada hostil do controle da companhia prejudicial aos acionistas, acaba sendo utilizada pelos administradores para impedir a mudança de controle que muitas vezes poderia ser saudável para a própria empresa e lucrativa para seus acionistas.
No Brasil, o surgimento de companhias abertas com capital pulverizado é relativamente recente[2], prevalecendo ainda o modelo em que a companhia tem um dono, ou seja a sociedade pertence a um acionista controlador[3] ou a um grupo de controle (normalmente constituído por pessoas relacionadas ou da mesma família).
Nos últimos anos, os estatutos sociais de várias companhias brasileiras passaram a conter cláusulas de proteção à dispersão acionária. Essas cláusulas obrigam qualquer acionista ou o investidor interessado em adquirir determinado percentual das ações em circulação a realizar uma oferta pública para também comprar as ações remanescentes a um determinado preço[4]. Muitos desses estatutos incluem disposições acessórias a essas cláusulas, que impõem um ônus substancial aos acionistas que votarem favoravelmente à supressão ou à alteração das cláusulas de proteção à dispersão acionária[5]. Essas cláusulas acessórias são impropriamente referidas como “cláusulas pétreas” porque visam perpetuar as “poison pills”, dificultando a sua remoção ou modificação.
Ao analisar a matéria, a CVM acertadamente concluiu que a aplicação concreta dessas disposições acessórias é incompatível com diversos princípios e normas da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades por Ações), apresentando os seguintes problemas jurídicos:
(i) o artigo 121 determina que a assembléia geral de acionistas é soberana para deliberar sobre todos os negócios relativos ao objeto social, soberania essa que estaria sendo limitada pela disposição acessória que impõe um ônus significativo aos acionistas que aprovarem a supressão ou alteração da “poison pill” [6];
(ii) o artigo 122, inciso I outorga poderes à assembléia geral de acionistas para alterar o estatuto social, sempre que o interesse social assim o exigir, conflitando com a disposição acessória, que tem por objetivo tornar praticamente imutável a “poison pill”[7];
(iii) o artigo 129, § 1º veda à companhia aberta aumentar o quorum previsto em lei para deliberações da assembléia geral de acionistas (o que somente é permitido para as companhias fechadas), contrariando a disposição acessória, que indiretamente eleva esse quorum, ao exigir unanimidade, ou quase unanimidade, para que a “poison pill” possa ser suprimida[8];
(iv) o caput do artigo 115 determina que o acionista deve exercer seu direito de voto no interesse da companhia, o que seria violado pela disposição acessória, quando impõe ônus econômico ao acionista, impedindo-o de suprimir a “poison pill” no interesse da própria companhia[9].
Tendo em vista que a disposição acessória classificada como “cláusula pétrea” não se harmoniza com a legislação societária em vigor, pelos motivos acima expostos, o Parecer de Orientação esclarece que a CVM não aplicará penalidades, em processos administrativos sancionadores, aos acionistas que votarem pela supressão ou alteração da “poison pill” contida no estatuto social, ainda que não realizem a oferta pública prevista na referida disposição acessória.
As “poison pills” trazem não só benefícios como também consideráveis custos, quando atreladas a cláusula pétreas, conforme analisaremos a seguir.
Três são basicamente os benefícios das “poison pills”: (i) promover o tratamento equitativo (igualitário) entre os acionistas; (ii) proteger os acionistas contra ofertas coercitivas; e (iii) aumentar o poder de barganha dos acionistas. Teoricamente, as disposições acessórias seriam importantes para impedir que tais benefícios fossem eliminados mediante reforma estatutária. Na prática, todavia, essa proteção revela-se dispensável em relação aos dois primeiros benefícios e contraproducente no caso do terceiro benefício.
Nas companhias sem controlador (com capital disperso), nenhum dos acionistas tem especial interesse em suprimir a “poison pill” pois eles serão os principais prejudicados pelo tratamento desigual ou por uma oferta coercitiva. Podemos, portanto, confiar plenamente na decisão soberana da assembléia geral de acionistas a esse respeito. Ainda que o potencial adquirente faça uma oferta de aquisição de controle da companhia condicionada à revogação da “poison pill”, os acionistas somente deliberarão nesse sentido se a maioria estiver convencida de que o preço ofertado é justo[10].
Nas companhias com controlador, o tratamento igualitário já é parcialmente assegurado pela lei[11] e pelo regulamento do Novo Mercado da BM&FBOVESPA[12], e a proteção contra ofertas coercitivas é desnecessária, em decorrência das regras aplicáveis a ofertas públicas para fins de fechamento de capital e aumento de participação societária.
Em relação ao terceiro benefício, a disposição acessória na verdade restringe a possibilidade de negociação às exceções expressamente previstas no estatuto social. Na ausência de cláusula pétrea, a administração pode negociar livremente o preço e as demais condições do negócio com o possível interessado em adquirir o controle da companhia e, em seguida, convocar a assembléia geral de acionistas para revogar a “poison pill”.
Os dois custos mais óbvios e relevantes das cláusulas pétreas atreladas às “poison pills” são: (i) impedir a realização de negócios eficientes do ponto de vista econômico[13]; e (ii) aumentar os “custos de agência”, representados pelas perdas sofridas em razão da ineficiência ou oportunismo da administração.
A oferta hostil de aquisição de controle é um dos principais mecanismos para evitar essas perdas. Nas companhias sem controlador, a dispersão acionária reduz os incentivos de cada acionista para monitorar a administração da companhia. Companhias geridas de maneira ineficiente (negligente) ou oportunista (desleal) perdem valor de mercado, tornando-se mais atraente para um potencial comprador. A oferta hostil eliminada as perdas ex post, através da substituição dos administradores, bem como reduz as perdas ex ante, considerando que a simples ameaça de mudança de controle cria um incentivo para que os administradores mais eficientes (diligentes) e leais para com os acionistas[14]. O potencial interessado em adquirir o controle de determinada companhia poderá apelar diretamente aos acionistas, para que estes revoguem a “poison pill”[15].
[1] Trata-se de um mecanismo para impedir ou evitar as tentativas de tomada hostil de controle (“hostile takeover”) de companhias abertas, que foi criado na década de oitenta nos Estados Unidos por Martin Lipton, um dos sócios fundadores do escritório de advocacia norte-americano Watchell, Lipton, Rosen & Katz e renomado especialista em fusões e aquisições (“mergers and acquisitions” ou m&a). Esse mecanismo passou a ser denominado sarcasticamente de “poison pills” (pílulas envenenadas), sendo também conhecido como “shark repellent” (repelente para tubarão), “porcupine provisions” (disposições porco-espinho) ou “shareholder rights plan” (plano de proteção aos direitos do acionista), e foi desenvolvido por Lipton em duas operações que ocorreram no Texas em 1982. No primeiro caso, a empresa General American Oil defendia-se contra o ataque de T. Boone Pickens, um temido e aventureiro “caçador” corporativo, que pretendia assumir o controle dessa companhia. Na ocasião, Litpton recomendou à Diretoria da companhia que estrategicamente diluísse a aquisição de Pickens, inundando o mercado com a emissão de novas ações. Todavia, sua orientação não foi seguida mas a companhia acabou sendo vendida para outro interessado, que apareceu no último instante e apresentou a proposta vencedora. No segundo caso, Lipton aconselhou a El Paso Company a defender-se, ameaçando o comprador hostil com a utilização da “poison pill” e, dessa forma, a El Paso conseguiu negociar sua venda de maneira bastante vantajosa para a companhia.
[2] O movimento de pulverização do controle de companhias brasileiras é ainda muito tímido e teve início em 2005, com as Lojas Renner. Outros exemplos são Embraer, Diagnósticos da América, Submarino e Perdigão. É decorrência do desenvolvimento, amadurecimento e democratização do mercado de capitais brasileiros e prestigia as boas práticas de governança corporativa. Além disso, o mercado acionário constitui uma porta de saída para a revenda dos investimentos realizados por fundos de private equity.
[3] A Lei nº 6404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei das Sociedades por Ações) define “acionista controlador” como segue:
“Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”
[4] Segundo o Memorando elaborado em 14/04/2009 para o Colegiado da CVM pelos Diretores Marcos Barbosa Pinto e Otavio Yazbek, uma redação bastante comum para esse tipo de cláusula é a seguinte: “Qualquer acionista que adquira ou se torne titular de ações de emissão da companhia, em quantidade igual ou superior a X% do total de ações de emissão, excluídas para os fins deste cômputo as ações em tesouraria, deverá, no prazo de 30 (trinta) dias a contar da data de aquisição ou do evento que resultou na titularidade de ações em quantidade igual ou superior a X% do total de ações de emissão da companhia, realizar ou solicitar o registro de uma oferta pública de aquisição de ações para aquisição da totalidade das ações de emissão da Companhia. O preço de aquisição de cada ação de emissão da companhia não poderá ser inferior ao maior valor entre (i) X% da cotação unitária mais alta atingida pelas ações de emissão da companhia durante o período de X meses anterior à realização da oferta em qualquer bolsa de valores em que as ações da Companhia forem negociadas; (ii) X% do preço unitário mais alto pago pelo acionista adquirente durante o período de X meses anterior à realização da oferta para uma ação ou lote de ações de emissão da companhia; e (iii) o valor econômico apurado em laudo de avaliação.”
[5] Ainda segundo o Memorando referido na nota anterior, uma redação bastante comum para essa cláusula acessória é a seguinte: ”A alteração que limite o direito dos acionistas à realização da oferta pública prevista neste artigo ou a exclusão deste artigo obrigará os acionistas que tiverem votado a favor de tal alteração ou exclusão na deliberação em Assembléia Geral a realizar a oferta pública prevista neste artigo.
[6] O artigo 121 da Lei 6.404/76 dispõe que:
“Art. 121. A assembléia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento.”
[7] Nos termos do artigo 122, inciso I, da Lei 6.404/76, com a redação dada pela Lei nº 10.303, de 31/10/2001:
“Art. 122. Compete privativamente à assembléia-geral:
[8] Esse dispositivo estabelece que:
“Art. 129. As deliberações da assembléia-geral, ressalvadas as exceções previstas em lei, serão tomadas por maioria absoluta de votos, não se computando os votos em branco.
§ 1º O estatuto da companhia fechada pode aumentar o quorum exigido para certas deliberações, desde que especifique as matérias.”
[9]Com efeito, o artigo 115 da Lei 6.404/76, com a redação dada pela Lei 10.303/01, estipula que:
“Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.”
[10] O acionista que achar o preço baixo, por uma questão de precaução, poderá aceitar a oferta e votar contra a revogação da “poison pill”. Logo, as chances de coerção são praticamente nulas.
[11] Segundo o artigo 254-A da Lei 6.404/76, introduzido pela Lei 10.303/01:
“Art. 254-A. A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. (grifo nosso)
§ 1o Entende-se como alienação de controle a transferência, de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a resultar na alienação de controle acionário da sociedade.
§ 2o A Comissão de Valores Mobiliários autorizará a alienação de controle de que trata o caput, desde que verificado que as condições da oferta pública atendem aos requisitos legais.
§ 3o Compete à Comissão de Valores Mobiliários estabelecer normas a serem observadas na oferta pública de que trata o caput.
§ 4o O adquirente do controle acionário de companhia aberta poderá oferecer aos acionistas minoritários a opção de permanecer na companhia, mediante o pagamento de um prêmio equivalente à diferença entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle.”
[12] Das 63 companhias abertas que possuem “poison pills” em seus estatutos, 60 estão listadas no Novo Mercado da BM&FBOVESPA, cujo regulamento prevê tag along de 100% para todos os acionistas em caso de alienação de controle. Portanto, ainda que a “poison pill” seja suprimida, o tratamento igualitário será assegurado por regulamento na maioria dos casos. Além disso, das 3 outras companhias não listadas no Novo Mercado, apenas uma possui disposição acessória (cláusula pétrea).
[13] Por exemplo, se a aquisição for estruturada como incorporação, terá características bastante diversas de uma aquisição de ações, em especial a forma de pagamento. Essas diferenças, evidentemente, podem tornar a incorporação menos atraente para os acionistas.
[14] Dentre os deveres dos administradores, a legislação societária vigente estabelece o dever de diligência (artigo 153) e lealdade (artigo 155), como segue:
“Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.”
“Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:
I - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo;
II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia;
III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir.
§ 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.
§ 2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança.
§ 3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação.
§ 4o É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. (Incluído pela Lei 10.303/01)”
[15] Isso poderá ser feito mediante anúncio nesse sentido, acompanhado de um pedido público de procuração, ou através de uma oferta condicionada à supressão da “poison pill”.
Advogado especializado em direito empresarial, bancário e mercado de capitais. Escritório: Walter Stuber Consultoria Jurídica. Tel: (55-11) 3078-0933 - Fax: (55-11) 3078-9026 .Endereço / Address: Rua Tabapuã, 474, 6º andar, conj. 66, Itaim Bibi, São Paulo - SP Brasil CEP04533-001. Site: http://www.stuberlaw.com
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: STUBER, Walter Douglas. A posição da CVM em relação às "Poison Pills" das Companhias Abertas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2009, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/294/a-posicao-da-cvm-em-relacao-as-quot-poison-pills-quot-das-companhias-abertas. Acesso em: 22 nov 2024.
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