Já ficou incorporado ao nosso processo legislativo o hábito de os parlamentares inserirem textos estranhos à matéria versada na medida provisória, a fim de aproveitar o rito privilegiado para a aprovação do instrumento legislativo. Daí a falta de interesse político para limitar, de verdade, o uso da tão “combatida” medida provisória, inclusive, em matéria tributária em que a ofensa ao princípio da legalidade mostra-se patente.
Os caronas representam uma burla ao processo legislativo estabelecido para a discussão e aprovação de lei ordinária e não tem fundamento constitucional.
Somente “em caso de urgência e relevância” pode ser adotada a medida provisória como resta proclamada, com solar clareza, no art. 62 da Constituição Federal.
Ora, a expressão “em caso de urgência e relevância” está a indicar um acontecimento fático, uma determinada situação fática superveniente, a exigir imediata regulamentação normativa, incompatível com o processo legislativo normal. E somente o Presidente da República, que detém o poder cautelar geral, é que pode aferir se determinado acontecimento anormal, pela sua natureza urgente e relevante, deve ser objeto de normatização por meio de medida provisória.
É certo que, na prática, o Chefe do Executivo vem extrapolando a autorização constitucional, como no caso da MP nº 449/08 em que o astuto legislador palaciano conseguiu detectar nada menos que quarenta e quatro situações urgentes e relevantes, dentre as quais, a simples alteração da denominação do Conselho de Contribuintes para Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.
Porém, nada justifica o Parlamento Nacional, que tem o dever de conter o abuso palaciano, agravar o vício legislativo acrescendo no bojo da medida provisória original outras matérias, às vezes, até estranhas, para lograr a rápida aprovação do diploma legislativo com dupla infração de natureza constitucional: a) ausência de um caso, situação fática anormal a exigir regulamentação por medida provisória; b) invasão de competência legislativa pelo parlamento que não detém o poder cautelar geral para decidir quanto à urgência e relevância. E aqui é oportuno esclarecer, desde logo, que o fato de não ter competência para decidir quanto à urgência e relevância não se confunde com o fato de examinar e deliberar quanto à alegação de urgência e relevância do Chefe do Executivo. No caso de simples alteração da denominação de um órgão público, como retro mencionada, a falta de fundamentação constitucional salta aos olhos. É dever do Parlamento excluir essas matérias não urgentes, detectáveis pelo senso comum, do âmbito de abrangência da medida provisória.
Adentrando no tema deste artigo, examinemos a última Medida Provisória, a de nº 457/09, aprovada com carona ou contrabando, no dia 9-6-2009, que introduziu modificações no critério de cálculo de juros moratórios em precatórios judiciais.
Tratava-se de uma medida provisória autorizando o parcelamento de contribuições sociais devidas pelos Municípios em até 240 prestações mensais, matéria que, por si só, enseja o questionamento quanto à urgência e relevância.
De fato, não é razoável supor que débitos tributários “impagáveis” tivessem surgido da noite para o dia no âmbito de mais de 5.500 municípios a comprometer irremediavelmente a sua saúde financeira. Nem o Prefeito Kassab, que governa a cidade mais endividada do País, seria capaz de tamanha proeza!
Pois bem, por força do carona, nessa MP de nº 457/09 foi enxertado um texto dispondo que “nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica, e juros aplicados à caderneta de poupança”.
Sem entrar no exame do mérito do dispositivo “contrabandeado”, pergunta-se, onde a urgência e relevância em alterar a legislação vigente, se o próprio Presidente da República, destinatário do preceito constitucional do art. 62 não as vislumbrou?
Resta claro que o Parlamento exercendo uma competência que não é sua acrescentou um dispositivo atendendo razões de ordem interna e não externa, sujeitas ao juízo político do Presidente da República insuficientes para deflagração da medida provisória. É que oportunidade e conveniência não se confundem com “caso de urgência e relevância”. Sem relação de pertinência temática com um fato externo ensejador da medida provisória, esta perde validade constitucional.
Ainda que a intenção do legislador não tenha sido a de protelar o pagamento de precatórios, não bastasse a Pec nº 12 em discussão, é inquestionável que os tribunais levarão anos discutindo matéria de direito intertemporal: se aplica a nova lei aos casos cobertos pelo princípio de coisa julgada, ou apenas aos casos de ações novas. Se a decisão judicial transitada em julgado não tiver feito referência específica ao percentual de juros aplicável, a discussão será ainda mais acalorada, alongando infinitamente o perfil da dívida pública representada por precatórios. Com tais medidas, talvez, nem mais se precise da Pec nº 12.
Coincidência ou não, a verdade é que a norma “contrabandeada” conspira contra os credores por precatórios dando azo às novas discussões judiciais.
SP, 15-06-09.
Precisa estar logado para fazer comentários.