A falsa sensação de segurança que o mundo digital oferta e a dupla face dos direitos fundamentais como uma consequência jurídica dos excessos praticados.
Sexta-feira, 23 de setembro de 2022.
“Não concordo com nenhuma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-lo”.
Palavras estas, atribuídas a uma das maiores personalidades do iluminismo: François-Marie Arouet, também conhecido como Voltaire. Precursor da Revolução Francesa, berço de direitos basilares constituintes de nossa Carta Maior, Constituição Federal. Este pensador, assim como outros de extensa linha histórica, fora porta voz de um dos principais direitos fundamentais de maior evidência no mundo digital, a liberdade de expressão.
Direito este previsto constitucionalmente, aduz:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;”
A íntegra textual é compreensível a primeira leitura: “Constitui direito próprio e alheio a expressão opinativa sobre qualquer fato ou assunto, desde que possível a identificação de seu interlocutor”. Entretanto, a objetividade deste direito abrange maiores conceitos de caráter subjetivo, para tal, é necessária aplicabilidade hermenêutica para melhor conceituá-la.
A liberdade de expressão, compõe um dos direitos fundamentais de primeira geração, constituinte das liberdades individuais do indivíduo integrante da sociedade. A premissa também abrange os meios de alcance à pessoa, o meio do qual essa informação será acessível a coletividade, para isso, a extensão deste direito no mesmo diploma legal:
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
Desta maneira, é expressa a vedação da censura prévia, com base na ADPF 130 (Rel. Min. AYRES BRITTO, Pleno, DJe de 6/11/2009) garantindo o pleno acesso à informação e sua consequente extensão a liberdade de imprensa. Entende-se destes dispositivos, que a plataforma digital (programa de software que serve como intermediário das interações dos usuários) não pode realizar análise prévia dos áudios, imagens ou escritos de seus usuários antes da efetiva postagem em rede; pois tal prática, classifica-se como intervenção ilegítima do Estado, consequente, uma afronta aos direitos fundamentais e liberdades já anteriormente mencionadas. Mas como fica o direito alheio, honra e imagem quanto aos excessos e exposição desmedida?
Assim como o Estado garante legítimo exercício dos direitos constitucionais, também assegura a efetiva responsabilização dos usuários quanto aos excessos cometidos. Os direitos fundamentais são essenciais e garantidores para o desenvolvimento da democracia na sociedade; entretanto, não são absolutos, sendo passíveis de restrição com base no juízo da ponderação.
O caráter restritivo é medida excepcional e aplicável quando direito fundamental diverso, sofre ilegítima afronta por outro de mesma natureza, ocorrência frequente em meio virtual; uma postagem ofensiva sobre fato ou crítica, de maneira desproporcional, além de afrontar o direito a imagem e privacidade alheia, coexiste responsabilidade de caráter civil e criminal, além de incorrer em ilícito penal. O mesmo artigo 5º da Constituição Federal, garante a proteção da intimidade e sua extensão, conforme:
“X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
A responsabilização na esfera criminal, decorre justamente dos excessos geradores das três espécies criminais de afronta a honra, considerando-se a injúria (ofensa a honra subjetiva e/ou objetiva) e difamação (palavras ofensivas propriamente ditas) como as mais frequentes em rede, ipsis litteris do Código Penal:
Calúnia
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.
Difamação
Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
Em âmbito civil, os direitos de personalidade são garantidos tanto pela Constituição, como pelo Código Civil, gerando dever de indenizar a parte ultrajada quanto aos excessos digitais cometidos:
“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
[...]
Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
[...]
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Visando a adequação jurídica ao mundo digital, o Marco Civil da internet – Lei nº 12.965/2014 regulamentou o uso da internet em âmbito nacional, tendo por base direitos e deveres constitucionais e consequentemente parte procedimental quando da ocorrência da afronta à imagem e honra:
“Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
Sendo o anonimato matéria vedada pelo dispositivo constitucional, o falso manto da ocultação digital não encontra amparo legal, uma vez que a própria plataforma onde fora veiculada o fato, mediante prévia ordem judicial, disponibiliza o IP (endereço eletrônico) do suposto agente, garantindo-se a efetiva responsabilização legal.
Fato notório que a 4ª revolução industrial fora agente causador de profundas mudanças sociais, sobretudo, jurídicas. O Direito como garantidor de uma sociedade democrática, acompanha e adapta seus dispositivos jurídicos afim de garantir o convívio pacífico entre os membros da sociedade; de certo, o caráter modular dos direitos fundamentais, também se adaptaram a esta nova realidade. A premissa popular “seu direito termina, quando começa o do outro” nunca foi tão verdadeira, sobretudo na realidade virtual.
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