Ontem finalizei o dia me questionando se há vida inteligente em parte da imprensa. Sei que existe muita gente competente, mas foi exatamente este o sentimento, ao ver a forma como alguns veículos de comunicação repercutiram a fatalidade ocorrida na madrugada passada após uma lipoaspiração, em um hospital de Belo Horizonte, sem que haja qualquer indício de culpa do cirurgião.
Os exames da paciente comprovaram suas plenas condições de saúde para se submeter à cirurgia, e ela foi devidamente informada sobre os riscos, consentindo com eles. A cirurgia transcorreu com normalidade, e só 12 horas depois a paciente apresentou instabilidade, sendo imediatamente atendida equipe do hospital e pelo próprio cirurgião. Infelizmente ocorreu o óbito, possivelmente por Tromboembolismo Pulmonar (TEP), uma complicação amplamente prevista na literatura médica para cirurgias do gênero, sem qualquer conexão com erro médico, e que fez parte do consentimento da paciente (que era técnica de enfermagem, plenamente capaz de compreender os riscos).
Ainda assim, contra toda a lógica técnica e científica (e para surpresa de absolutamente ninguém) parte da imprensa elegeu imediatamente como responsável pelo óbito, o cirurgião, que é devidamente qualificado para o procedimento, especialista em cirurgia geral, em cirurgia plástica e membro do CRM-MG e da SBCP-MG.
Algumas horas após o óbito, a primeira notícia divulgada sobre o assunto já trouxe informações totalmente equivocadas, apontando a existência de uma condição preexistente como provável causa do óbito. Demoraram horas para a corrigir, e até lá, o médico foi vítima de uma onda de ataques de internautas enfurecidos, que foram induzidos a considerá-lo negligente pela equivocada reportagem.
Vários repórteres me procuraram para comentar o assunto. Os recebi ainda pela manhã, e após analisar os fatos, me comprometi a conceder uma entrevista dentro dos limites do que era sabido sobre o caso. Após iniciada a entrevista, surgiram perguntas relacionando o caso a assuntos que lhe são estranhos, com o claro objetivo sensacionalista. Encerrei a entrevista e condicionei meu consentimento ao uso leal do conteúdo. Como esperado, preferiram não o utilizar.
Outra manchete publicada ontem, apontava o cirurgião como “processado e procurado”. Ao ler a íntegra da matéria, entendi que ele é processado, porque ele é parte em um processo judicial (assim como a maioria das pessoas) e procurado, porque a citação do processo ainda não foi entregue (mesmo se tratando de uma pessoa que passa os dias e as noites em sua clínica ou no hospital, facilmente localizável). Meu Deus, o homem é procurado pelo carteiro! Mas o uso malicioso das palavras, claramente induz ao equívoco de entender se tratar de um fugitivo da justiça. Em outra reportagem inacreditável, a afirmação do advogado do hospital, de que o nosocômio não teria qualquer responsabilidade por somente alugar a estrutura, foi transformada em uma acusação: o hospital disse que não é o responsável, portanto, disse que o médico é.
Sabemos que a língua portuguesa é uma megera, mas isso não são erros, são distorções totalmente conscientes, com o claro objetivo de induzir a erro e gerar desinformação, as famosas fake news. Esta é a trágica situação em que o mal jornalismo coloca as pessoas envolvidas em qualquer fatalidade, jogando a sociedade contra elas e causando um verdadeiro e imediato linchamento social, sem qualquer possibilidade de defesa. No caso das cirurgias plásticas, o médico é imediatamente apontado como carrasco, e o paciente como alguém que ariscou sua vida, por mera vaidade. Além de todo o sofrimento dos familiares por perder o ente querido, e do cirurgião pela perda do paciente, há pessoas que distorcem os fatos e agravam o sofrimento alheio, para ganhar cliques e likes. Algo inacreditável.
Um dos repórteres com quem falei ontem afirmou: não é a primeira complicação grave deste cirurgião, existe uma anterior! Ora, o cirurgião já realizou mais de 3 mil cirurgias em sua carreira. 2 complicações graves representariam um percentual de meros 0,00066%. E quando falamos de complicações em lipoaspiração, há estudos que indicam um índice de intercorrências acima de 33%, e outros que apontam a ocorrência de TEP (hipótese considerada para o caso) em 14,77% dos casos de complicações.
Como qualquer ser humano, o médico goza da presunção de inocência, sobretudo em casos em que não há qualquer indício de culpa. Nem todas os eventos adversos são evitáveis, e imputáveis ao médico. A medicina não é uma ciência exata, e o médico nunca terá total domínio sobre o desfecho de uma cirurgia. Sua obrigação é utilizar a melhor técnica visando o melhor resultado possível, sem qualquer garantia.
A cirurgia plástica envolve muitos riscos, mesmo no caso de pacientes jovens e saudáveis, e em que pese a adoção de todas as medidas de precaução de complicações e intercorrências. O papel do cirurgião é informar o paciente acerca dos riscos, e obter seu consentimento. Caso isto ocorra adequadamente, o paciente assume todos os riscos de um eventual mal resultado (exceto caso este decorra de culpa do médico). Eventos adversos não evitáveis podem ocorrer em qualquer procedimento médico invasivo (e até os não invasivos), e não são sinônimo de erro médico. O erro deve ser provado, e nunca presumido.
Obviamente, existem muitos casos nos quais médicos erram causando danos aos pacientes, assim como há casos de pacientes que negligenciam as orientações dos médicos e agravam o próprio estado de saúde. Mas ao que tudo indica, nenhuma destas condutas ocorreu no presente caso, mas sim uma triste fatalidade, na qual o cirurgião é tão vítima quanto a paciente (em proporções obviamente diversas).
Casos como o presente precisam ser abordados pela imprensa de forma isenta e profissional, livre do preconceito e do estigma com o qual perseguem os médicos, sobretudo cirurgiões plásticos. O assassinato de reputações que ocorre sempre que há uma fatalidade, mesmo sem qualquer indicativo de culpa do médico, é absurdo. O médico, que via de regra é tão vítima quanto o paciente, é condenado sumariamente pela imprensa e apedrejado nas redes sociais, a verdadeira praça pública da era moderna. Sem possibilidade de defesa e com requintes de crueldade, como na idade média.
Não há nada que indique a culpa do médico, no caso em questão. A certeza só existirá ao final das investigações, e após o devido processo legal. Condená-lo sumariamente é absurdo. Se você apoia esta prática, reflita, pois amanhã o acusado de algo pode ser você.
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