Não é incomum as sociedades vivenciarem momentos de exploração sensacionalista das situações criminais, com geração de pânico em grande parte da população, a partir do desenvolvimento de lógica baseada na luta do “bem” contra o “mal”.
Na verdade, os grandes momentos de carnificina na história humana, são momentos em que parte importante de uma população imaginou-se na condição de bem em estado puro, visualizando, com isso, os diferentes, os que pensavam de outra forma, como manifestação do próprio mal.
A atenção a essa constante tendência de que parte da população se considere moralmente superior ao restante e, então, busque a imposição de seus conceitos e valores, produziu o desenvolvimento de estrutura científica com o objetivo de conter esse poder de massacrar seres humanos, por intermédio da punição exercida, pelos autoproclamados bons, contra os, apontados, maus. O nome dessa estrutura científica é Direito Penal.
A dogmática jurídico-penal, visa frear a irracionalidade extrema, estabelecendo limites inafastáveis para o exercício do poder punitivo, por isso, não pode ser funcionalizada, ou seja, a simples proclamação de objetivos retoricamente nobres, em nada atua para franquear espaço para o descontrole punitivo funcionalizando o Direito Penal revelando a abertura de uma “caixa de Pandora” habilitadora dos massacres.
Na mitologia grega há o mito de Pandora a quem os Deuses do Olimpo conferem todas as qualidades, como beleza e inteligência, porém também lhe entregam uma caixa, com a recomendação de que nunca seja aberta. Pandora é então enviada à terra, mas, não sabe, na caixa que lhe foi entregue estão guardadas todas as desgraças do mundo, como ódio e discórdia. Não resistindo à curiosidade Pandora abre a caixa, liberando todos os males nela contidos.
A funcionalização do Direito Penal, tal qual a caixa de pandora aberta, libera imprevisíveis e nefastas consequências, pois, vai produzindo à corrosão de todos os mecanismos de contenção do poder punitivo, o que, em última análise, significa, destroçar a ideia de solucionar de forma racional os conflitos existentes em sociedade, habilitando mecanismos contrários aos avanços civilizatórios, em nome de um objetivo apontado como relevante.
A lava-jato abriu a “caixa de pandora” no Brasil, a partir de uma lógica discursiva de enfrentamento à corrupção, a qual, na realidade, apenas foi uma maneira de replicar a estratégia do “bem” contra o “mal”, transformando instituições do Estado em mecanismos para o ataque aos desafetos e aos que pensassem distinto daqueles que controlavam as estruturas do poder punitivo.
O discurso de combate à corrupção atende muito bem à estrutura argumentativa que deve ser produzida, baseada em um elemento não palpável, capaz de gerar repulsa coletiva, cuja prática pode ser atribuída a qualquer pessoa.
A partir disso, a seletividade é facilitada, pois, se qualquer pessoa pode ter contra si atribuída a prática do ato tratado, simples selecionar desafetos e lhes imputar o comportamento a ser combatido. Como esse comportamento está inserido em um campo abstrato e genérico, qualquer argumentação justifica as ações contra a pessoa selecionada e a repulsa coletiva, faz com que qualquer discurso crítico seja silenciado.
A repulsa coletiva gerada, além de bloquear qualquer espaço ao discurso crítico, atua produzindo o emparedamento das instâncias decisórias. Não por outra razão, os processos da lava-jato, tem como questão essencial o emparedamento das instâncias decisórias, fazendo os órgãos recursais replicarem as decisões dos graus ordinários, gerando a falsa sensação de que como vários Magistrados decidiram da mesma forma, a pessoa acusada somente pode ser culpada.
A partir dessa percepção, a lava-jato para conseguir produzir suas ações, passa a ter no Direito Penal real um inimigo de primeira hora, passando a atacar suas estruturas dogmáticas e, esse passo, é fundamental ter em conta que uma das questões vitais para a preservação do Estado Democrático de Direito é a não admissão de fissuras a produzir aceitação de afastamento da estrutura dogmático-penal.
A produção de exceções, em relação às quais é estabelecido discurso no sentido de que a situação justifica algumas flexibilizações, não é nenhuma saída genial inovadora, nada mais constituindo que a estratégia empregada usualmente para corroer as estruturas democráticas, estabelecendo prevalência dos conteúdos autoritários em determinado Estado.
A propósito, é relevante ter claro que as estruturas autoritárias de poder, sob o ponto de vista retórico, são desenvolvidas, a partir do anúncio de exceções.
Assentada a exceção, etapa contínua é a ampliação gradual, até a sua conversão em regra, passando a ser exceção justamente a preservação dos direitos e garantias, os quais restam, então, salvaguardados, somente em favor dos próprios controladores do poder punitivo ou seus protegidos.
Assim, é produzida a funcionalização penal, e deixa de ser fundamental a limitação e diminuição da irracionalidade do poder punitivo, passando a ser eixo central a liberação total dele, para o combate daquilo que se anuncia como mal, submetido apenas ao controle subjetivo de quem dispõe da capacidade de exercê-lo.
Dentro desse cenário, verificável claramente uma emergência no resgate do Direito Penal. Os meios acadêmicos precisam voltar a pensá-lo com cientificidade, os juízes a julgar com cientificidade, enfim a lógica da funcionalidade precisa ser combatida em todos os setores.
O ensino das Faculdades de Direito com objetivo de preparar para aprovação na prova da Ordem dos Advogados do Brasil ou em algum concurso público não serve ao futuro do País que, para salvar a própria democracia, precisa de mais ciência nos espaços acadêmicos, acrescida do resgate da formação humanista.
Igualmente, o sistema de justiça tem papel fundamental na plena reestruturação democrática, impedindo a manutenção da lógica funcional, pela qual punir é objetivo vetor, sendo os direitos e garantias passíveis de exceções e contorcionismos, por pura construção retórica.
Em definitivo, para combater a falsa emergência gerada pelo discurso anticorrupção, há uma real necessidade de resgate da formação universitária científico-humanitária e o fortalecimento da jurisprudência penal constituída em bases científica e preservadora das estruturas dogmáticas, permitindo que o sistema de justiça atue em normalidade democrática, buscando a racionalização dos conflitos e a preservação permanente dos direitos e garantias fundamentais.
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