O Rio de Janeiro vive há muitas décadas, em especial em certas zonas da cidade, um embate com o crime organizado, o narcotráfico, que não configura qualquer novidade. No fim dos anos 80 surgiu o termo milícia trazendo o mote de proteger o cidadão do narcotráfico, proibindo inclusive o consumo de entorpecentes, como uma forma de Estado paralelo onde o Estado constituído (oficial) não se fazia presente.
A partir daí, a milícia composta por policiais da ativa, da reserva, militares da reserva, bombeiros, agentes penitenciários e com o tempo políticos, se organizaram e passaram a atacar o narcotráfico tomando para si comunidades. Com a promessa de manterem a "paz" passaram a se fazer de estado conbrando "taxas de segurança" das residências e dos comércios da região, oferecendo TVs por assinatura, botijões de gás, luz (gato), tudo com a obrigação de exclusividade, ou seja, os cidadãos obrigados à só com eles contratarem. Enfim, forjou-se um estado paralelo. Como ponto histórico, o embrião da criação da milícia deu-se na década de 60 e foi até os anos 2000 com a chamada "Polícia Mineira", que atuava com extrema violência à margem do Estado legal com o objetivo de "proteção" do cidadão do comando do tráfico onde o Estado era ineficiente. Já naquele momento era cobrada dos cidadãos da região uma "taxa de proteção".
De uns anos para cá, após mais de uma década de embates entre milicianos e traficantes pelo domínio de territórios onde o Estado não se faz presente, uma nova configuração surgiu, a narcomilícia.
A narcomilícia nada mais é do que a união da milícia (paramilitares - ao arrepio da legalidade) com o tráfico para o enfrentamento de inimigos comuns. Esta nova configuração surgida na Zona Oeste do Rio utiliza do "modus operandi" da milícia com a cobrança de todos os tipos de "taxas" do cidadão da região tomada, mas com a permissão o tráfico de drogas, da compra e venda de entorpecentes. Mais fortes passaram a urbanizar territórios construindo prédios para venda, entraram para política e desta forma fazem parte do Estado constituído para além do paralelo. Hoje controlam a Zona Oeste, Zona Norte e Baixada Fluminense quase que integralmente.
A Zona Sul do Rio, área nobre do estado, a milícia ainda não entrou, o narcotráfico é a força criminosa que monopoliza, particularmente o Comando Vermelho. Nesta Zona da cidade o Estado policial legal, a segurança pública do Rio de Janeiro, ainda possui certo controle nas ruas, no asfalto, e faz vistas grossas para o tráfico permanecer atuando nas comunidades (favelas) com o compromisso de não se fazerem grandes estardalhaços. Há uma espécie de "acordo" em que o Estado não atrapalha o tráfico nas favelas das Zona Sul e do Centro e o tráfico atua sem trazer terror para no asfalto dessas localidades. Claro, que nem sempre esse "acordo de cavalheiros" funciona, como consabido negociar com o crime é tarefa árdua que engloba favores mútuos nem sempre respeitados, e quando não respeitados "tiros" são ouvidos e as ruas ameaçadas.
O art. 142 da Constituição Federal estabelece que as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, e por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Há desta feita, previsão constitucional para que as Forças Armadas eventualmente sejam empregadas na segurança pública, mas, importante, somente em casos excepcionais e de forma temporária, quando as forças policiais não lograram restabelecer a ordem e a paz social violadas.
Essa excepcionalidade não deve ser vista como algo sem importância. A função das Forças Armadas não é a garantia da segurança pública, nem treinada é para tal mister. Seu melhor funcionamento quando falamos de um "guerra" urbana como acontece em certas zonas do Rio de Janeiro é a ocupação das fronteiras do estado, portos e rodovias, funcionando com efetividade quando asfixia a entrada de drogas e armas no estado, trabalhando de maneira coordenada com as inteligência juntos às forças policiais estaduais e federais atuantes. Há um porém, quando há esse processo de asfixia ecomômica no crime organizado, o crime desce para o asfalto, pois o "acordo de respeito mútuo" é quebrado.
Reiterando, que não é função das Forças Armadas atuar na segurança pública, mas pode sim colaborar com as forças policiais quando estiver ameaçada. Juridicamente correto falarmos de soberania na relações entre países, Estados independentes, mas flexibilizando o termos, quando o estado perde parte da "soberania" do seu território para o crime organizado, embora não seja polícia, a Constituição permite que as Forças Armadas atuem com o fulcro de restabelecer a ordem.
Em uma narrativa clara, trata-se um problema sem solução duradoura. Certos territórios do Rio dificilmente deixarão seu estado de guerra (com períodos mais barulhentos e outros mais silenciosos), pois o Estado não se faz presente e o crime se autodeclarou proprietário. Haverá momentos cíclicos, onde essa guerra estará mais ou menos violenta no asfalto, e quando estiver como hoje, com cenas semelhantes ao que vemos na guerra entre Israel e Palestina, a mídia se ocupará de noticiar.
Com parte do Estado constituído cooptado pelo crime (sentido amplo), com a polícia sem efetivo minimamente suficiente para asfixiar organizações criminosas de maneita eferiva que adentraram e formam parcela do poder que legisla, executa e julga, o Rio viverá de momentos de paz "para inglês ver" no asfalto quando o crime estiver acordado com as forças de poder (também em sentido amplo) e não importunado; e momentos explícitos de guerra, quando uma das partes se sentir atingida e o "acordo de trégua" rompido.
Finalizando, o que acontece no Rio neste momento é caso de intervenção federal sim, pois indubitável resta o comprometimento da ordem pública na forma do art. 34 c/c art. 36, parágrafo primeiro da CRFB, que "especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor". Em verdade a intervenção federal tem um viés político muito intenso e acaba por evitada até às últimas possibilidades de um desfecho diferente.
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