É um desmascaro
Singelo grito
O rei está nu, mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nu.
(O estrangeiro – Caetano Veloso)[1]
Narra o clássico conto de Hans Christian Andersen[2] que havia um rei muito vaidoso, cujo único interesse era desfilar com roupas belas, luxuosas e caras. Certo dia, dois pilantras chegaram ao Reino e ouviram falar da fraqueza do rei. Apressaram-se a se apresentar como dois especialíssimos alfaiates que confeccionavam roupas únicas: o tecido não podia ser visto por pessoas tolas ou que ocupassem um cargo sem merecê-lo.
O rei tratou de encomendar logo seus novos trajes: “Agora sim eu vou desmascarar os tolos e incompetentes desta corte”, pensou o monarca. Logo os trapaceiros se puseram a fingir que estavam confeccionando tais roupas e, quando estas ficaram “prontas”, o rei rapidamente pôs-se a “vesti-las”. A essa altura, toda a cidade já aguardava para avistar o rei em seus novos trajes tão especiais.
E o rei, bem, justo o rei não poderia dizer que nada via, pois, no fim das contas, quem seria mais sábio ou competente do que ele? Pôs-se a desfilar com as “roupas” pela cidade. O primeiro-ministro, os aristocratas, os guardas, todos bradavam a elegância de suas novas roupas. “Que luxo!”, exclamavam os súditos nas ruas. Afinal, ninguém se julga tolo ou muito menos incompetente. Tudo corria bem até que uma criança começa a rir insistentemente: “O que tem tanta graça, garoto?”. De repente, um grito do infante abriu a visão cognitiva de todos: “O rei está nu!”.
1.O rei está nu
Noutro artigo discorremos sobre os desafios que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA) distribui “a todos: acadêmicos, administradores e servidores públicos, juristas, agentes do mercado, agentes dos órgãos de controle”, que “consiste no esforço de procurar esmiuçar e colocar em prática as potencialidades hermenêuticas do seu texto, de modo a se promover a inovação, a eficiência e a eficácia”. [3]
Nós, afiliados ao sistema jurídico romano-germânico, sempre esperamos da lei, do diploma legal, a solução para todos os problemas. Não foi diferente com a NLLCA. É de conhecimento geral que tínhamos até então um regime legal de licitações e contratos (Lei 8.666/1993) obsoleto, arcaico, que desenhava um arquétipo jurídico que impunha, por vezes, o atraso ao serviço público. Contudo, não eram muitos os que se preocupavam com tal fato, afinal, “uma nova lei está por vir”. E ela veio, mas, pasmem-se, não revolveu os problemas do mundo – nem das licitações públicas brasileiras.
É verdade que muitos avanços do ponto de vista da governança e da inovação foram promovidos sobretudo pelas famosas instruções normativas do Ministério do Planejamento (e todos os nomes que o órgão teve desde 1993), mas é difícil colocar “remendo novo em vestes velhas”. Além disso, as instruções tinham, em regra, observância obrigatória apenas ao Poder Executivo da União, deixando de fora os demais Poderes e unidades federativas. Tais experiências, contudo, serviram de esboço para muitos dos avanços promovidos pela NLLCA. Mas precisamos de mais.
Se o nobre leitor chegou até aqui, naturalmente está se perguntando se este autor não vai comentar a respeito do conto e da música acima transcritos. Vamos a eles, ou melhor, desafio-o a encontrar o nexo entre tais referências e os trechos legais abaixo.
Decreto nº 2.926/1862 (Império):
Art. 1º Logo que o Governo resolva mandar fazer por contracto qualquer fornecimento, construccão ou concertos de obras cujas despezas corrão por conta do Ministerio da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, o Presidente da junta, perante a qual tiver de proceder-se á arrematação, fará publicar annuncios, convidando concurrentes, e fixará, segundo a importancia da mesma arrematação, o prazo de quinze dias a seis mezes para a apresentação das propostas.[4]
Decreto nº 4.536/1922 (República Velha):
Art. 50. A concurrencia publica far-se-á por meio de publicação no Diario Official, ou nos jornaes officiaes dos Estados, das condições a serem estipuladas e com a indicação das autoridades encarregadas da adjudicação, do dia, hora e logar desta.
Art. 51. § 3º As propostas serão entregues lacradas, abertas e lidas deante de todos os concurrentes que se apresentarem para assistir a essa formalidade. Cada um rubricará a de todos os outros e antes de qualquer decisão serão publicadas na integra.[5]
Decreto-Lei nº 200/1967 (Regime Militar):
Art. 126. As compras, obras e serviços efetuar-se-ão com estrita observância do princípio da licitação.
Art. 129. A publicidade das licitações será assegurada
I - No caso de concorrência, mediante publicação, em órgão oficial e na imprensa diária, com antecedência mínima de trinta dias, de notícia resumida de sua abertura, com indicação do local em que os interessados poderão obter o edital e tôdas as informações necessárias.
II - No caso de tomada de preços, mediante afixação de edital, com antecedência mínima de quinze dias, em local acessível aos interessados e comunicação às entidades de classe, que os representem.
Parágrafo único. A Administração poderá utilizar outros meios de informação ao seu alcance para maior divulgação das licitações, com o objetivo de ampliar a área de competição.[6]
Lei nº 8.666/1993 (Nova República):
Art. 14. Nenhuma compra será feita sem a adequada caracterização de seu objeto e indicação dos recursos orçamentários para seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e responsabilidade de quem lhe tiver dado causa.
Art. 15. § 7º Nas compras deverão ser observadas, ainda:
I - a especificação completa do bem a ser adquirido sem indicação de marca;
II - a definição das unidades e das quantidades a serem adquiridas em função do consumo e utilização prováveis, cuja estimativa será obtida, sempre que possível, mediante adequadas técnicas quantitativas de estimação;
III - as condições de guarda e armazenamento que não permitam a deterioração do material.
Art. 21. Os avisos contendo os resumos dos editais das concorrências e tomadas de preços, embora realizadas no local da repartição interessada, deverão ser publicados com antecedência, durante 3 (três) dias consecutivos, obrigatória e contemporaneamente: [...][7]
Lei nº 14.133/2023 (NLLCA):
Art. 40. § 1º O termo de referência deverá conter os elementos previstos no inciso XXIII do caput do art. 6º desta Lei, além das seguintes informações:
I - especificação do produto, preferencialmente conforme catálogo eletrônico de padronização, observados os requisitos de qualidade, rendimento, compatibilidade, durabilidade e segurança;
II - indicação dos locais de entrega dos produtos e das regras para recebimentos provisório e definitivo, quando for o caso;
III - especificação da garantia exigida e das condições de manutenção e assistência técnica, quando for o caso.
Art. 54. A publicidade do edital de licitação será realizada mediante divulgação e manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).
§ 1º Sem prejuízo do disposto no caput, é obrigatória a publicação de extrato do edital no Diário Oficial da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município, ou, no caso de consórcio público, do ente de maior nível entre eles, bem como em jornal diário de grande circulação.[8]
O que todos esses trechos – do Brasil Império à NLLCA – têm em comum? O modelo direcional de contratação pública: a Administração publica um edital ou instrumento qualquer de chamamento descrevendo minunciosamente o que pretende adquirir e os fornecedores enviam propostas dos seus produtos.
O Império publicava annuncios, a República Velha o fazia por meio de Diario Official ou jornaes officiaes, o Regime Militar, no órgão oficial e na imprensa diária, a Nova República realizava a publicação dos resumos dos editais na imprensa oficial e em jornal de grande circulação (a Lei do Pregão não mudou, nesse aspecto, muita coisa), e enviava suas cartas-convite. Por fim, a NLLCA determina a publicação de editais no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) e... em diário oficial e jornal de grande circulação.
Mas você, nobre leitor, pode se insurgir lembrando das dispensas de licitação em razão do valor. Nesse particular, tivemos a regulamentação do Executivo federal transformando-as em um mini-pregão. Tem até nome próprio: Dispensa Eletrônica. E a notícia foi dando como se isso fosse uma coisa boa! Vejamos trecho da Instrução Normativa Seges/ME nº 67/2021:
Art. 6º O órgão ou entidade deverá inserir no sistema as seguintes informações para a realização do procedimento de contratação:
I - a especificação do objeto a ser adquirido ou contratado;
II - as quantidades e o preço estimado de cada item, nos termos do disposto no inciso II do art. 5º, observada a respectiva unidade de fornecimento;
III - o local e o prazo de entrega do bem, prestação do serviço ou realização da obra;
IV - o intervalo mínimo de diferença de valores ou de percentuais entre os lances, que incidirá tanto em relação aos lances intermediários quanto em relação ao lance que cobrir a melhor oferta;
V - a observância das disposições previstas na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.
VI - as condições da contratação e as sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
VII - a data e o horário de sua realização, respeitado o horário comercial, e o endereço eletrônico onde ocorrerá o procedimento.
Parágrafo único. Em todas as hipóteses estabelecidas no art. 4º, o prazo fixado para abertura do procedimento e envio de lances, de que trata o Capítulo III, não será inferior a 3 (três) dias úteis, contados da data de divulgação do aviso de contratação direta.[9]
É com a devida vênia, e prestando o mais absoluto respeito e gratidão aos responsáveis pela implantação narrada – e reconhecendo os incontáveis desafios pelos quais passa o servidor público que tente inovar, bem como os ganhos em relação às ferramentas anteriores – que tecemos as críticas a seguir. Mas é como se tivesse sido realizado um investimento pesado em um aplicativo para utilização de táxi na era... do uber, 99, etc. Uma lei nova, um regulamento novo, um sistema novo para um modelo velho.
E o que tudo isso tem em comum? O aspecto direcional: a Administração publica um ato de chamamento com a descrição pormenorizada do que pretende adquirir, após um custoso e laborioso procedimento preparatório, para comprar bens padronizados. É a Administração quem descreve o objeto e direciona sua vontade de contratar ao mercado, que responde por meio de propostas. Aí começa a miscelânia de problemas que já conhecemos: é fornecedor tentando encaixar à força produto ruim à especificação, é a Administração descobrindo que não especificou com a precisão adequada o objeto... tudo isso para comprar bens simplórios.
E aqui o leitor já percebeu que nos referimos apenas às compras de bens comuns adquiridos em pequenas ou médias quantidades, não abarcando serviços, obras, bens especiais ou mesmos grandes compras de bens comuns. Não é pertinente um paralelo a todo instante com a iniciativa privada, mas, nesse caso, é necessário: qual empresa faria isso? Existe um ganho do ponto de vista da concretização de direitos fundamentais ou de execução de políticas públicas que justifique isso?
Alguém poderia perquirir: qual o problema desse (custoso) modelo? A Administração Pública existe para custar pouco? Não! A Administração existe para concretizar direitos fundamentais.[10] E tal modelo traz prejuízos diretos: a utilização de servidores públicos que poderiam ser alocados em atividades-fim a implementar tais direitos, a utilização de recursos financeiros que igualmente poderiam ser alocados no atendimento direto à população. E o principal: a ineficiência dos serviços públicos. É máquina de ressonância magnética parada aguardando o procedimento para a compra de uma peça, é escola sem funcionar porque não tem bebedouro de água, e a cornucópia de exemplos é infindável.
Enfim, todos nos acostumamos com o modelo até então adotado, inconscientemente fingimos ver os benefícios de tal desenho direcional, mas o fato é que, em se tratando de compras públicas de bens comuns, sobretudo em quantidades menores... o rei está nu!
1.Marketplace público: entre dificuldades e possibilidades
Mas, afinal, é preciso indagar como que nós, as pessoas naturais e também as empresas, na década de 20 do século XXI, costumamos comprar produtos (bens comuns). A resposta é óbvia: em marketplaces. Em termos simples, marketplace é “um canal voltado para a compra e venda de produtos”[11], um “site que reúne diversos vendedores com diferentes ofertas. Dessa forma, o consumidor tem acesso a uma grande variedade de produtos e condições”[12].
Basicamente, o marketplace é uma espécie de mercadão virtual, um sítio eletrônico em que uma empresa cadastra diversas outras e lhes proporciona um ambiente virtual e padronizado para que essas empresas cadastradas possam oferecer os seus produtos. Os “mercadões virtuais” mais sofisticados têm poderosas ferramentas de indexação com as quais um algoritmo compara as ofertas de um mesmo produto e sugere ao cliente a melhor opção de preço, prazo de entrega, valor de frete etc.
Outros serviços agregados podem ser oferecidos pela empresa que administra o marketplace, como garantia de devolução de valores em caso de problemas com a entrega do produto, assinaturas que proporcionam ao cliente gratuidade de frete de uma gama de produtos mediante o pagamento de um valor fixo mensal, uma intrincada (e às vezes polêmica) tecitura logística de entregas, e uma miríade de outras possibilidades.
Então, agora que descobrimos que o rei está nu, no sentido de que resta claro o descompasso do modelo de contratações públicas de bens comuns em relação à atualidade, o leitor deve estar se perguntando: por que não vestimos o rei? Sem metáforas: por que não fazemos (fazem) um marketplace público? Aquele leitor mais propositivo pode estar se perguntando: o que falta para termos um marketplace público? Este autor vai tentar estabelecer algumas respostas.
A primeira delas é óbvia e vem sendo trabalhada desde a primeira linha deste artigo: porque o rei está nu, e são muitos aqueles que não enxergam ou não querem ver que o rei está nu. Para boa parte da Administração Pública, o marketplace público parece ser uma realidade absolutamente distante. Veja-se pela dificuldade de implementação da NLLCA, sobretudo em municípios menores, mas também em diversos órgãos e entidades de todos os entes subnacionais.
É inconteste “a enorme discrepância entre as unidades federativas em seus níveis federal, estadual e municipal”[13]. Para além da distinção “dos aparatos financeiros e de pessoal”[14], os entes diferem no nível de maturação das compras públicas:
“[...] enquanto a União, principalmente o Executivo federal, amadureceu bastante na temática das contratações públicas através de suas instruções normativas, sistemas informatizados e outros instrumentos, há municípios que detêm praticamente o mesmo instrumental da entrada em vigor da Lei nº 8.666/1993”.[15]
Contudo, entendemos que o maior entrave para o marketplace público não é a falta de percepção quanto à sua necessidade ou mesmo a assimetria entre os entes subnacionais. Há quem imagine que o problema seja técnico: o desafio de se criar um sítio eletrônico que viabilize as operações. Não é.
O difícil, o raro, o valioso é a criação do novo. Certamente a criação dos primeiros marketplaces exigiu genialidade e percepção ímpar aos seus criadores. Mas a construção de tecnologia da informação (TI) desse tipo de site não é, há muito, novidade. A falta de conhecimento com profundidade quanto a determinada temática costuma levar o tomador de decisões a supervalorizar a parte errada do trabalho. O fato é que, hoje, qualquer empresa especializada nessa área da TI realizaria com certa tranquilidade esse empreendimento.
As reais dificuldades de implementação do marketplace público – abstraindo por ora de outras considerações para além de questões meramente técnicas – são as mesmas de sempre na Administração Pública: juridicidade e processo de trabalho.
Por juridicidade, entenda a conformação com o sistema jurídico. O princípio da juricidade administrativa complementa e dá novas cores ao conhecido princípio da legalidade administrativa. Caso o leitor tenha interesse em aprofundar esse assunto, o remetemos a outra obra[16] de nossa autoria. Para o escopo deste artigo, basta-nos a afirmação de que, nesta quadra histórica do direito administrativo brasileiro, a falta de previsão legal não é, necessariamente, empecilho para que a Administração Pública realize determinada inovação.
Mas se a ausência de previsão legal não é empecilho, a sua falta exige certa “engenharia jurídica” e algum diálogo institucional[17] a fim de viabilizar ideias inovadoras. É nesse ponto que reside a dificuldade. É aí o locus no qual está a necessidade do difícil, do raro, do valioso.
Essa observação pode parecer contraditória com os comentários iniciais deste artigo quanto ao nosso hábito de esperar a solução de todos os problemas com a edição de um diploma legal. Mas essa contradição é apenas aparente. Primeiro porque a observação feita nas primeiras linhas do presente texto se referia à expectativa de que uma lei, por si só, pudesse resolver os problemas da gestão pública. Ademais, é inconteste que o “melhor dos mundos” do ponto de vista da segurança jurídica para a execução de algo na Administração Pública é, sem dúvidas, a sua expressa autorização legal. Portanto, estamos nos referindo à edição de uma lei somada à estruturação de algo novo. E nesse ponto podemos nos servir de dois exemplos antagônicos.
Vários institutos inovadores das compras públicas foram previstos primeiro em ato normativo infralegal e somente depois acrescentados à legislação ordinária. De igual modo, muitos dos instrumentos previstos em lei apenas em 2021 pela NLLCA já tinham sido regulamentados através de instruções normativas do Ministério do Planejamento, como já citado, ou mesmo tinham sido montados por construção da jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU).
Na direção temporal oposta, a NLLCA determinou a criação de uma série de instrumentos a serem incorporados pelo Portal Nacional das Contratações Públicas (PNCP) sem praticamente nenhuma das ferramentas tecnológicas estar pronta, o que causou (e ainda causa) uma ansiedade na Administração em geral e uma “correria” no então Ministério da Economia para saldar todas as promessas feitas pela NLLCA.[18]
Desse modo, a solução jurídica que daria maior segurança jurídica é, obviamente, a previsão do marketplace público em lei ordinária. O que poucos sabem é que já tivemos a primeira tentativa. Na tramitação da Medida Provisória nº 1.167/2023, que por primeiro prorrogou a vigência da Lei nº 8.666/1993, foi apresentada a Emenda 13, que criava o “Sistema de Compra Instantânea (Cix)”, o que na prática viabilizaria o marketplace.
A justificação da Emenda tece severas críticas à eficiência do pregão eletrônico (o que diriam do “mini-pregão”, a nova Dispensa Eletrônica?). Vale a leitura[19]. Para o leitor mais apressado, transcrevemos o ponto fulcral:
A nova Lei de Licitações pouco avançou no que se refere a modernização, trazendo modelos licitatórios repletos de ritos rígidos de controle e repetindo a lógica burocrática e formalista, sem incluir as inovações tecnológicas e sociais que poderiam evitá-los.[20]
Noutro giro, sustentamos que há alternativas de viabilização do marketplace público sem a necessidade de edição de lei ordinária, a partir das normas já postas pela NLLCA. Das diversas possíveis, este autor vai destacar duas: o credenciamento e o sistema de registro de preços (SRP).
A utilização do instrumento auxiliar “credenciamento” é possivelmente a mais óbvia das alternativas. Não à toa, o próprio texto da Emenda nº 13 à MP nº 1.167/2023 denominava o CIX como um sistema que se destinaria “à aquisição, por meio de credenciamento em mercado flúido [sic], de bens padronizados e previamente selecionados pela Administração Pública...”.
Ora, se trata de um modo de utilização de um instrumento já previsto em Lei, é porque é juridicamente possível já com base na sistemática atual. A dificuldade seria encaixar as compras do marketplace público no conceito de mercado fluido. É plausível, apesar de originalmente o legislador ter pensado o inciso III do art. 79 da NLLCA para outras situações. Contudo, como se diz no jargão de Brasília: “tem que combinar com os russos” (no caso, os órgãos de controle). Na verdade, é relativamente simples a execução, apesar da complexidade do desenho.
Não se ignora a possibilidade de utilização dos incisos I (“caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas”) e II (“com seleção a critério de terceiros: caso em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação”) do citado artigo. O fator dificultador, nesse caso, é a obrigatoriedade de fixação prévia do preço pela própria Administração (art. 79, parágrafo único, inciso III, da NLLCA). Seria uma opção razoável para um “marketplace de serviços” a absorver mão de obra desempregada, por exemplo.
A segunda possibilidade, bem menos dinâmica e mais trabalhosa, é fazer uma regulamentação específica e engenhosa de sistema de registros de preços (SRP) com adjudicações conjuntas e mistas, a se desenvolverem por trás da límpida tela do marketplace, na qual o usuário que lançasse os olhos sobre os produtos disponíveis não teria ideia da complexidade exigida para ali se chegar.
Os leitores mais especializados em SRP possivelmente apontarão diversas dificuldades jurídicas para utilizá-lo como instrumento de viabilização do marketplace público. Nesse ponto, vale a máxima popular segundo a qual “se fosse fácil, já teriam feito”.
Assim, na primeira parte deste artigo chegamos à conclusão de que o rei está nu, uma metáfora para retratar o contrassenso que é o atual desenho direcional das contratações públicas brasileiras de produtos comuns. Já nesta segunda parte, levantamos algumas possíveis explicações à nudez real bem como soluções concretas, concluindo que a dificuldade para viabilizar o marketplace público não é inerente à tecnologia da informação, mas é jurídica e de formatação de processo de trabalho.
Nesse contexto... se o rei está nu, se sabemos o porquê de ele estar nu e como vesti-lo, a solução não é simplesmente pôr-lhe as roupas de uma vez? Veremos que não. A dificuldade técnica (aí incluídos os aspectos jurídicos e de processo de trabalho) é apenas o aspecto inicial a ser observado para a implementação do marketplace público. Há outras questões que devem ser consideradas. Sigamos o texto.
2.Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que (por enquanto) o rei é mais bonito nu
A inovação na Administração Pública é realizada por... pessoas. E como tal, o passo, o compasso e o descompasso da Administração estão inerentemente ligados às tendências nas quais estão emergidos os agentes públicos. Nessa bolha, da qual este autor faz parte, é comum a influência de dois complexos que, por vezes, estão a explicar la raison pour laquelle les choses sont (a razão pela qual as coisas são assim). São eles: o complexo ou “síndrome de Gabriela” e o “complexo de vira-lata”.
Quanto ao primeiro, dispensa-se apresentações. O “trecho da música escrita por Dorival Caymmi e interpretada por Gal Costa fez sucesso na TV na década de 1970, quando foi tema da personagem central da telenovela Gabriela — uma adaptação da obra do autor baiano Jorge Amado”[21].[22] Em resumo: “A trama mostra uma mulher que não conseguia se adaptar aos costumes da época e se recusou a moldar seu jeito espontâneo e um pouco rude para se enquadrar na cidade em que vivia”[23].
A síndrome, inclusive, recebe por estas terras alcunha científica, e é descrita como “sendo observado em pessoas que acreditam que não precisam mudar ou adaptar seu comportamento a situações que não lhe agradam”[24]. A nós brasileiros é suficiente a auto explicação do trecho de Caymmi: “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou sempre assim…Gabriela”[25].
Não é incomum ouvir na Administração Pública expressões como “sempre foi assim”, “para que mudar?” ou simplesmente “não pode” quando se indaga a necessidade de inovações em qualquer área. Se essa “síndrome de Gabriela coletiva” não é exclusividade do serviço público, por aqui ela encontra características que lhes são propícias: estabilidade, remuneração desatrelada a resultados, impossibilidade de a ineficiência “quebrar” o órgão etc. Mas não pense o leitor que este autor acredita que um órgão ou ente público deve ser visto como uma empresa, na verdade essa visão cognitiva é própria da outra síndrome: o complexo de vira-lata.
O termo foi criado por Nelson Rodrigues para descrever “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”[26]. Segundo o dramaturgo e escritor, a “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”[27]. Prossegue com formidável metáfora: “O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”[28].
Se o brasileiro, em regra, não consegue ver o próprio valor do seu país, da sua cultura e das suas qualidades, pondo-se numa situação de inferioridade frente a outras nacionalidades – geralmente acompanhado da irritante expressão “quer o que, isso aqui é Brasil” –, a metáfora pode ser estendida a parcela dos servidores públicos que acreditam que “só é bom o que vem da iniciativa privada” e que “na Administração Pública tudo é pior”, afinal, “quer o que, isso aqui é serviço público”.
Essa visão é, de fato, equivocada. As áreas pública e privada têm, cada uma, qualidades a serem copiadas e vicissitudes a serem mitigadas. Se o setor privado costuma ser um ambiente mais propenso à inovação, à racionalidade e à economia de recursos decorrentes da incessante busca do lucro, o serviço público é exemplo de análise responsável dos riscos, humanismo na gestão de pessoas (ao menos deveria e tem os requisitos para ser), busca da evolução coletiva e do bem comum. Isso sem contar que a maioria das grandes inovações e dos inventos da iniciativa privada não ocorreriam sem o anterior e pesado investimento em pesquisa de base ou fomento do setor público.
Assim, se ambos os complexos – de Gabriela e de vira-lata – são conceitualmente distintos, eles têm consequências em comum: o sucateamento da Administração Pública e o fato de constituírem obstáculo à concretização de direitos fundamentais dos cidadãos; um pelo desprezo à racionalidade e à evolução (síndrome de Gabriela) e outro por igual desprezo a si próprio, indiferença aos cidadãos e servilismo burlesco aos detentores do capital (complexo de vira-lata).
E, claro, apesar de nos referirmos a parcelas (pequenas mas barulhentas) de servidores públicos, esses dois complexos podem ser observados em diversos agentes de fora da Administração Pública, que a enxergam de igual modo. Deve, contudo, causar mais espanto tais complexos naqueles agentes que ganham a vida na Administração pública e que “não se importam com a evolução do serviço público” ou que são “servidores públicos que não acreditam no serviço público”. Felizmente, ambos são uma minoria, mas, repita-se, uma minoria barulhenta.
Para além dos malefícios gerais ao serviço público que ambos os complexos causam, estes servem como alertas para o debate e a implementação do marketplace público, ante a sua inegável característica de ruptura do atual modelo público de contratações.
A síndrome de Gabriela serve de sinal para repudiarmos o argumento de que o marketplace não é necessário porque “sempre foi desse jeito” e “do jeito que está funciona”. O questionamento não é se funciona, mas a que custo funciona, quais os benefícios que a população aufere por funcionar dessa e não de outra forma, e, por principal, em que medida esse modus auxilia na concretização de direitos fundamentais.
De igual modo, e com igual jogo de palavras, o alerta do complexo de vira-lata deve nos fazer questionar frente ao modelo a ser importado da iniciativa privada: qual será o custo para o marketplace público funcionar, quais os benefícios que a população auferirá por funcionar dessa e não de outra forma, e, novamente por principal, em que medida esse modus auxiliará na concretização de direitos fundamentais.
Em relação ao custo, em que pese serem necessários estudos específicos, parece ser lugar comum a constatação de que a extrema simplificação do procedimento reduzirá significativamente o número de agentes públicos envolvido, além de outros recursos, o que se traduzirá em economia do custo da contratação pública e, na prática, irá disponibilizar essa mão de obra para a execução de atividades finalísticas dos órgãos, com o consequente incremento na melhoria das políticas públicas.
Já quanto aos benefícios auferidos pela população, ter-se-á diretamente a maior agilidade na disponibilização de produtos necessários à implementação de políticas públicas e a sensível redução na descontinuidade de serviços públicos causada pela falta de algum insumo ou componente.
O problema que exige maior atenção à implementação do marketplace público está, contudo, naquele que deve ser o principal (ou, ao final, o único) objetivo da Administração Pública: a concretização de direitos fundamentais. A análise de tal objetivo em um tema de atividade-meio como as contratações públicas é tarefa complexa e que exige atenção.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as contratações públicas representam formidáveis 12,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.[29] A Administração Pública é o maior comprador do mercado e o seu comportamento enquanto adquirente de bens e serviços, obviamente, tem gigantescos impactos econômicos e sociais.
Em 2023, os governos compraram de micro e pequenas empresas o equivalente a 30% do montante das compras governamentais[30]. Não custa lembrar que são os pequenos negócios que geram cerca de 7 a cada 10 dos empregos no país[31]. Não à toa, a NLLCA alterou o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte com o fito de incentivar a participação dessas empresas nas contratações públicas e criar mecanismos para coibir a utilização indevida dessa condição.
Se por um lado, o incentivo à participação dos pequenos negócios fomenta a geração de empregos à população, há diversos mecanismos de compras públicas – a serem melhorados e expandidos – que são verdadeiramente políticas públicas de melhor distribuição de renda e que têm outros benefícios indiretos, como a fixação de populações no campo, melhoria da alimentação escolar, acesso a água potável, e diversos outros modelos que, através das compras públicas, concretizam diretamente direitos fundamentais.
Nesse contexto, há muito já foi percebido o potencial indireto e até direto das contratações públicas na execução de políticas públicas e consequente concretização de direitos fundamentais. Nesta senda, o marketplace público pode ser, a depender, um importante indutor de transformação social ou, caso seja implementado sem a devida e complexa teia de regras a direcioná-lo a promover tal transformação, pode ter consequências devastadoras.
Não é exagero tal afirmação. A implementação do marketplace pode gerar três efeitos imediatos: concentração das vendas em grandes empresas, aprofundamento das desigualdades regionais e sensível debilidade à economia das pequenas cidades.
Caso não seja bem desenhado, o marketplace público facilitará a oferta de produtos por grandes empresas, as quais detêm melhores condições de preço, logística, crédito e redução de custos. Isso causaria um exponencial desemprego, eis que as micro e pequenas empresas, maiores empregadores, perderiam a importante parcela do mercado que são as compras governamentais. Além disso, haveria maior concentração de capital, aumento da mão de obra ociosa, redução da renda dos micro e pequenos empreendedores e todas as consequências econômicas bastante conhecidas.
A medida aprofundaria, ainda, as desigualdades regionais. Sem os devidos cuidados, os polos industriais nacionais – geradores de empregos, renda, impostos e tudo mais – concentrariam essa fatia do mercado ante o seu estado avançado de desenvolvimento, prejudicando as já tímidas medidas em sentido contrário e consolidando a situação de estados produtores e estados consumidores.
Por fim, o marketplace público poderá debilitar as em regra já combalidas economias das pequenas cidades, que costumam depender em grande medida das compras municipais. Com a facilidade do marketplace e as inegáveis condições privilegiadas que terão as empresas das cidades maiores, é factível a previsão de enxugamento da circulação de recursos na economia local.
Em sentido contrário, a implementação do marketplace público pode ser decisiva para a democratização das compras públicas, desde que os diversos atores governamentais envolvidos no seu desenho jurídico e procedimental tenham esse objetivo como premissa primeira. Caso isso não ocorra, o caminho natural do marketplace público será aprofundar os problemas citados.
Em curta conclusão: o modelo de compras públicas atual é arcaico, um desmascaro, mas, enquanto a opção for a implementação do marketplace público sem os cuidados descritos, é melhor deixar, por ora, tudo como está.
Voltemos às metáforas. O conto de Andersen comumente é utilizado para retratar situações em que uma verdade incômoda deve ser desvelada, o que ocorre sob a ruidosa expressão “o rei está nu”. Caetano Veloso canta que é um “desmascaro, singelo grito”, chegando à mesma conclusão de Andersen ao exclamar que, de fato, “o rei está nu”.
Fosse pouca a profundidade expressa pelo conto, o baiano do recôncavo, na música “O estrangeiro”, a complementa em tom ácido e genial de dar inveja ao nosso conterrâneo Gregório de Matos[32]: “mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nu”. De fato, o rei está nu. Mas, enquanto não houver roupas para todos, deixem o rei nu!
Referências Bibliográficas
ANDERSEN, Hans Christian. A roupa nova do imperador. In: SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Ler e escrever: livro de textos do aluno / Secretaria da Educação, Fundação para o Desenvolvimento da Educação; seleção dos textos, Claudia Rosenberg Aratangy. 3. ed. São Paulo: FDE, 2010.
BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
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VELOSO, Caetano. O Estrangeiro. In: Estrangeiro. Rio de Janeiro: Philips, 1989. Faixa 1. Disco de vinil.
[1] VELOSO, Caetano. O Estrangeiro. In: Estrangeiro. Rio de Janeiro: Philips, 1989. Faixa 1. Disco de vinil.
[2] ANDERSEN, Hans Christian. A roupa nova do imperador. In: SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Ler e escrever: livro de textos do aluno / Secretaria da Educação, Fundação para o Desenvolvimento da Educação; seleção dos textos, Claudia Rosenberg Aratangy. 3. ed. São Paulo: FDE, 2010.
[3] BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso em: 12 set 2023.
[4] BRASIL. Decreto nº 2.926, de 14 de maio de 1862. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1862, Página 126 Vol. 1 pt. II (Publicação Original).
[5] BRASIL. Decreto nº 4.536, de 28 janeiro de 1922. Coleção de Leis do Brasil - 1922, Página 62 Vol. 1 (Publicação Original).
[6] BRASIL. Decreto-Lei nº 200, de 27 de junho de 1967. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1967 (Publicação Original).
[7] BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1993 (Publicação Original).
[8] BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2023. Com alterações posteriores. Disponível em: <. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm>. Acesso em: 14 set 2023.
[9] BRASIL. Ministério da Economia. Instrução Normativa Seges/ME nº 67/2021. Disponível em: < https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/instrucoes-normativas/instrucao-normativa-seges-me-no-67-de-8-de-julho-de-2021>. Acesso em: 14 set 2023.
[10] Ver: DEZAN, Sandro Lúcio. & CUNHA, R. A. V. (2017). O substancialismo jurídico na administração pública concretista de direitos fundamentais: a juridicidade administrativa como instrumento de justiça constitucional. Revista Justiça Do Direito, 31(2), 304-328. Disponível em: <https://doi.org/10.5335/rjd.v31i2.6974>. Acesso em: 10 set 2023.
KENICKE, Pedro Henrique Galloti, e outros. A nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. In: VALIATI, Thiago Priess, e outros. A Lei de Introdução e o direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 628.
BARBOSA, Jandeson da Costa. O interesse público constitucional numa formulação à luz de pressupostos teóricos, contextos e fatos no âmbito dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 79.
[11] FERREIRA, Livia. O que é marketplace e quais as suas vantagens? Disponível em: <https://www.nuvemshop.com.br/blog/o-que-e-marketplace/>. Acesso em: 11 set 2023.
[12] Idem.
[13] BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. MACIEL, Francismary Souza Pimenta. Aspectos hermenêuticos da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Revista do Tribunal de Contas da União. Edição 147, 2021. Disponível em: <https://revista.tcu.gov.br/ojs/index.php/RTCU/article/view/1695>. Acesso em: 12 set 2023.
[14] MACIEL, Francismary Souza Pimenta. BARBOSA, Jandeson da Costa. KHOURY, Nicola Espinheira da Costa. CHIOATO, Tânia Lopes Pimenta. Nova Lei de Licitações: poema de sete prazos. Conteúdo Jurídico. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61822/nova-lei-de-licitaes-poema-de-sete-prazos>. Acesso em: 12 set 2023.
[15] Idem
[16] “Segundo Marçal Justen Filho, a ‘concepção de um Estado Democrático de Direito é muito mais afirmada (semanticamente) na Constituição do que praticada na dimensão governativa’. E conclui o autor que isso ‘deriva da ausência de incorporação, no âmbito do direito administrativo, de concepções constitucionais fundamentais’.
É oportuno frisar que cabe à academia, aos operadores do direito, aos administradores públicos, e não apenas ao legislador, a tarefa de formatar o direito administrativo ao novo paradigma constitucional. Cabe, aqui, citar trecho de Carlos Ayres Britto:
‘Assim como o Direito "não é filho do céu" (TOBIAS BARRETO), mas um produto da História, os princípios jurídicos não surgiram de uma noite para o dia. Eles foram evoluindo com o próprio tamanho das Constituições e a forma jurisprudencial-doutrinária de interpretá-las.’
Portanto, deve ser superada no direito administrativo a vinculação estrita do administrador público à lei formal. Este passa a ter que obedecer a um bloco de legalidade, ou vinculação ao Direito. Deve haver, então, a mudança de paradigma ‘com a substituição da lei pela Constituição como cerne da vinculação administrativa à juridicidade’.
A juridicidade administrativa, portanto, tem como premissa que o intérprete considerará para a tomada de decisão todo o sistema jurídico em que está imerso, partindo das normas-regras constitucionais e legais e também das normas- princípios, a fim de encontrar a melhor interpretação dentre as diversas possíveis para aquele caso concreto.
Esse novo paradigma resulta, ou deve resultar, em mudanças estruturais no direito administrativo. Podemos citar: substituição da legalidade como vinculação exclusiva à lei pelo princípio da juridicidade administrativa; necessidade de interpretação da lei de modo a fomentar o gerencialismo na Administração Pública; democratização da Administração Pública através da participação, processualização e transparência; consensualismo; substituição do princípio da supremacia do interesse público pelo respeito à proporcionalidade e aos direitos fundamentais; redução da discricionariedade da Administração Pública e controle pelo Poder Judiciário, dentre outros.
Como recorte metodológico, vamos analisar, a seguir, aspectos relacionados à substituição da legalidade como vinculação exclusiva à lei pelo princípio da juridicidade administrativa, e a necessidade de interpretação da lei de modo a fomentar o gerencialismo na Administração Pública, duas questões umbilicalmente ligadas.” In: BARBOSA, Jandeson da Costa. Uma teoria hermenêutica para a gestão pública do século XXI. In: DEZAN, Sandro Lúcio, e outros (org.). Hermenêuticas do Direito e Processo Administrativo. Curitiba: Editora CRV, 2021, p. 22 a 23.
[17] Seria um trabalho para a recém-criada Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) do TCU? A proposição de inovações não é propriamente uma das suas atividades, mas a construção de um desafio jurídica e socialmente (veremos) complexo como o marketplace público deve envolver o diálogo entre diversos atores e – provavelmente – a realização de audiências públicas.
[18] E aqui cabe um elogio ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), e a outros TCE’s, o qual – até onde sabe este autor – foi grande vanguardista de diversas das soluções incorporadas ao PNCP. Isso reforça a observação de que, mesmo quando a Lei inova na criação de ferramentas concretas, estas foram desenvolvidas, em algum grau, com base na gradual experiência de algum ator.
[19] “Os modelos licitatórios, em sua grande maioria, priorizam o estabelecimento de ritos com rígido controle - que impõem custos e prejudicam a eficiência do processo de contratação pública - em detrimento da eficiência econômica. Muitas vezes o custo administrativo gerado pelo cumprimento desses ritos consome mais recurso do que a própria contratação.
A Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou um estudo sobre a eficiência dos pregões realizados pelo Governo Federal. O trabalho analisou 16.188 pregões realizados em 2016, mediu os custos administrativos decorrentes desses processos e comparou com a economia gerada pelo certame. Os resultados mostram que, no modelo de licitações atual, 85% dos órgãos federais são considerados deficitários, o que significa que mais de 30% dos pregões realizados por eles têm custo administrativo superior à redução no preço decorrente da disputa.² A média de duração desses pregões foi de 37 dias em sua fase interna (após publicado o edital), pressupondo-se ao menos igual período para a fase anterior à publicação. recursos do que o necessário e levará, em média, 74 dias para concluir a contratação.
Isso significa que mesmo ao licitar por meio do pregão - modalidade considerada por muitos instrumento de celeridade e eficácia nas contratações públicas - o administrador tem grande chance de gastar mais recursos do que o necessário e levará, em média, 74 dias para concluir a contratação.
Os trâmites burocráticos e a onerosidade do sistema não ampliam os custos apenas para o licitante, mas também para o fornecedor interessado, restringindo a competitividade e majorando o preço alcançado na licitação.
Além disso, mesmo com todas as barreiras impostas ao processo seletivo, ele não se torna inviolável. Pelo contrário, o grau de corrupção ainda existente no âmbito das contratações públicas evidencia a necessidade de modernização do sistema. Possivelmente um sistema de contratação informatizado e simplificado, com menos intermediários, poderia ser mais eficiente no combate à corrupção.”. In: BRASIL. Congresso Nacional. Emenda nº 13 à Medida Provisória nº 1.167/2023. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9312159&ts=1692892074486&disposition=inline&ts=1692892074486>. Acesso em: 10 set 2023
[20] BRASIL. Congresso Nacional. Emenda nº 13 à Medida Provisória nº 1.167/2023. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9312159&ts=1692892074486&disposition=inline&ts=1692892074486>. Acesso em: 10 set 2023.
[21] SBIE. Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional. Conheça a “Síndrome de Gabriela” e como se desenvolve nos relacionamentos. Disponível em: < https://www.sbie.com.br/conheca-sindrome-de-gabriela-e-como-se-desenvolve-nos-relacionamentos/>. Acesso em: 15 set 23.
[22] Até aqui, já devemos ao glorioso estado da Bahia por: Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Gal Costa e Jorge Amado.
[23] SBIE. Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional. Conheça a “Síndrome de Gabriela” e como se desenvolve nos relacionamentos. Disponível em: < https://www.sbie.com.br/conheca-sindrome-de-gabriela-e-como-se-desenvolve-nos-relacionamentos/>. Acesso em: 15 set 23.
[24] Idem.
[25] CAYMMI, Dorival. Modinha Para Gabriela. In: Gabriela - Trilha Sonora Original. Rio de Janeiro: Som Livre, 1975. Faixa 7. Disco de vinil.
[26] RODRIGUES, Nelson. “Complexo de vira-latas”. Publicado originalmente em: Revista Manchete esportiva, 31/05/1958. In: À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p.51-52.
[27] Idem.
[28] Ibidem.
[29] BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. O mercado de compras governamentais brasileiro (2006-2017): mensuração e análise. Brasília: Ipea, 2019. Disponível em: <https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9315/1/td_2476.pdf>. Acesso em: 14 set 23.
[30] PODER 360. Vendas de pequenos negócios para o governo somam R$ 17 bi em 2023. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/poder-empreendedor/vendas-de-pequenos-negocios-para-o-governo-somam-r-17-bi-em-2023/>. Acesso em: 16 set 2023.
[31] BRASIL. Agência Brasil. Micro e pequenas empresas criam sete de cada 10 empregos no país. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-07/micro-e-pequenas-empresas-criam-sete-de-cada-10-empregos-no-pais>. Acesso em: 16 set 2023.
[32] Gregório de Matos e Guerra (Salvador-BA, 1636-1696) foi advogado e poeta baiano conhecido pela sua crítica ácida e satírica, a ponto de receber a alcunha de “Boca do Inferno”.
Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Ceub. Especialista em Direito Público pela Unifacs. Ex-Especialista Sênior e Ex-Diretor da área de licitações e contratos do TCU. Servidor do TCU. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica do Direito Administrativo e Políticas Públicas, do Ceub. Professor. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Jandeson da Costa. Nova lei de licitações, marketplace público, o rei, Caetano e outras reflexões Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2024, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3639/nova-lei-de-licitaes-marketplace-pblico-o-rei-caetano-e-outras-reflexes. Acesso em: 26 dez 2024.
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