Dias após o Supremo Tribunal Federal ter finalizado o julgamento rejeitando a tese do marco temporal através do RE 1017365, que teve seu primeiro voto em 2021 com o ministro Edson Fachin (relator), o Senado em movimento antagônico à Corte aprovou o projeto de lei que trata sobre o tema (PL 2.903/23) e entre outras medidas fixa o marco temporal.
De modo direto e sem rebuscamentos, a tese do marco temporal defende que só devem ser demarcadas como terras indígenas as áreas ocupadas na data da promulgação da Constituição Federal de 1988 (5 de outubro), assim coloca em questão cerca de 800 “terras indígenas” ainda não reconhecidas, além de outras terras que vem sendo homologadas pelo Estado nas últimas décadas.
O PL em referência aprovada pelo Congresso foi para análise do Presidente da República, que teve nos termos do ordenamento 15 dias para sancionar ou vetar dispositivos do texto. Os vetos retornaram para serem examinados pelo Congresso, em sessão conjunta da Câmara e Senado, que terão o poder de derrubá-los. Se assim entender o Congresso, no sentido de derrubar os vetos do Presidente, a lei será promulgada e entrará em vigor. No caso em tela, o Presidente conferiu veto parcial ao PL do marco temporal, aderindo na essência à tese do STF. Fundamentou, que a lei produzida pelo Legislativo contraria o interesse público e estaria eivada do vício de inconstitucionalidade por “usurpar direitos originários” dos povos indígenas previstos na Constituição. Como o PL referido trazia outras questões além das discutidas no Supremo, a grande maioria vetadas, o veto parcial do Presidente ainda abrangeu: trechos que previam a possibilidade de cultivo de transgênicos e atividades garimpeiras dentro de territórios indígenas. Também foi vetada a proposta de construção de rodovias dentro desses territórios, dentre outras.
O veto parcial da presidência ainda será apreciado em sessão conjunta do Senado e Câmara dos Deputados. Para rejeição do veto, é necessária maioria absoluta dos votos, ou seja, 257 votos de deputados e 41 votos de senadores. Caso o Congresso não alcance este número de votos em alguma das Casa ou em ambas, o veto é mantido.
Como informação que serve como parâmetro, quando deliberada e votada pelo Senado enquanto PL, a matéria obteve 43 votos a favor e 21 contrários. Já na Câmara, foram 283 votos favoráveis e 155 votos contrários.
Não foram alvos de veto por parte do Presidente apenas os trechos que tratam das disposições gerais com a definição dos princípios orientadores da lei, as modalidades de terras indígenas para reconhecimento da demarcação e os pontos que norteiam o acesso e a transparência do processo administrativo.
Importante notar, que expressiva parcela dos analistas da questão falam de afronta do Legislativo ao Supremo Tribunal Federal, exatamente por haver aprovado legislação contrária ao entendimento amplamente majoritário da Corte logo na semana seguinte, que teve apenas dois votos divergentes na composição que deliberou no Supremo.
Nesse diapasão, não podemos esquecer, que o fato do Supremo haver decidido sobre o marco temporal no sentido de que este fere a Constituição de 1988 por meio de Recurso Extraordinário, não cria óbice para que o Legislativo legisle sobre o tema. A decisão do STF nos termos da Constituição não vincula o Poder Legislativo, que pode sim legislar e com legitimidade em movimento contrário, tudo isso como parte de um Estado Democrático de Direito que trata de questão de viés político muito proeminente.
Assim, caso restem vetados os vetos presidências, fatalmente a lei restará questionada no STF, agora por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
Entrementes, até que o STF julgue a ação, a lei terá validade. Desta feita, pelo conteúdo da legislação representar o oposto do que determinou a decisão do Tribunal em que foi atribuída repercussão geral, esta servirá de parâmetro para todos os julgamentos envolvendo o marco temporal para demarcação de terras indígenas, pois a decisão em Recurso Extraordinário com repercussão geral vincula o Poder Judiciário. As antíteses emanadas das duas esferas de Poder (legislação e recurso extraordinário com repercussão geral) podem causar situações de insegurança jurídica sim, pois a lei quando for aplicada será questionada na justiça por existir entendimento contrário do Supremo, claro caso o Congresso venha a vetar o veto Presidencial.
Temos discutido em nossos últimos artigos, em especial dos que tratamos das PECs 8/2021 e 16/2019, sobre a desvalia de se ter uma Corte Constitucional tão entranhada pela política, uma Corte Constitucional com viés ideológico tão determinante em suas decisões, quando esta Corte por competência constitucional acaba tratando de inúmeros julgados de questões originalmente afetas às políticas públicas (que reclamam legitimidade democrática), mas que sim, tocam em pautas constitucionais, e quando provocada deve se pronunciar. Nesse particular tão fundamental, que chamo o leitor à reflexão em nosso artigo “PEC 16/2019: Mandato para Ministros do STF - reflexão e nossa proposta”, sobre a necessidade de debatermos à respeito do processo essencialmente político de escolha do ministros da Suprema Corte (remetemos o leitor).
Retornando às antíteses (lei e Recurso Extraordinário), quanto a temática tratante, marco temporal, a resposta do STF assim que provocado por ADI, sempre conjecturando a hipótese do Congresso vetar os vetos presidências, inapelavelmente já se imagina a resposta da Corte, pois acabara de ser fixada via controle difuso por larga maioria seu posicionamento diante a questão. Muito provavelmente como as ações diretas de inconstitucionalidades dão azo à utilização de cautelares, capazes de antecipar os efeitos da decisão, estas serão utilizadas com o fito de suspender os efeitos da lei, que poderão causar prejuízos.
Deverá inclusive o Supremo ao analisar via ADI a Lei 14.701, se pronunciar sobre as demais questões não tratadas no recurso extraordinário, e que se vetado o veto Presidencial pelo Congresso Nacional em sua totalidade, abrangerá toda matéria reverberada pelo PL 2903/2023 que se tornara lei.
No tocante à decisão do Supremo sobre o marco temporal, indubitável tratar-se de temática espinhosa onde existem interesses antagônicos passíveis de serem sustentados com legitimidade.
Em favor do marco temporal existem proprietários com seus domínios inscritos em registro público, com reconhecimento do poder público competente produzindo em boa parcela como terras produtivas de elevadíssimos investimentos e gerando divisas, inclusive para o país. Muitas das terras onde funcionam produções milionárias do agronegócio (devidamente adquidas) eram não utilizadas ou claramente subutilizadas e não produziam sua devida função social antes de realizado o investimento. Apesar desses fatos provados, o Supremo em uma interpretação garantista dos direitos fundamentais dos povos originários entendeu que as terras indígenas são originárias e ancestrais, ainda que não cumpram qualquer função social, senão a de pertencimento aos povos indígenas. Por óbvio, as terras esbulhadas, tomadas mediante violência, sem o atributo da boa-fé, não mereceriam qualquer espécie de proteção da ordem jurídica. Não há como se descurar dos fatos da sociedade (realidade social) porém, e um deles é que hodiernamente, por mais lamentável que nos remonte pela história, há muita terra para poucos índios, aqui importantes os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade a da função social da propriedade, que em regra quando cultivam é com o fim apenas de subsistência. Com a decisão do Supremo a quantidade de terras improdutivas no país tenderá a multiplicar-se, o que gerará repercussões nas mais diversas produções, e em última ratio, no próprio no combate à fome, com uma menor produção de alimentos à título de exemplo, esses se tornarão mais caros e cada vez mais inacessíveis ao povo (lei da oferta e da procura).
Então vejamos nossa constituição de 1988:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
No art. 231 há o reconhecimento dos povos originários indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, assim o artigo exigiria em tese ocupação. O artigo ainda exige que as terras sejam demarcadas pela União com o fito de tutelar essas minorias e os direitos que possuem pelas suas terras, pelos seus bens. Juridicamente as terras pertencem a União e os povos indígenas possuem o seu usufruto.
Art. 67 do ADCT: A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de 5 anos à partir da promulgação da Constituição.
Como se pode perceber, o prazo de 5 anos que iniciou-se em 5 de outubro de 1988 expirou em 1993, mas já se fixou a tese de não se tratar de um prazo peremptório. As normas da ADCT possuem numeração própria, mas tem hierarquia constitucional. Possuem o espectro de fazer a transição, e suas normas que podem ser reformadas apenas através de emendas constitucionais, se extinguem automaticamente quando cumprem sua finalidade. Desta forma, a norma do ADCT referida permanece com eficácia, tendo em vista que as demarcações não restaram concluídas.
Historicamente a tese do marco temporal surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi utilizado como boa medida para o conflito. O argumento foi que essa área, de aproximadamente 80 mil metros quadrados não estava ocupada em 5 de outubro de 1988. Argumentam os povos indígenas, que a terra estava desocupada na ocasião, porque eles haviam sido expulsos de lá, esbulhados.
Quando em seu voto o relator, seguido pela maioria da Casa, interpretou que a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, e desta forma entendeu como anterior à própria formação do Estado, não exigindo a ocupação efetiva da terra nos termos do artigo constitucional, qualquer debate sobre marco temporal perde força e a questão deverá resolver-se no âmbito das indenizações aos possuidores de título legitimo de propriedade adquiridos de boa-fé e da continuidade do processo de demarcação das terras indígenas. Prevaleceu o entendimento que a demarcação das terras feitas pelo Estado tem apenas efeito declaratório de reconhecimento, ou seja, o direito à terra já lhes pertence (aos povos indígenas originários).
Quando o Supremo analisar em sede de controle concentrado a questão que retornará à Plenário por meio de ADI, com a composição que hoje a Casa ostenta, os votos apenas reafirmarão os pleitos da comunidade indígena como direitos ancestrais dos povos originários que precedem o Estado, e entendido esse argumento como válido (entendimento plenamente possível nos termos da norma constitucional, de uma Constituição que permite interpretações, apesar das ressalvas que expusemos) como já foi pela maioria ampla dos ministros da Casa, pouco haverá à ser debatido.
Assim, mesmo que o Congresso vete o veto Presidencial, e a lei passe a vigorar inteiro teor, vigorará com prazo de validade, pois o Supremo à declarará inconstitucional, o marco temporal e as demais questões que a lei inovou em relação ao recurso extraordinário já decidido. A indenização por benfeitorias e pela terra nua valerá para proprietários que receberam dos governos federal e estadual títulos de terras que deveriam ser consideradas como áreas indígenas, esse direito como não poderia deixar de ser foi reconhecido pelo STF, o que atribuiu uma inegociável segurança jurídica aos negócios realizados de boa-fé.
Em verdade, consabido que a Constituição é uma Carta aberta, que os enunciados normativos ao serem interpretados e se tornarem normas podem receber alguns sentidos por vezes antagônicos que o intérprete tomado por razões não raras de ordem política, por vezes temerariamente ideológicas e menos imparciais que o desejado, é capaz de sustentar vez ou outra com algum grau de malabarismo hermenêutico uma tese que sim, também encontrará sua ratio decidendi constitucional. Não queremos dizer que esse tenha sido o caso da temática discutida no presente artigo.
E como colocação derradeira defendemos que o uso de qualquer terra deve ser respeitada sua função social e seu uso deve adequar-se à um modelo sustentável de exploração. O mundo passa por um processo de verdadeira revolução climática e diversos são os fatores, reconhecidos e muitas vezes desconhecidos pelo homem. Não apenas no Brasil, mas no planeta, a tendência de escassez de alimentos é uma realidade inafastável, e assim a necessidade de se propiciar e incentivar seus meios de produção sustentáveis, que não agridam o meio ambiente, uma tarefa do Estado inadiável, de cada soberania do planeta. Não podemos esquecer, que a escassez atinge em primeira ordem o pobre, o hipossuficiente, e o combate à fome é uma tarefa premente de enfrentamento aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Produzir é preciso, sempre com responsabilidade ambiental em respeito às atuais e futuras gerações.
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. Marco Temporal morto pelo STF ou ressuscitado pelo Congresso? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2024, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3661/marco-temporal-morto-pelo-stf-ou-ressuscitado-pelo-congresso. Acesso em: 26 dez 2024.
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