É notório que desde a implantação de um novo sistema de governança denominado patriarcado, a historiografia feminina sofrera abrupta interrupção, bem como, máculas de violência em sua trajetória até os dias atuais. O movimento de reconquista feminina esta presente em todas as vertentes sociais e diariamente trabalhada no emocional e profissional das mulheres, mediante programas de incentivo ao empreendedorismo feminino e fortalecimento legislativo ao combate à violência de gênero. Apesar de todos os esforços para reestruturar a posição feminina na sociedade, essa mesma violência, antes exteriorizada e perceptível ao mundo material; adentrou as camadas sombrias do subconsciente feminino, deixando-o semiautomatizado para a normatização de certos comportamentos masculinos, naturalmente reprováveis e danosos tanto a vítima quanto a sociedade: O abuso infantil em âmbito familiar.
A pedofilia, do ponto de vista psiquiátrico forense, é considerada uma parafilia ou transtorno de preferência sexual classificada pelo Código Internacional de Doenças (CID 10 – F654) a frequência da perversão sexual não é passível de verificação senão mediante o flagrante delituoso. Destarte toda a particularidade descritiva da doença, estudos sobre o perfil psicológico desses agentes atestam estar a parafilia comumente acompanhada de outras formas de transtornos (personalidade, humor, etc...) além de pontuais sinais de raiva e hostilidade, níveis de inteligência abaixo da média e dificuldade em relacionar-se socialmente com pessoas da mesma faixa etária. Para a efetiva constatação da doença, necessário além de testes psicológicos, realização de exames ambulatoriais (dosagem hormonal, tomografia computadorizadas, entre outros).
Em âmbito jurídico, a pedofilia é considerada crime, previsto no artigo 217-A do Código Penal:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Denomina-se pedofilia intrafamiliar quando há laços consanguíneos ou de afinidade entre autor e vítima (pais, padrastos, mãe, madrastas, avós, tios, primos, irmãos) prática esta passível de aumento de pena frente o grau de proximidade, bem como o rompimento do dever de amparo e proteção à criança e adolescente:
Aumento de pena
Art. 226. A pena é aumentada:
...
II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela;
Considera-se em situação de vulnerabilidade certos segmentos populacionais que devido a própria condição, historicidade ou posição econômica, estão mais suscetíveis a incidência de violência ou discriminação; entre eles: Crianças, adolescentes e meninas.
Para isso, possuem especial proteção jurídica:
Estatuto da Criança e Adolescente
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Apesar de toda aparelhagem protetiva legislativa e programas sociais que visam tanto a conscientização como a contenção da problemática por intermédio de canais especializados de denúncia; levantamento realizado pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (Disque 100) revelou que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados em âmbito familiar. É comumente noticiado nos canais de telecomunicações, casos de abuso figurando o padrasto como autor; de certo, passível de recriminação; entretanto, trago o alerta da problemática quando o abusador possui vínculo biológico com a vítima, sendo seu próprio pai.
Excetuando-se os casos em que a mãe postula como agente incapaz de oferecer defesa, pois concomitantemente a vítima, se encontra em situação de violência doméstica em suas variadas ramificações (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) bem como, não é portadora de parafilia ou transtorno mental equivalente; tendo pleno domínio de suas faculdades intelectuais e escolhe, conscientemente se omitir frente a situação de abuso sexual de sua filha(o) também se entende como ação criminosa, conforme dispositivo legal:
Código Penal
Art. 13, § 2º. A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.
Estatuto da Criança e Adolescente
Art. 5º. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
De certo, a emancipação feminina e suas benéfices ainda há muito a ser desenvolvida, sobretudo no emocional feminino. A aplicação indiscriminada do perdão e tolerância em nome da constância familiar, tarefa atribuída exclusivamente ao cargo feminino além de vantajoso ao abusador, contribui para a permanência das práticas em detrimento da criança. Minuciosa pesquisa científica intitulada “Perfil psicológico e comportamental de agressores sexuais de crianças” (Serafim, et al. 2009) traçam 11 perfis comportamentais de pedófilos, sendo o mais predominante em âmbito familiar o Pedófilo Abusador. A característica primária desse perfil abusador, vencida a barreira da oportunidade de acesso a criança; é a capacidade de manipulação sentimental em confundir os sentimentos da menor com as sensações provocadas pelas carícias íntimas; a imaturidade decorrente da idade leva a criança a considerar natural as carícias íntimas como gesto de carinho e zelo próprios da figura paterna; a ausência de violência torna quase imperceptível a prática em âmbito escolar e familiar quanto a parentes mais ou menos distantes, podendo se perpetuar por períodos consideráveis. A escolha por findar o relacionamento incestuoso, quando não interceptado por terceiro, cabe ao abusador preferenciando período pretérito ao amadurecimento emocional da criança. De certo, um dos perfis mais dantescos e reprováveis de toda categorização parafílica.
Natural a repulsa e repugnância de qualquer pessoa ao se deparar com semelhante situação em seu lar; sobretudo, sendo mulher e mãe ao constatar que a vítima é sua própria filha; entretanto, há as optantes pelo silente consenso. Todo apoio e proteção para a superação do trauma é transferido para o agressor, a consciente distorção de percepção do abuso sexual passam a favorecer o abusador que se entende como a real vítima da situação frente a incapacidade de conter seus impulsos doentios, e assim se apresenta e reforça diariamente sua condição a esposa, figura eleita para garantir a impunidade de seus crimes. A vítima se encontra em situação de maior vulnerabilidade e risco, ao ter seus sentimentos invalidados seu processo de desenvolvimento é afetado pela situação traumática não tratada; bem como, a obrigatoriedade de convivência diária com o agressor e o abandono materno são agravantes para o eventual desenvolvimento de quadros depressivos e transtornos psicológicos. Não raro, o processo de “problematização” da vítima persiste até fase adulta, garantindo socialmente sua descredibilidade no caso de revelação do abuso.
Considerável e louvável é o trabalho dos estudiosos em listar as características e modus operandi dos portadores desta parafilia, entretanto, é mútuo consenso acadêmico que a personalidade do pedófilo é extremamente plástica e adaptável as situações, podendo tanto ser pessoas bem quistas socialmente como antissociais; age conforme seu desejo e necessidade e camufla suas intenções contando com o benefício da dúvida. Mais eficaz é conscientizar aqueles ao redor, sobretudo a figura materna.
Não se trata de sobrecarregar ainda mais a mulher, mas sim, conscientizá-la de seu poder de ação pois suas decisões possuem efeito modelador da sociedade interferindo diretamente no bem-estar social das futuras gerações. O silêncio materno frente a uma situação de abuso e o esquecimento do fato pela criança, são a garantia do abusador; o ato por si só, degradante, já o desqualifica como pai, ainda mais como homem.
Pior que o silêncio dos inocentes é o silêncio daqueles que podendo agir, nada fizeram.
Bibliografia
ANTONIO DE PÁDUA SERAFIM, FABIANA SAFFI, SÉRGIO PAULO RIGONATTI, ILANA CASOY, DANIEL MARTINS DE BARROS. Perfil psicológico e comportamental de agressores sexuais de crianças, (2009). Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Flávia Argemiro De Almeida E Silva (2020): “O silêncio da mãe diante do abuso: A omissão materna”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (marzo 2020). En línea: http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2003silencio-mae-abuso
D'AVILA, FABIO ROBERTO. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
Estatuto da Criança e Adolescente https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
Código Penal https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
Advogada. Autora de artigos jurídicos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FALKOWSKI, Camila. Pedofilia intrafamiliar e a omissão materna: Os impactos jurídicos e emocionais quando presente o vínculo biológico entre vítima e abusador frente a silente concordância maternal. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2024, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3705/pedofilia-intrafamiliar-e-a-omisso-materna-os-impactos-jurdicos-e-emocionais-quando-presente-o-vnculo-biolgico-entre-vtima-e-abusador-frente-a-silente-concordncia-maternal. Acesso em: 21 nov 2024.
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